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Não sei se vem aí o verão – mas merecíamos um pouco de calor (acalmem, há previsão de chuva, não desanimem). Como piada, diz-se que Portugal está tão na moda que o inverno veio passar o verão entre nós; o fato é que ainda não houve ondas de calor, nem de pânico, nem de aviso laranja da proteção civil para insolações anunciadas. Na literatura, lembro-me de romances em que o verão era abrasador, intenso, canicular, cheio de vagas ardentes – tal como no cinema, em que se transpira, há ventoinhas ligadas ou ar condicionado que não funciona. Este ano é atípico, mas a meteorologia é uma das poucas coisas que me interessam, a par da literatura, da música, do cinema, da culinária doméstica ou das pessoas que conjugam palavras amáveis, enquanto a política vai sendo cada vez mais vencida pela mediocridade e encenação. Quando as eleições se aproximam (falta mês e meio), o país divide-se entre a manipulação e o desinteresse, o que não é bom augúrio – mas é bem feito para quem não merece mais.
Da coluna diária do CM.
Li os relatos das acusações a Placido Domingo e fiquei com a impressão de que se tratava de literatura de terceira classe: pelas descrições, pelos adjetivos das denúncias, pelas circunstâncias, pela natureza do assédio e da insistência. Trinta, quarenta anos depois, essas acusações caem na maravilhosa carreira de Domingo como uma nódoa abominável – algumas delas são explicáveis, mas o “espírito da época” ou o desatino hormonal não serve de almofada para justificações. A única coisa que me causa impressão (ainda assim, sem surpresa) é o lapso de tempo. Trinta anos de silêncio esperavam o momento da vingança ou um “sentido de oportunidade” favorável. O tenor espanhol (um homem adorável e simpático que conheci de passagem e com quem falei de futebol e da sua paixão pelo Real Madrid – fui incapaz de dizer como gostava da sua voz) tem agora a honra a prazo trinta anos depois de ter cometido erros. Não é um bom final, embora levante dúvidas. O passado é sempre uma avalanche de perdas e erros.
Da coluna diária do CM.
O que une Richie Heavens a Melanie, Janis Joplin a Jimi Hendrix, Joe Cocker aos Santana, Joan Baez aos Credence? Terem participado no festival de Woodstock, há exatamente 50 anos. Bob Dylan, que vivia lá, em Woodstock, não participou, diz-se que irritado pela quantidade de hippies que invadiu a cidade, ou porque tinha um contrato para outro concerto. Seja como for, tratou-se do maior ajuntamento de rock de sempre, pela sua intensidade, pelo momento histórico e pelas consequências – não pelo número. Vi o filme quase dez anos depois, que valeu pelas atuações de Crosby, Stills & Nash, Joe Cocker e Janis Joplin. A América nunca mais recuperou desse fim de semana, nem das suas imagens. Grande parte da “geração de Woodstock” sobreviveu-lhe, felizmente, mas, como costuma acontecer, o mito é maior do que a sua circunstância. Havia demasiados hippies e o “amor livre”, misturado com o combate à guerra do Vietname, tem um belo efeito cénico para nostálgicos que depois, ou não recuperaram (ficaram sempre crianças) ou se transformaram em famílias com histórias para ocultar. Cinquenta anos.
Da coluna diária do CM.
Portugal volta a ser Portugal. António Costa percebeu essa saudade tremenda e deu um passo decisivo para a maioria absoluta. Durante uma semana, com o suporte de boa parte da imprensa, o governo dramatizou quanto pôde: militares e polícias na rua, emergência energética, telefonemas aos generais, direito ao abastecimento de gasolina para portugueses em férias, ordem nas ruas e requisição civil, malandros sob controle. Quando a semana começou não havia português previdente que não tivesse o carro atestado, vontade de rever a lei da greve e desejo de espatifar gasolina. Depois de anos de greves na Transtejo e na Soflusa, na CP, STCP e no Metro (lembram-se?), nas escolas e nos hospitais, a grande massa de eleitores agradece o gesto, ainda por cima com o silêncio abnegado dos grevistas de antanho, reunidos à esquerda. Ainda por cima no verão. Como dizia o antigo sociólogo Boaventura Sousa Santos, a greve “joga o jogo da extrema-direita” e os grevistas são “idiotas úteis” quando o governo é de esquerda, como no Chile de Allende. Foi uma semana exemplar e uma lição para todos. Bem feito.
Da coluna diária do CM.
Lembram-se de Rebecca (1940)? De Spellbound, A Casa Encantada (1945)? De O Desconhecido do Norte-Expresso (1951)? De Janela Indiscreta (1954)? De Vertigo, A Mulher Que Viveu Duas Vezes (1958)? De Psico (1960)? De Os Pássaros (1963)? A lista é muito longa – são cerca de cinquenta títulos mas há pelo menos dez filmes de Alfred Hitchcock (nascido britânico, cavalheiro inglês nos EUA a partir de 1940) que podem entrar na galeria da história do cinema como nós o conhecemos e recordamos hoje. Movimentos de câmara, iluminação, ângulos inusitados, fragmentos de um olhar, silêncios que esperam uma banda sonora, um sentido de humor raríssimo – tudo serve para criar suspense, medo, estranheza. Os seus filmes trazem tudo isso como um jogo de peças que parecem nunca encaixar senão na cumplicidade com a nossa surpresa. James Stewart, Grace Kelly, Cary Grant, Kim Novak, Anthony Perkins, James Mason, Gregory Peck, Ingrid Bergman, e muita literatura, compuseram o retrato da sua genialidade. Passam hoje 120 anos (1899-1980) sobre o nascimento de Hitchcock. Ainda não morreu.
Da coluna diária do CM.
Não estranhem, mas a história dos maluquinhos já vem de há muito, e sempre em nome de excelentes causas. Ninguém se recorda hoje mas, em março de 1983, o jornal francês ‘Libération’ (um porta-voz dessa espécie) propôs que a ministra dos Direitos da Mulher (no 3.º governo socialista de Mitterrand-Mauroy, e na sequência da sua lei anti-sexista), colocasse no índex o Pantagruel, de Rabelais, As Neves de Kilimanjaro, de Hemingway, Judas, o Obscuro, de Thomas Hardy, toda a obra de Kafka, a poesia de Baudelaire e, claro, Madame Bovary, de Gustave Flaubert. Porquê? “Provocação pública e ódio sexista.” Toda a obra de Kafka e Baudelaire? Flaubert? Convém lembrar, de vez em quando, que a sanha persecutória que hoje é praticada pelas boas consciências progressistas em nome da “harmonia social” tem raízes profundas na história dos seus desejos. A ministra não acedeu (diz-se que Mitterrand não deixou); mas é importante saber que certas almas defendiam um mundo que não podia ler Kafka, nem Baudelaire, nem Flaubert, nem Hardy ou Hemingway, entre outros. Ontem – no século XIX – como hoje.
Da coluna diária do CM.
Foi uma das pessoas mais generosas e cordiais que me acolheu “no mundo da literatura” – livros como A Noite Roxa, Despedidas de Verão, Imitação da Felicidade ou As Aves da Madrugada foram leitura de adolescência, onde surpreendi uma tentativa de equilíbrio (que foi sempre difícil) entre a busca da felicidade individual, um certo hedonismo, e os compromissos políticos que assumiu ao longo da vida (foi militante comunista); daí resultava uma tolerância amável e a disponibilidade para ouvir os outros, de onde nasceram também livros como Deriva e A Vaga de Calor, por exemplo, já nos anos 80 e 90. Urbano Tavares Rodrigues (1923-2013) era um excelente ensaísta, um magnífico leitor; recordo uma viagem comum a Paris, onde esteve exilado, e a evocação de Albert Camus, que me surpreendeu, bem como os seus livros sobre Teixeira Gomes, o neo-realismo, o existencialismo e as lições de literatura francesa. Passam hoje seis anos sobre a sua morte e recordo-o com a mesma amabilidade que teve sempre em vida. Urbano era um cavalheiro raro nestes tempos e eu devo-lhe muito. Aliás, devemos.
Da coluna diária do CM.
O The Guardian apanhou Angela Merkel nas férias: numa varanda, sentada a ler um livro de Stephen Greenblatt. Explico rapidamente: Greenblatt é um importante professor americano e autor de diversas obras sobre Shakespeare, nomeadamente de Tyrant: Shakespeare on Power (Tirano: Shakespeare sobre o Poder), de 2018. É um livro académico, difícil – mas importante para quem acha que a literatura antecipa vários cenários da vida real. Em Tirano, Greenblatt deixa a pergunta: como pode uma sociedade forte e sólida acabar por ser governada por um sociopata? Shakespeare antecipou a resposta, desenhando personagens como Ricardo III, Macbeth ou o Rei Lear, onde estão todos os sinais de corrupção, paranóia, e também incompetência ou narcisismo e mentira permanente. Os tempos de hoje estão bons para eles. As multidões, manipuladas pela propaganda, elegem tiranos como geralmente apreciam e malandros que sabem manobrar e mentir. A minha admiração por Merkel subiu uns pontos. Um livro é apenas um livro, mas mostra que a chanceler quer entender a patetice em que vivemos.
Da coluna diária do CM.
Como ontem lembrava Fernanda Cachão aqui no CM, o uso de armas é um direito histórico e constitucional nos EUA. Mas todos os “direitos históricos” têm uma história e um termo. Precisamente porque há História. Ora, a história da violência nos EUA está diretamente ligada ao uso e abuso de armas de fogo e à ilusão de que o país é mandatado por Deus para ser o paraíso democrático na terra (Tocqueville já o temia em 1835), ideia que tem proporcionado todo o género de messianismos palermas, perseguições religiosas e políticas, picos de ódio racial, variações do politicamente correto, lei seca, policiamento da linguagem, entre outros fundamentalismos – o que faz do país uma explosão de contradições em que a liberdade e o direito têm prevalecido, apesar de tudo. Não é um lugar onde me apeteça viver. Não apenas pelos 30 mortos no fim de semana passado ou pela forma como a indústria das armas depõe ou elege presidentes em nome da lei e dos “direitos históricos”. Mas pela forma como tem transformado os seus grandes sonhos americanos em barreiras de desumanidade, lugares-comuns e intolerância.
Da coluna diária do CM.
Geralmente, o país merece o que lhe vai acontecer. Para o bem e para o mal, mas sobretudo para o mal. Se acreditássemos nas sondagens (evidentemente que acreditamos), pensaríamos que tudo tem corrido bem demais, e que nada justificava uma certa apreensão em torno do resultado final, em Outubro – quando a meteorologia promete calor, e vamos apreciar o vencimento de prazos em certos inquéritos da Procuradoria, futebol a arder, famílias ocupadas com o início das aulas e mais disparates do dr. Rio. O caso de Tancos, o episódio das ‘golas’, as reações diante dos incêndios florestais, as operações de propaganda e ocultação, o caso da greve manipulada dos camionistas (preparem-se para um belo desfecho vitorioso do governo, que tem dramatizado porque já sabe o resultado), a rede de negócios e cumplicidades perigosas entre famílias & amizades de longa data – nada disto promete, ao contrário do que pensam certas almas tranquilas, afetar a caminhada do contentamento português. Até o verão tem ajudado: manso, gélido à noite, chega finalmente para acomodar mais contentamento.
Da coluna diária do CM.
José Afonso teria completado 90 anos na passada sexta-feira. É um dos autores mais geniais e completos da música portuguesa, e reduzi-lo à sua dimensão puramente ideológica é um mau serviço prestado à sua obra e à sua imensa criatividade. Inclusive, há discos de Zeca Afonso que, mesmo marcados ideologicamente de forma tão intensa – resultando do fervor político dos anos de 1974 a 1979 – devem, a esta distância, ser objeto de uma releitura estética (casos de Com as minhas tamanquinhas ou Fura fura). Essa redução ideológica é empobrecedora e muito querida dos medíocres cujo nome se salva na nossa memória apenas pelos favores da política – mas José Afonso é uma grande, enorme, formidável exceção. Quase todas as suas canções sobreviveram ao tempo e algumas são um relâmpago genuíno da melhor música. Em 1987, na sua morte, houve quem não o homenageasse devido a essa marca ideológica. Foi um erro. Era preciso libertar José Afonso dessa sobrecarga. Hoje, isso é possível – porque ele é grande, enorme – apesar dos que o querem ouvir ou dar a ouvir sob grilhetas tão estreitas.
Da coluna diária do CM.
A magna questão “das golas” e da promiscuidade familiar mostra a forma como, num país pequeno e cheio de oportunidades de negócio, onde todos se conhecem e grande parte dos “conhecidos” tem interesses comuns, é difícil escapar a qualquer teia que não tenha sido tecida pelo Estado. E, além disso, as leis são ou feitas à medida desses “interesses comuns” ou, como por outras palavras mais complicadas disse o ministro A. Santos Silva, não se podem levar à letra (no sentido em que “seria absurda” uma interpretação “literal” da lei). Que a lei não se possa ser cumprida pode decorrer de ela ser controversa – mas mais absurdo ainda é que o Parlamento produza leis que não podem ser interpretadas literalmente, e que o Presidente da República promulgue diplomas (como a lei das incompatibilidades) que ou não vão ser aplicados ou que o próprio vê salpicados de erros que critica abertamente. Mas o mais complexo disto tudo é o seguinte: quando uma lei não vai ser cumprida, o Parlamento trata de, previamente, fazer uma lei que não pode ser cumprida. É um brilhante acordo entre os partidos, não é?
Da coluna diária do CM.
Moby Dick, de Herman Melville, é uma das obras-primas mais notáveis da nossa literatura; fala de superação, busca, confronto, domínio, ascensão e queda, risco, sonho e do mundo tenebroso e maravilhoso do mar. A luta (narrada pelo marinheiro Ishmael) entre o capitão Ahab e Moby Dick, a baleia branca, é uma prodigiosa metáfora sobre a natureza humana e deu lugar a um livro que tem de tudo, como se deve dizer dos grandes romances: desde conhecimentos da vida do mar (Melville conheceu-a verdadeiramente e elegeu-a como sua obsessão e ganha-pão) até ao domínio da linguagem bíblica, da forma como desenha Ahab até ao desejo de luta e de confronto que toma conta de todo o romance. Com o tempo, Melville transformou-se numa das figuras do pódio da literatura americana, mas terminou a sua vida praticamente na miséria – e Benito Cereno, Billy Budd ou o influente e maravilhoso conto Bartleby, o Escrivão só tarde de mais o levaram ao paraíso da literatura. Melville, que nasceu há 200 anos (assinalados hoje, para nossa felicidade de leitores), nunca imaginaria ser tão grande como é.
Da coluna diária do CM.
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