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Que pena, Portugal; que pena não teres prolongado a vida e a glória de Ricardo Chibanga (1942-2019). Naquele belo poema de Alexandre O’Neill – “ó Portugal, se fosses só três sílabas/ de plástico, que era mais barato” – há referência a “toureiros da Golegã” e eu lembrei-me de Ricardo Chibanga, nascido em Lourenço Marques (no pobre bairro da Mafalala), que morreu anteontem na Golegã. Eu sei que as meninas e os meninos hoje não gostam de tauromaquia e ficam transidos de indignação com as praças de touros, mas isto não tem a ver com o assunto: Ricardo Chibanga faz parte da nossa galeria de retratos e devíamos amá-lo com orgulho. Recordo-me (era miúdo) do olhar, do sorriso e do “porte altivo do rosto” de Chibanga, o negro mais negro das arenas, o nosso toureiro preto vestido de ‘traje de luces’, desafiando um país branquinho “de plástico, que era mais barato”, levando cornadas e encarando a morte com galhardia. Chibanga interpretou (tal como outros, a lista é vã) o orgulho negro em Portugal. E devia – em conformidade – ser motivo de orgulho português, aplaudido de pé. Com solenidade.
Da coluna diária do CM.
«O resumo do antigo regime. Um país que produz muito pouco além de comerciantes, famílias ilustres, apelidos e casas de férias. O mal português é esse, o incesto. A endogamia. Banqueiros cujas filhas mais novas casaram com rapazes que dançavam bem nos anos setenta. Depois, os rapazes envelheceram e casaram com outras mulheres mais novas e ligeiramente mais tontas, mas conservaram a marca de origem. Filhos que receberam um apelido e que mais tarde entraram nos quadros do banco ou voltaram a casar com uma mulher que leva no nome qualquer coisa como Companhia Limitada. Sociedade Anónima. A mesma coisa há duzentos anos. Um avô que foi ministro da República e afilhado de um ministro da Monarquia. Uma avó que teve um amante diplomata em Roma. Temos os arquivos cheios de casos assim. Adolescentes que se conheceram no picadeiro, montando cavalos que também já são cruzamento entre famílias. Férias em Moledo, passeios no rio Minho, estadas no Algarve. Não. O Algarve é mais recente, é uma coisa recente. O Algarve é uma coisa do tempo de depois do ié-ié, do biquíni autorizado pela família, do tempo do segundo ou do terceiro divórcio quando a moral deixa de ser a porta de entrada e é só um corredor, uma passagem, uma genuflexão. Havia tios poderosos, ministros e subsecretários de Salazar que passavam férias com um criado ao pé do telefone. Salazar podia telefonar, se bem que Salazar nunca telefonasse. Sua excelência não gastava dinheiro em telefonemas – escrevia cartas, não tinha a febre da velocidade.» (Francisco José Viegas, O Colecionador de Erva)
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