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Antigamente, quando queríamos um conselho ou uma ajuda – pedíamos. Fosse qual fosse o assunto delicado ou a natureza prática, pedíamos. Agora, tudo mudou: há uma multidão estrepitosa de gente que tem como ocupação principal das suas vidas dar conselhos, opiniões, advertências, preceitos, provas de sabedoria, ajuda, indicações rigorosas – mesmo que nenhuma dessas coisas lhe seja pedida. Uma pessoa está sentada, tranquila, a comer, e alguém lhe lembra, com ar amigável e sedicioso, que o glúten é tramado; na internet, há uns seres pífios e enfadonhos chamados influencers que tratam de aconselhar-nos sobre seja o que for, desde a necessidade de bronzear as virilhas e os órgãos genitais (por causa da vitamina D, que se absorve mais facilmente nas partes) até à exigência de quinoa amarela ou de determinada marca de roupa. Não há o mínimo de paciência. Um dia destes será impossível sairmos de casa ou consultar o email sem que apareça uma dessas pessoas tolas, excêntricas e lunáticas a mostrar-nos como podermos salvar o mundo, emagrecer, demolhar o feijão ou lavar a roupa interior. Metam-se na sua vida.
Da coluna diária do CM.
Na semana passada, uma senhora olhou para mim com desprezo por eu usar um guardanapo de papel e estar a liquidar árvores (que ela não deve conhecer), mas olhem que no longínquo Ohio, EUA, a polícia deteve uma mulher numa igreja Cleveland: Meredith Lowell, 35 anos, tentou esfaquear uma educadora responsável pelas crianças que fazem parte do coro da igreja. Uma questão religiosa? Um desatino pessoal? Uma missão política? Se virmos bem, tratou-se de um pouco de tudo isso: a vítima do ataque usava botas de pele que Meredith Lowell, “amiga e defensora dos animais” achou intoleráveis. Portanto, e como não há melhor remédio do que atacar os infiéis à facada, foi isso que ela fez, imitando os militantes animalistas franceses que destroem talhos à martelada e à pedrada. Finalmente, a polícia descobriu não apenas que Meredith tinha sido, em 2012, acusada de contratar um assassino profissional para matar um homem que usava roupa de pele – como as botas usadas pela senhora da igreja imitavam pele, mas não eram de origem animal e sim de fibra artificial. O que as coisas são.
Da coluna diária do CM.
Hoje quero falar-vos de uma ideia generosa, inteligente, barata e oportuna. Existe desde há alguns anos, mas só agora a conheci – o programa Aconchego, da câmara do Porto, destinado a estudantes universitários que procuram alojamento e a idosos ou, como se diz agora, cidadãos seniores que vivam sozinhos ou apenas com o cônjuge. A ideia é que façam companhia uns aos outros. Os estudantes pagam 25€ por mês e, em troca, recebem alojamento e vivem com os seniores: ajudam-nos nas compras do supermercado, aviam receitas na farmácia, ensinam-lhes a navegar na net, contam-lhes da sua vida – aquilo que devia ser normal. O programa é gerido, vigiado e controlado pela área de Coesão Social da câmara e pela Federação Académica do Porto. Não estou a fazer propaganda à câmara; estou a dizer que é “uma ideia do caneco”. Num país que despreza os velhos, onde parte deles está condenada à solidão, e não se sabe como fomentar a coesão social e geracional, ideias simples, generosas, baratas e fáceis podem funcionar bem. Esta é tudo isso e, ainda por cima, comovente. Apetece-me aplaudir.
Da coluna diária do CM.
Tenho por Rui Tavares não só amizade mas também admiração pelo seu trabalho e talento de historiador. Sou seu leitor e amigo – e discordo de boa parte das suas propostas políticas, o que não obsta a que considere que era bom o Livre ser no Parlamento uma voz da esquerda não marxista (como creio ser o caso do Rui), europeísta e ecologista. Tirando isto (e outros elogios que poderia fazer a Rui Tavares), é claro que a trapalhada com Joacine Moreira era esperada. Joacine foi uma candidata de fachada, boa para marketing entre universitários, o seu eleitorado-chave. Não defendeu uma única ideia durante a campanha; repete, enfastiada, todos os lugares comuns e advérbios da política identitária; desconhece o que seja a coerência ideológica; ignora o que seja o mundo da política e a natureza dos seus compromissos e prioridades. Joacine foi – desde o princípio, como se viu – uma oportunidade perdida. Não por ser quem é (outra mistificação), mas por transmitir uma arrogância que o Livre talvez não mereça mas que, para sermos justos, tem de encaixar e assumir. É uma lição que saiu cara.
Da coluna diária do CM.
O Presidente da República mantém a sua generosa ideia de apoiar os ‘média’ com fundos do orçamento de Estado (OE). É necessário incentivar a leitura de jornais, estamos de acordo – é um problema grave do nosso analfabetismo, apaparicado pela falta de políticas de leitura. Mas ir além disso, com apoios diretos às empresas de ‘média’, parece-me um erro de princípio e de fim. Muitas dessas empresas cometeram erros clamorosos, desvalorizaram o papel dos jornalistas, realizaram operações financeiras e imobiliárias que as descapitalizaram (mas alguém enriqueceram) ou as colocaram num lugar frágil. Pôr o OE a pagar patrões que ou têm uma má relação com o jornalismo, ou deram um passo maior do que a perna, tem ar de favor político e abre a porta a acordos nefastos com o poder – de que, certamente, resultará haver desconfiança ou gente injustamente favorecida. Trabalho na indústria do livro e da edição, que há anos ouve a palavra crise e onde bons profissionais fazem um esforço notável em prol da leitura; nunca houve apoios financeiros. O problema é mais geral e é preciso atacá-lo antes.
Da coluna diária do CM.
Um dos organizadores da nova exposição de Paul Gauguin (1848-1903) na National Gallery de Londres diz que o pintor francês era “uma pessoa muito complicada” e que a dedicação de Gauguin à arte o levou a usar mal tantas pessoas. Essas pessoas são jovens do Tahiti, onde o pintor viveu depois de ter decidido afastar-se da Europa e “da civilização”, e onde pintou retratos e nus de jovens locais. A exposição na National Gallery começa por advertir os visitantes sobre o mau carácter de Gauguin, que se deu com menores e (adianta o New York Times) pode ter incorrido no múltiplo crime de “racismo, colonialismo e apropriação cultural” além de ser um “ocidental privilegiado” na Polinésia. Um dos cavalheiros que organiza exposições, na Tate Gallery londrina, acrescenta mesmo que, independentemente da qualidade das obras, se deve “evitar Cervantes e Shakespeare se encontrarmos coisas desagradável nos autores”. Vai lindo o festim da palermas. Já agora, se não quiserem as obras de Gauguin, ou de Caravaggio, que foi homicida, podem mandar aqui para o CM, ao meu cuidado. Pago os portes.
Da coluna diária do CM.
Dois dos meus discos são Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades, e Margem de Certa Maneira. Estão lá grandes canções como “Queixa das Almas Jovens Censuradas” (o belo poema de Natália Correia), “Perfilados de Medo” (poema notável de O’Neill) e outras da dupla com Sérgio Godinho. Também conservo os vinis dos anos de fogo, com o GAC/Vozes na Luta (A Cantiga É uma Arma e Pois Canté), curiosidades da revolução, e uma das primeiras cópias de FMI. José Mário Branco (que também passou pelo teatro) era um excelente compositor e um cantor como gosto: a sua voz não se confundia com nenhuma outra, grave, de uma austeridade solene, irónica e amarga. Não é preciso ser da sua companhia política para o ver como um grande músico e uma referência para as “novas gerações”, mesmo se alguns apenas agora descobriram a sua genialidade de compositor. Esses discos antigos, Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades e Margem de Certa Maneira (de 1971 e 1973) – e outras que estão no duplo Ser Solidário, como “Inquietação” – são obras de um grande e indiscutível talento que mudou a nossa música.
Da coluna diária do CM.
A morte de José Mário Branco transformou-se num espetáculo mais ou menos cruel; de cantor talentoso e compositor de excelência (não retiro uma vírgula ao texto acima), passou a falar-se de um “combatente pela democracia” e, logo a seguir, de um expoente do pensamento político. Combatente pela democracia, concede-se – JMB esteve no exílio, lutou contra o regime, foi uma voz importante e decisiva; mas o seu “pensamento político” não era propriamente democrático (e nunca o foi, o que não é pecado) ou, sequer, sério. Esta unanimidade sobre os “combates pela democracia” farão com que, um dia destes, escutemos o dr. Marques Mendes a cantar “FMI“ ou o PR a trautear cantigas do ‘A Cantiga É uma Arma’.
É muito fácil praticar o desporto mais popular em Portugal, o da indignação seletiva – e os leitores desta secção sabem o quanto me alegra e comove o aparecimento dessas vagas de opinião que alastram com grande imprevisibilidade. Por uma razão: pelo menos sei onde estão os e as imbecis – a indignar-se. O caso de Fátima Habib foi um deles (uma atleta tão portuguesa como Jieni Shao ou Fu Yu no ténis de mesa ou Obikwelu no atletismo): a basquetebolista do Tavira teria sido impedida de jogar ou por ser muçulmana, ou por não ter roupas adequadas. Claro que, no campeonato da indignação, vale tudo – farroncadas, mentiras, meias palavras. Ninguém se lembrou que existem regras sobre vestuário apropriado ao basquetebol e que essas regras são universais e aprovadas por federações de países islâmicos. Pois parece que a portuguesa Fátima Habib já jogou no domingo passado – porque tinha o equipamento adequado ao seu caso. Os indignados partiram para outra, tristes por não terem conseguido uma guerra religiosa num país onde não há guerras religiosas e nos estamos nas tintas para elas.
Da coluna diária do CM.
O amor está no ar. Lembram-se da canção (“Love Is in the Air”) do australiano John Paul Young? Vão à net. É um grande hit. No parlamento, a deputada do Livre também invocou o amor como argumento para a subida do salário mínimo; e até a sempre surpreendente ministra da Saúde alvitrou que os médicos só ficam no SNS – por amor. Sem ofender, lembro que (neste fim de semana) Bolsonaro usou a palavra numa das arengas para justificar a sua filiação partidária. É um nível e tanto. Tendemos a menosprezar a palavra e a usá-la fora do seu contexto inicial, que não tem a ver, claro, com propósitos carnais, como pode explicar qualquer pessoa religiosa. Um “acto de amor”, portanto, não é um despropósito, mas todos nós preferíamos que a definição do salário mínimo nacional, da política fiscal, ou a manutenção de médicos no sistema público de saúde não fossem indexados “ao amor”, propriamente dito, ou à piedade pelos outros – mas à justiça social, à sensatez e aos princípios básicos de economia que nos devem reger. É o que acontece quando a cabeça não tem juízo: recorre-se “ao amor”.
Da coluna diária do CM.
José Cid recebeu o Grammy de Excelência Musical, um prémio que só o honra e nos deixa contentes. Porém, na hora de agradecer o prémio, além de prometer cantar as suas canções de amor, acrescentou que iria continuar “a cantar contra a segregação racial, contra o racismo, contra a energia nuclear e contra a poluição, a favor das pessoas que mais necessitam, a favor deste planeta”. Pensei de repente que havia dois Josés Cids e que este último me tinha escapado. Mas não. O que acontece é que se tornou uma obrigação comercial, e de marketing, que todos os cantores, escritores, misses, ‘influencers’ e demais figuras públicas, tenham de fazer uma declaração sobre o apocalipse e a maneira de nos salvarmos todos e sermos boas pessoas. Daqui a um ano não há cantor, atriz, ou parvinho, que não seja vegetariano, devoto de Santa Greta, apaixonado pela “sustentabilidade”, a favor da mudança de género, especialista em ozono, devorador de tofu, praticante de biodança e amigo das iguanas. A banalização do mal é um dos horrores da nossa história – mas a “banalização do bem” desvaloriza-nos a todos.
Da coluna diária do CM.
Ontem, no debate quinzenal do parlamento, falou-se também de educação, ou seja, dos chumbos até ao 9.º ano. A preocupação é definir se a “não-retenção” (que não é grande novidade) significa passagens administrativas em larga escala. As perguntas têm razão de ser, mas nem a oposição sabe fazê-las, nem o governo responde. Ora, o debate sobre educação deve referir também as matérias ensinadas na escola e o viés ideológico que começa a ser preocupante nas matérias “de humanidades”, de que a nova disciplina de História, Culturas e Democracia é um exemplo. Preocupa-me o absurdo de muitos dos textos exarados pelo Ministério da Educação, de que não se percebe nada, e que visam justificar “novas tendências” em áreas que precisam ainda, de ser discutidas, desde a teoria de género até às leituras do passado e da história nacional, ou a juízos estéticos apressados que visam evitar o esforço de pensar, de aprender e de duvidar. Uma nova ortodoxia moderninha e cheia de lugares-comuns prepara-se para tomar o lugar de outras ortodoxias velhacas. Toda a gente anda distraída com vulgaridades.
Da coluna diária do CM.
Inicialmente, PS, BE, PCP e PEV decidiram que os pequenos partidos não poderiam falar nos debates quinzenais no parlamento. A ideia é peregrina e já devia ter sido extirpada do Regimento da Assembleia da República, depois de – na legislatura anterior – se ter aberto uma exceção para dar voz ao PAN. Mas desta vez os partidos do sistema ficaram excitados com a hipótese de dar uma lição aos cerca de 200 mil eleitores que votaram Iniciativa Liberal, Livre ou Chega – proibindo-os de falar. Encostados à parede pelo Presidente, pelo presidente da AR e pela opinião pública, que percebeu a marosca, lá recuaram um pouco e atribuíram a cada um dos novos partidos um minuto e meio do precioso tempo parlamentar. Uma farturinha simbólica, uma pequena formalidade que não basta para limpar o pecado original: sim, PS, BE, PCP e PEV (estes últimos, então, são de uma simpatia enternecedora, uma vez que nunca se apresentaram a eleições senão à boleia do seu criador, o PCP) quiseram mesmo calar os eleitos, tudo em nome da lei que eles próprios criaram e à qual abrem exceções fofinhas, à medida.
Da coluna diária do CM.
Quatro filmes, imaginemos: The Country Girl (com Bing Crosby e William Holden), Chamada para a Morte (de Alfred Hitchcock), Ladrão de Casaca (com Cary Grant) ou Janela Indiscreta (de Alfred Hitchcock, com James Stewart) – em todos eles, de 1954 e 1955, Grace Kelly brilha perversamente, com aquele olhar vagamente inocente de quem tem ainda mais a esconder do que a prometer. Atrizes assim, são raras – tanto podem abrir o jogo, como Jane Russell, ou escondê-lo, como Lauren Bacall. Ou fingirem que não há jogo nenhum, o que também lhe peamitiria entrar em Alta Sociedade ao lado de Bing Crosby e Frank Sinatra a cantar Cole Porter, em 1956, ano do seu casamento com o príncipe Rainier do Mónaco. O que nos resta da sua perversidade está em Janela Indiscreta, o filme mais prometedor de todos eles, fingindo uma inocência que nunca teve. Admirável, belíssima, taágaca (morreu em 1982, num acidente de automóvel), Grace Kelly continua viva para quem alguma vez se apaixonou por ela e pela sua voz que já era aristocrata antes de ser princesa. Hoje completaria 90 anos.
Da coluna diária do CM.
O encontro do Presidente da República com Manuel Xavier, que pudemos ver na CMTV, é um grande momento televisivo – brutal, chocante e humaníssimo. Mas é muito mais do que isso. Mostra o Presidente de paredes meias com a Web Summit a lembrar os sem-abrigo; nada disso é estranho para a generosidade de Marcelo, que (anonimamente) nunca deixou de participar em trabalho comunitário e voluntário nessa área. É, por isso, alguém que sabe do que fala quando fala do assunto – e que nunca quis esconder a existência daqueles que, como escrevia Octávio Ribeiro ontem no CM, ficam “afastadas dos grandes rios de gente”. Pior é sabermos que, no cúmulo da propaganda política, foram anunciadas centenas de milhões para prover aos sem-abrigo, e que nenhum desses milhões apareceu. Os esquecidos, os humilhados e perdidos, aqueles que erraram e perderam os combates da sua vida: é também para eles que temos orgulho em pagar impostos – e não é justo que sejam bandeiras políticas destinadas ao vazio. Marcelo é uma grande exceção e deu voz aos que estão escondidos pela paixão portuguesa pela Web Summit.
Da coluna diária do CM.
É muito fácil desmoralizar e desacreditar um adversário durante uma troca de ideias: acusa-se de fascismo, racismo, xenofobia, machismo, transfobia, homofobia, islamofobia, seja o que for. Não interessa propriamente o que “o outro” defende, escreve, diz ou propõe – é a nova modalidade de caça aberta na internet e nas redes sociais: a caça ao pecado político e aos deslizes de linguagem. Quem decide arriscar e defender ideias impopulares é sacrificado no altar da nova linguagem, aquela que qualquer analfabeto ou sevandija de meia tigela pode usar num despacho governamental, num documento “de reflexão” ou num artigo de “denúncia”. O fundamental é higienizar o pensamento, sobretudo se lhe vierem associadas as novas tendências do “digital”, da “identidade de género”, do ambiente e da “emergência climática”. Tudo, no futuro, será um clima de “lifestyle”, de paz dos cemitérios da linguagem, de pessoas maravilhosas e generosas – o próprio capitalismo e o seu marketing defendem a ideologia da “sustentabilidade”, da correção política e do não afrontamento. Seremos todos patetas ou pecadores.
Há 25 anos estive no quarto de Trotsky, em Coyocán, Cidade do México, onde foi assassinado a 1 de agosto de 1940. Nas paredes estão ainda as marcas das balas. No armário, a roupa de Leon e de Natalia, a mulher. No jardim, tranquilo, a duzentos metros da casa onde vivia Frida Khalo (com quem teve um caso), a sepultura com as suas cinzas. Na biblioteca, um livro de Ferreira de Castro e um de Aquilino Ribeiro, pura curiosidade para um visitante português. Trotsky escrevia como um obstinado e escrevia sobre tudo, tal como Lenine, Estaline ou Mao – e fê-lo sempre, antes e durante a revolução soviética, e depois no exílio. O mexicano Paco Taibo II, no seu livro A Quatro Mãos, põe Trotsky a escrever um policial; podia tê-lo feito, Trotsky era incansável. A ideia de “revolução permanente” assentava que nem uma luva ao seu temperamento elétrico. Fez os discursos mais alucinados da revolução bolchevique e parte do regime de terror da URSS (o ‘terror vermelho’, qe defendia) deve-se-lhe inteiramente, até à morte de Lenine e ao combate com Estaline. Trotsky (1879-1940) nasceu há 140 anos.
Na história do cinema tendemos a valorizar os heróis, que querem “um mundo mais justo” e abominam a violência, a corrupção ou os “maus comportamentos”. De fora, ficam muitos vilões a que achamos graça – porque também gostamos de vilões, de malandros ou que emergem como vingadores; ou, apenas, porque são maus de qualidade. O Joker, da série Batman, é isto: o mau, perverso, cheio de humor, apalhaçado, diante de um bonzinho chato e de uma Gotham City perversa. Por isso, a figura de Joaquin Phoenix, no novo filme, está hoje a ser usada em confrontos violentos e de protesto por todo o mundo. Na televisão, uma manifestante dizia qualquer coisa como “o Joker é uma personagem incompreendida, vulnerável e abandonada”, enquanto festejava a desordem em Santiago do Chile. O mesmo acontece em Hong Kong e outros cenários. A ideia tem pernas para andar. Mas é fácil e perigosa, como se uma infância terrível, o sofrimento ou ter sido vítima de injustiça, justifiquem a violência e o distúrbio. O filme é bem feito, mas a ‘lição moral’ é pateta. É uma fábrica de coitadinhos a quem tudo se autoriza.
Há, na internet, um “discurso de ódio”, como sempre houve nas nossas vidas, antes e depois das chamadas “redes sociais”. Desde a invenção da tipografia, e antes disso, há textos carregados de “ódio”. Os grandes polemistas do séculos XVII, XIX e XX eram violentos, letais, capazes de tudo; a internet apenas disseminou esse desejo de vingança e triplicou o espírito de ressentimento. Mais do que isso: tornou as reações mais rápidas, mentirosas, definitivas e com consequências destrutivas. Uma boa ideia transforma-se em poeira; um deslize, numa catástrofe. Mas estar a alargar o conceito de “discurso de ódio” a tudo o que seja simples discordância, debate, ou até violência, é um exagero igualmente letal e abre as portas a várias formas de censura imediata. O espaço público é um lugar de debate cada vez mais veloz e onde a reflexão ponderada não tem lugar; uma frase incompleta, um título com leitura dúbia – e entramos no negócio da indignação. Apesar de tudo, criticar a saia de um assessor parlamentar, por exemplo, não é odiá-lo. É falar disso. E obrigar-nos a ler tudo, o texto completo.
Da coluna diária do CM.
Saiu mais um volume da Obra Completa de Vitorino Nemésio (Imprensa Nacional e Companhia das Ilhas), este dedicado ao ensaio, e que junta dois livros, Sob os Signos de Agora (1932) e Conhecimento de Poesia (1958). O trabalho de leitor e de crítico fazem de Nemésio, a par de grande romancista – o de Mau Tempo no Canal – e de poeta, uma figura única na nossa literatura do século XX. Não só tem uma voz inconfundível como, também, uma intuição que o leva a escrever coisas maravilhosas. Poderia ter sido o nosso Harold Bloom, se o tivéssemos lido e se ele tivesse podido dialogar com os leitores. Mas o seu talento é um raio de luz onde quer que seja. Vejam só, em 1950, num texto para falar de Sophia de Mello Breyner – começa assim: “Brisas de julho – auras poéticas. De vento na face, se o tempo quedasse! Mas o tempo foge como a estrela fria.” E vai por aí fora, sem medo. Ao ler os críticos de hoje, universitários ou não, noto-lhes um provincianismo letal, além da incapacidade de escrever bem. Ler Nemésio, mesmo como ensaísta, é (vá lá) uma vergonha para a gente de hoje.
Da coluna diária do CM.
Hoje é, na tradição católica, Dia de Todos os Santos; amanhã, Dia de Finados. Noutras religiões ou cosmogonias e tradições, o dia 1 de Novembro está ligado ao fim, ao começo (do ciclo do inverno) ou à recordação dos mortos. É importante que exista pelo menos um dia para que os que partiram antes de nós sejam recordados. Só assim se prolonga o sentido das coisas e o ciclo interminável da memória dos nossos ancestrais, dos que amámos ou foram nossa companhia. Dizer isto todos os anos não basta – é necessário viver essa experiência de recordação ritual. Na minha aldeia, nas dos meus pais, e nas dos leitores, visitam-se os cemitérios não apenas para relembrar o sofrimento da ausência, mas para assinalar o respeito pelo tempo que passou; quem não pode fazê-lo, há de ter um momento para que os antigos sejam lembrados, para termos uma história humana que preenche os vazios e as partidas. Neste dia especialmente, recordo os meus avós, os meus tios que partiram, os amigos que não regressam das sombras, e basta um minuto para isso: voltamos a ser um mundo perfeito. Incompleto, mas perfeito.
Da coluna diária do CM.
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