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Já tinham secado as lágrimas da primeira adolescência, com o Diário de Anne Frank, quando li Se Isto É um Homem, de Primo Levi. O choque não podia ter sido mais forte. Levi, por quem tive uma admiração fortíssima ao ler O Sistema Periódico (de 1975, que só li em 1999), mostrava o horror na primeira pessoa: judeu italiano, sofreu na pele a segregação do fascismo italiano que, em 1938, proibiu judeus de estudar em instituições públicas (frequentava química) – e foi, depois da dolorosa caravana da morte nazi, parar a Auschwitz em 1944, num grupo de 1000 prisioneiros de que apenas 20 sobreviveram. Quando Levi morreu, em 1987, Elie Wiesel disse o essencial: que o autor de Se Isto É um Homem já tinha morrido no campo de concentração nazi há quarenta anos – e, depois, quando publicou o seu tremendo livro, onde mostra como se destrói a dignidade humana. Com Se Não Agora, Quando?, cujo título invoca uma frase do rabino Hillel (séc. I aC), é um dos livros mais dolorosos sobre a “memória da morte”. Passam hoje 100 anos sobre o seu nascimento – é um nome incandescente.
Da coluna diária do CM.
O romance Agnes Grey, de Anne Brontë (que agora foi publicado pela Relógio d’Água), tal como Jane Eyre, da sua irmã Charlotte, é uma história romântica sobre o poder das mulheres e a sua experiência de vida, em meados do século XIX. Nenhum deles tem a densidade dramática de O Monte dos Vendavais, de Emily, mas o assunto é outro: a sua releitura ocorreu ao mesmo tempo que soube que 57% das mulheres portuguesas que chegam à universidade escolhem carreiras científicas – e têm um aproveitamento académico muito superior ao dos homens (nos laboratórios de ciência do Vale do Ave, a percentagem de mulheres chega aos 80%). Os números enchem-me de orgulho porque traduzem um crescimento notável não só do poder real das mulheres mas, sobretudo, do papel que ocuparão no futuro – numa sociedade onde (vê-se pela política portuguesa, cada vez mais manhosa) a qualidade dos homens anda pelas ruas da amargura. Esta é a verdadeira revolução tranquila. Sem lugares comuns, quotas e gritaria que esconde debilidades menos visíveis a olho nu. Pode ser que cheguemos a algum lado e que leiam Agnes Grey.
Da coluna diária do CM.
Nos anos 60, os nomes de Raymond Chandler, Hammett ou Mickey Spillane (além de Simenon) foram grandes influências na história do policial português. Chandler e Hammett eram pais melancólicos; Spillane era um guia para a violência, mas Chester Himes estava no código genético de autores como Diniz Machado, Ross Pynn (Roussado Pinto), Frank Gold (Luís Campos) e até Cardoso Pires, que o referiu aqui e ali. Himes (1909-1984), de origem negra, com um historial de pequeno crime e passagem pela prisão, apesar de vir de uma “classe média equilibrada”, escreveu sobre o racismo na polícia e nas ruas do Harlem. Cidade Escaldante é o seu título mais famoso, e em livros como Razia Total, Assassinos a Frio, Tumulto no Harlem ou A Maldição do Dinheiro crescem os detetives Coffin Ed Johnson ou Gravedigger Jones. Como James Baldwin, outro negro, veio escrever para Paris; a distância da América deu-lhe uma perspetiva mais literária sobre o policial, de que é um mestre. Acabou a viver em Alicante, na Espanha, onde morreu em 1984. Passam hoje 110 anos sobre o seu nascimento. É uma grande leitura.
Da coluna diária do CM.
Não sei se se recordam do filme Debaixo do Vulcão, de John Huston (com Albert Finney e Jacqueline Bisset) – mas eu recordo. Há anos, fui a Cuernavaca, a cem quilómetros da Cidade do México, para ver o cenário do livro homónimo de Malcolm Lowry e ver o sítio exato (um jardim) onde se encontraria a frase que encerra o romance: ‘Este jardim é seu, não deixe que os seus filhos o destruam.” Sem saber, Lowry tinha visitado o lugar exatos 60 anos antes, a fim de – naquela paisagem perdida e solitária – salvar o seu casamento. Não conseguiu. Voltou cinco anos depois, com outra mulher – e, apesar do álcool em excesso, reuniu a memória que lhe permitiu escrever ‘Debaixo do Vulcão’, um romance que é inseparável da nossa visão do México e da imagem do próprio escritor. Lowry não é apenas um dos grandes mitos da literatura do século XX: é um proscrito da felicidade e deve ser lido com cuidado, porque ninguém fica imune à sua melancolia e à sua dor. Viajante, nómada, sem pátria (era inglês e morreu em Inglaterra aos 47 anos – assinalam-se no próximo domingo os 110 anos do seu nascimento.
Da coluna diária do CM.
Na próxima semana (na Dom Quixote) sairá o livro Fora de Circunstância, de Maria de Fátima Bonifácio, nome que esteve no centro de uma polémica devido a um artigo onde se manifestava contra a “discriminação positiva” de negros e ciganos na entrada nas universidades. À indignação em massa, nas chamadas “redes sociais”, sucedeu o apelo aos tribunais e respetiva condenação. Acontece que a indignação é uma coisa que nos sai muito barata hoje em dia, e portanto não espanta, ainda mais tendo em conta a substância do artigo de Fátima Bonifácio; ao contrário de muita gente, acho essa indignação muito saudável – à esquerda a è direita. Já a criminalização da opinião (mesmo que a ache abjeta, ou conspícua, ou apelando ao pior do género humano), acho errado. Sou pelo combate. Não se está de acordo? Combate-se. Insulta-se, se for necessário e se a causa valer a pena – daí resultaram grande textos da nossa literatura. Se for preciso, humilha-se o adversário, expõe-se a sua roupa interior em público, contam-se horrores. Mas criminalizar opiniões não é abrir a porta à intolerância: é festejá-la.
Da coluna diária do CM.
O chefe Henrique Leis, proprietário do restaurante com o mesmo nome em Almancil, no Algarve, decidiu devolver a estrela Michelin que ganhou há quase 20 anos. Ah, que vergonha, murmura-se. Pelo contrário: tomates. Não foi o único caso. Marco Pierre White, por exemplo, que durante algum tempo foi o mais jovem chefe a obter três estrelas do guia francês (aos 31 anos), devolveu-as por estar cansado, querer ser mais livre na cozinha e, sobretudo, não estar disponível para ser avaliado pelos juízes do Guia Michelin, um interessante instrumento diplomático e culinário francês, cujos critérios são tão estreitos quanto flutuantes e desconhecidos. Há mais restaurantes nessa lista de indisponíveis a que, agora, se junta o de Henrique Leis – que também prefere cozinhar em liberdade e sem a ameaça de ficar sem a estrela por causa de uma má inclinação do palato dos ‘michelins’. Ter as estrelas é bom para qualquer cozinheiro (há 26 dignos estabelecimentos portugueses que as ostentam), mas, sinceramente, parte substancial dos estrelados é uma grande, enorme e sorumbática chatice.
Da coluna diária do CM.
Pergunta inútil: se há racismo em Portugal. Claro que há. É como perguntar se há maçãs podres num pomar. Nada na nossa Constituição ou nas nossas leis, ou nas instituições, ou até no costume, nos permite falar de racismo, ou de discriminação por sexo. O racismo – como outras formas de discriminação, se bem que o racismo seja ainda mais abjeto, porque tem uma base biológica – existe como um vírus: nas relações entre colegas, nos grupos de trabalhadores que de madrugada vão para as obras, no atendimento aos balcões de bancos ou de lojas, às portas dos bares, nas cozinhas dos restaurantes, nos quadros de uma empresa. Estamos a meio de um longo processo de redenção de uma sociedade que já descobriu existir esse vírus e se liberta dele. Não pode é mencionar-se a raça como marca de identidade política. É como dizer que Hélder Amaral, deputado do CDS, é um polaco loiro disfarçado de africano só porque não comunga da mesma tralha ideológica e do mesmo desejo de ressentimento que os meninos da academia regurgitam como maus alunos de História e revolucionários de anedota.
Da coluna diária do CM.
O Acordo Ortográfico (AO) não foi ainda ratificado por Angola e Moçambique – não por causa do seu acrisolado amor à Língua Portuguesa na sua versão europeia, mas por resistências diplomáticas que até hoje estão a ser resolvidas. Tirando isso, o AO foi ratificado em todos os outros países. Agora, o parlamento terminou sem consenso uma “tentativa de alterar ou aperfeiçoar” o AO – depois de um processo longo, difícil, e cheio episódios ridículos, que vem desde 1990, e que em 2009 foi acelerado de tal forma (uma lei ditou que seria obrigatório em 2011) que qualquer crítica seria recebida como crime político. Como membro do governo, em 2012 eu próprio apresentei a sugestão de introduzir certas correções (algumas consoantes mudas, algumas acentuações), o que era legalmente possível fazer até 2015 – a reação foi intempestiva e entrámos num campo em que ou se aplicava todo o AO ou se suspendia o mesmo. O resultado é um desacordo velado e uma indiferença unânime em relação ao assunto, num processo que provavelmente não devia ter começado. Mas que ocorreu em todas as épocas, de Roma até hoje.
Da coluna diária do CM.
Era difícil, muito difícil, não gostar de Andrea Camilleri (1925-2019), cuja morte, ontem, aos 93 anos, deixa um lugar vazio nas nossas estantes. Falei com ele duas vezes e não esqueço, nem o humor, a graça, a dicção ligeiramente siciliana – nem a perspicácia que nascia daquela espécie de leveza e melancolia, a mesma que emprestou ao comissário Montalbano, herói dos seus livros policiais. Juntamente com o espanhol Manuel Vázquez Montalbán ou o grego Petros Markaris, Camilleri compõe uma espécie de pódio da narrativa policial mediterrânica, com os seus detetives (respetivamente, Pepe Carvalho, Kostas Haritos e Savio Montalbano), as suas obsessões, o seu passado, o seu apetite. As investigações de Montalbano (em livros como A Forma da Água, O Ladrão de Merendas ou O Cheiro da Noite’) giram em redor de casos criminais densos e inesperados, num Itália saborosa mas também amarga e onde por vezes o refinamento dá lugar à escuridão. Eu recomendaria que fossemos à procura dos seus livros.
Da coluna diária do CM.
Já todos nos colocámos essa pergunta: como será o nosso rosto daqui a vinte, trinta anos? Por isso, não estranho o sucesso da aplicação FaceApp, que permite imaginar como seremos “em velhos”. As chamadas “redes sociais” estão inundadas dessas fotografias enquanto a imprensa chama a atenção para o facto de a App, sediada na Rússia, capturar os nossos dados pessoais – como se o Instagram ou o Facebook não o fizessem já. Questões de segurança digital à parte, o que acontece é que uma fotografia de hoje nos é devolvida acrescentada de rugas e cabelos brancos; não sei se as pessoas gostam de se ver a si mesmas, mas a aplicação tem tido êxito, sobretudo quando se usa para ver a velhice dos outros, de Marcelo a Lady Gaga. Por um lado, sugere alguma desdramatização da velhice num mundo que sonha ser eternamente jovem; por outro, transforma-nos em parvinhos, se leva as pessoas a pensar que ser velho é apenas acrescentar rugas num rosto deformado. Há um certo espanto: num minuto, a nossa imagem transforma-se em poeira. Acabámos de perder anos num clique. Brinquem, meninos, brinquem.
Da coluna diária do CM.
Perry Mason era ligeiramente cretino – mas um génio no tribunal. De certa maneira, interpretava o papel que o seu criador teve no campo literário: ambicioso, arrogante, trabalhador, frontal e inteligente. Quem, de entre os apaixonados pelo policial não leu os “casos” de Perry Mason, nos livros de Erle Stanley Gardner (1889-1970), um californiano atípico (nasceu no Massachusetts, onde nunca viveu, porque o seu pai era pesquisador de ouro no Klondike)? Lembram-se de alguns? O das Garras de Veludo, o da Rapariga Caprichosa, o dos Dados Viciados, e tantos outros, protagonizados por Perry Mason (houve uma série televisiva interpretada por Raymond Burr), com a sua secretária Della Street e o ajudante Paul Drake. Além disso, Stanley Gardner, com o pseudónimo A.A. Fair (teve 8 pseudónimos), criou ainda a dupla Daniel Lam e Bertha Cool, muito mais interessante, que nasceu no atrevido Divórcio Sangrento. Vendeu mais de 3 mil milhões de livros – e hoje faria 130 anos. Capaz disso era ele.
Da coluna diária do CM.
Há uma grande expetativa: como será a nossa vida daqui para a frente com as alterações à Roda dos Alimentos que, desde 1977 até hoje já teve várias versões (uma delas foi para introduzir a água, de que se tinham lamentavelmente esquecido)? Claro que os nossos “hábitos alimentares” se vão alterando; há ingredientes novos; há “estudos” que garantem a felicidade alimentar contra a opinião de outros “estudos”; e há a chamada dieta mediterrânica, o mais perfeito dos modelos alimentares conhecidos. Portanto, a Roda dos Alimentos pode girar à vontade, que o essencial está garantido. Mas ontem foi também o dia em que se soube, com escândalo!, que as máquinas de venda de comida nas universidades não vendem fruta fresca mas preferem os doces – o assunto deixou-me estarrecido. E logo nas universidades, à saída do jardim de infância e da primária! Quase chorei, a pensar que ninguém dá fruta aos meninos da universidade, nem lhes muda as fraldas, nem lhes prende o babete. O ar preocupado das autoridades sanitárias soou-me a coisa séria diante do abandono a que estão votadas aquelas crianças.
Da coluna diária do CM.
É muito difícil – mas não impossível – apanhar um crítico de restaurantes fora de Lisboa e do Porto. Geralmente, as secções de restaurantes concentram-se muito nas duas cidades porque é aí que há mais “mercado”, mais “clientes” e – o que é normal – mais “novidades”. Grande parte dos restaurantes da capital estão cada vez mais vocacionados para a crítica da especialidade (e para as imagens do Instagram) do que para o repouso, gosto e contentamento da espécie humana. Também se compreende isso, porque bom número dos críticos de restaurantes tem o fervor do experimentalismo, da última novidade (é o dever da imprensa) e também da fuga ao aborrecimento e ao tédio. Forçado a jantar fora uma série de noites (sou definitivamente um animal doméstico), tenho deparado com demasiada comida servida em tábuas ou placas de xisto, “empratada” em camadas e com os mesmos molhos, legumes e cortes em diagonal. Estamos no fim de um ciclo. Os cozinheiros de antanho não eram designers, nem as cozinhas laboratórios; o excesso de conhecimento providencia boas novidades mas comida um pouco para o pateta.
Da coluna diária do CM.
Ontem falei da reedição de Fogo na Noite Escura, de Fernando Namora (na Caminho, que tem reeditado alguns dos seus melhores livros, como Minas de São Francisco e Domingo à Tarde), e lembrei-me de Ferreira de Castro (1896-1974), por quem sempre tive grande ternura. A Cavalo de Ferro está a reeditar a sua obra – e é justo. A Selva (de 1930, traduzido para francês por Blaise Cendrars), bem como Emigrantes (1928), Terra Fria (1934) ou A Lã e a Neve (1947), são monumentos do chamado neo-realismo, de que acaba por ser fundador. Ferreira de Castro não era um autor escolar; ao contrário, fez escola – esteve adiante de outros, talvez por ser mais velho, mas teve a seu favor uma experiência de repórter que o ajudou a compor quadros notáveis de grande humanidade. Conhecia a vida humilde e o sofrimento pessoal, e escapou a ambas as condições; a sua obra ressente-se disso, como uma tentativa amarga de sobrevivência. Apesar do peso dessas obras de componente social, guardo simpatia por Tempestade (1940) e A Curva da Estrada (1950), e sorrio com aquela ingenuidade.
Da coluna diária do CM.
Durante anos, Fernando Namora foi uma espécie de best-seller da pátria. Depois da sua morte, em janeiro de 1989, caiu um manto de silêncio sobre a sua obra e sobre a sua própria figura, tão omnipresentes nos anos 70. Foram cometidas algumas injustiças depois disso – quase todas em nome da necessidade de “esquecer o neo-realismo. De verdade, há três bons romances de época na sua obra: Fogo na Noite Escura, de 1943, Casa da Malta, de 1945 (de que Minas de São Francisco, 1946, é uma espécie de segundo tomo), e ‘Domingo à Tarde’, de 1961. Há na sua lista alguns livros maus (sobretudo quando Namora nos oferece as suas opiniões, igualmente más, em holocausto), mas Fogo na Noite Escura, que a Caminho acaba de reeditar, não está nessa lista – muito pelo contrário. Li-o na minha adolescência e nunca envelheceu, falando de uma Coimbra salazarista, cinzenta, mapa de combates posteriores e de um conflito que Namora lia como um catecismo. Mas seria injusto não o recordar e tê-lo inacessível para leitores de hoje, que não perdem muito se o lerem. Era aquele tempo, era aquela escrita.
Da coluna diária do CM.
O problema “de segurança” que na semana passada afetou “redes sociais”, gerou desconforto em largas massas da população digital. À hora das refeições, algum nervosismo, mesmo: imagino a perplexidade de portadores de smartphone que aguardaram o regresso das redes para poderem almoçar ou jantar – porque são pessoas que não conseguem comer uma torrada em pão de sementes de papoila sem publicar uma foto no Instagram. Fazer uma coisa e publicitá-la logo de seguida é um hábito tremendo hoje em dia, sobretudo em se tratando de comida, onde há exibicionistas por todo o lado. No sábado passado ouvi na rádio fragmentos (não aguentei muito tempo) de três entrevistas com três senhoras que publicitavam as alegrias do vegetarianismo e, mesmo, do veganismo. Há nisto um certo sacerdócio: as pessoas passam da fase de não comer carne para o estádio superior, que é o da evangelização e do exibicionismo orgulhoso, quase sexual, a par com o desprezo que passam a nutrir pelo género humano em geral. Inexplicavelmente (eu, que como muito pouca carne), quando oiço estes sermões, apetece-me pedir um bife.
Da coluna diária do CM.
Assisti, com profundo interesse, a uma discussão sobre a natureza do cavalheirismo – na qual participavam algumas feministas, pessoas de responsabilidade em “políticas públicas” e gente que, inexplicavelmente, existe. A ideia é a de que o cavalheirismo é uma forma encapotada de machismo e até de abuso sexual, porque, ao agir com educação e donaire, os homens pretendem é passar à fornicação e ao apalpanço e, no fundo, quando seguram a porta para uma senhora passar desejam é submetê-la às suas ordens. O argumento procede. Sou do tempo em que éramos educados a levantar-nos quando uma senhora entrava ou saía da sala (para nos exibirmos), a oferecer-lhe o lugar no autocarro (para a ver melhor), a ajudá-la mudar o pneu do carro na estrada (para demonstrar a sua inabilidade), a não dizer palavrões diante de senhoras (para impressionar as suas mães) e até a cozinhar para elas (para lhes roubar as panelas) ou a satisfazer os seus legítimos desejos e vícios carnais (para que não pensem que somos, afinal, uns inúteis). Dito isto, concordo com as feministas – mas é só por gentileza machista.
Da coluna diária do CM.
É muito difícil falar de João Gilberto, que morreu anteontem (1931-2019) – mas é sempre necessário porque a sua voz, o seu violão, a sua teimosia e as suas interpretações são o demónio mais fulgurante da música brasileira do século XX. Falo de interpretações porque cada canção é uma canção. Veja-se “Chega de Saudade”, letra de Vinicius, música de António Carlos Jobim (tal como a genial “Garota de Ipanema”) – é boa, muito boa. Mas foi João Gilberto que a transformou em batida, harmonia, harpejo e voz da música brasileira, muito para lá da bossa nova. Preciosista, João Gilberto? Não. Obcecado até ao pormenor, ao mínimo voo de inseto que pode prejudicar a sua melancolia. Voz mansinha, falada. Tom de sussurro. Na verdade, Gilberto é um monumento inesquecível e obstinado; foi graças a essa obstinação que tudo aquilo que criou, no mundo música, do samba ao jazz (e volta), tem a marca de um génio que nada demovia. Na música brasileira não há talento tão influente como ele. Gilberto levou para as canções uma doçura especial. Estamos de luto por vários dias; depois, diremos: chega de saudade.
Da coluna diária do CM.
A Varkey Foundation é uma organização privada inglesa que se dedica à promoção da educação e do trabalho dos professores em todo o mundo (e que instituiu o prémio Global Teacher para o “melhor professor”). Um dos estudos que prepara é o Global Teacher Status, onde analisa a forma como os professores são respeitados em relação a outras profissões, qual o seu estatuto, as suas retribuições, a confiança que neles é depositada pelos pais, alunos e resto da comunidade. Nos dados de 2018 cabem 35 países: o último é o Brasil, o que não admira – e o primeiro é a China, o que só espanta os distraídos. Portugal está em 23.º lugar. Os três países do topo (China, Malásia e Taiwan) apresentam melhores resultados em várias matérias, mas é lá que os professores são mais respeitados e recrutados de entre os melhores 10% de cada curso. Portugal tem um longo caminho a percorrer. Precisamos de professores com vocação, que saibam conquistar e merecer uma boa imagem na comunidade – e sejam mais respeitados, a começar por si mesmos e pelo Estado, que vê na escola pública uma fábrica ao seu serviço.
Da coluna diária do CM.
Ideias simples. Veja a da Macdonald’s da Malásia, que lançou o Portuguese Chicken Burger, o hambúrguer português de frango. O anúncio (que pode ser visto no YouTube, por exemplo) é o que é: “Vêm aí os portugueses!” E lá aparecem a guitarra, os barquinhos e um Vasco da Gama estilizado e barbudo, que leva o frango e lhe acrescenta as malaguetas da Malásia. É um sucesso, ainda por cima com a frase forte “descubra os sabores de Portugal”, porque temos boa fama por aqueles sítios. Não faltou quem, nas chamadas “redes sociais”, sugerisse que se tratava de uma evocação de figuras da agressão ocidental e do colonialismo (“outra invasão colonial”), até porque estamos na época dos tontos e as coisas imbecis são mais baratas. Esta ideia simples do hambúrguer lembra o que se disse de Álvaro Santos Pereira, na altura ministro da economia, que sugeriu a internacionalização do pastel de nata. Gargalhada pelo país fora, muito parvinho e a gozar com “o Álvaro”. Acontece que o Álvaro tinha razão. O canal de economia Bloomberg dizia há tempos que se tratava da nova moda da globalização. Ideias simples.
Da coluna diária do CM.
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