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Todos os anos dou um curso sobre história da literatura policial; um dos temas é “por que razão as mulheres matam melhor?” e diverte-me bastante porque a pergunta tem razão de ser. Agora, soube que o instituto meteorológico inglês (que, felizmente, não é “do mar e da atmosfera”, mas mesmo meteorológico) se preocupa com o nome e o género atribuído às tempestades e furacões. Por um lado, nomes femininos para temporais não mobilizam tanto a atenção do público, que os considera mais amenos; por outro, parece que as tormentas a que foram dados nomes femininos se revelaram mais mortais e destruidores. O estudo não é totalmente patarata; a universidade do Illinois (EUA) diz que, quando se aproxima uma tempestade com nome masculino, as pessoas ficam em casa e protegem-se; quando a borrasca tem nome feminino, tendem a desvalorizar. Ora, as tempestades mais mortíferas em Inglaterra na última década foram a Doris, a Ophelia e a Emma. Mas as autoridades querem ver se há aqui um problema de machismo à espreita, ou de género, como agora se diz. E é capaz de haver, que a natureza é muito tonta.
Da coluna diária do CM.
O senhor ministro da Educação tem uma pituitária atrevida. Só isso explica que, ao ouvir um deputado criticar a “ideologia de género”, tenha anunciado que lhe cheirava a naftalina, acorrendo com um poema desse grande reacionário chamado Álvaro de Campos (o “Aviso por causa da moral”) como antídoto. Fez mal. Uma coisa é termos um ministro da educação que gosta de gracejar – outra, diferente, é termos um ministro que, além de gracejar, discute com sensatez e sem sobranceria as coisas que se lhe apresentam. Mesmo que não concordemos com as objeções colocadas pelo deputado Bruno Vitorino em relação à “ideologia de género” (trata-se de “ideologia” e não de ciência), essas questões devem ser colocadas com seriedade e não declaradas aceites com unanimidade, ligeireza e estultícia. É certo que o senhor ministro da Educação tem a seu favor uma maioria política parlamentar, mas isso não lhe garante nem sabedoria nem razão. A escola transformou-se num território de guerrilha e formação ideológica e caberia ao ministro da Educação defender a liberdade dos cidadãos e não fazer tantas graçolas.
Da coluna diária do CM.
Das palavras do Bispo do Porto sobre a ditadura do trabalho gerada pelos “novos senhores do mundo que dominam a economia”, e sobre o capitalismo como inimigo da família, fixámos sobretudo o que tinha a ver com o encerramento dos supermercados e centros comerciais ao domingo. É pena, porque o ataque de D. Manuel Linda ao capitalismo quotidiano é muito importante; o problema dos centros comerciais é outro. Encerrar os centros comerciais ao domingo até faz sentido como um ataque ao consumismo, mas coloca o problema do descanso obrigatório (que o judaísmo resolve com o ‘shabbat’, uma paragem radical do tempo em prol dos indivíduos e da família – de que o cristianismo já não dispõe) para os outros trabalhadores. Os dos cafés e restaurantes, das telecomunicações, do turismo em geral, dos transportes, da imprensa, dos museus, dos hospitais, dos aeroportos, etc. O Bispo do Porto não resolve isto com uma proibição, se bem que fosse bom que o mundo parasse um dia por semana. O problema é sermos cada vez menos espirituais. No seu rebanho, D. Manuel Linda sabe que é essa a doença crescente.
Da coluna diária do CM.
A história é muito simples. Na madrugada do 25 de Abril, a coluna militar que se dirigia a Lisboa tropeçou nos semáforos perto da Portela e parou porque a luz ficou vermelha. A marcha dos veículos ficou por instantes imobilizada diante de um sinal de trânsito, até que alguém lembrou que se tratava fazer uma revolução e não um exame do código da estrada sob o olhar da Polícia de Viação e Trânsito (era um nome de então). Quarenta e cinco anos depois, já não sei se esta história é verdadeira – tantas vezes ma repetiram (até por Carlos Beato – excelente homem que viria a ser presidente da Câmara de Grândola – que ia na dianteira da coluna) que deve ser. Tal como a do comandante do grupo de fuzileiros que ia tomar a PIDE e que foi bater com modos e educação à porta da polícia sacana (“Venho tomar esta casa em nome da Nação”, disse Miltinho, antes de um antigo camarada de armas, razoável, o mandar para trás). Pois cá estamos nós, quarenta e cinco anos depois, a recordar o semáforo da Portela e a porta da PIDE. Felizmente que tudo se recompôs na altura. É assim que se fazem revoluções.
Da coluna diária do CM.
A barbárie adormece-nos pela sua repetição em diferentes lugares e circunstâncias: igrejas católicas ou outros locais de culto vandalizados começa a ser assunto banal nas notícias. Não preciso de invocar o número de sinagogas, cemitérios e instituições judaicas ou de mesquitas atacadas – mas o registo de templos cristãos não parece incomodar os próprios, mesmo quando o número de vítimas cresce todos os anos e aparece em primeiro lugar no registo de atentados criminosos. Não apenas em África e na Ásia ou Médio Oriente, mas também pela Europa fora, onde a chamada “consciência cristã” se limita a, muito vagamente, ter sido educada numa ordem a que já ninguém liga e a que a opinião dominante não parece prestar muita atenção. Se os atentados no Sri Lanka decorrem num território de conflitos religiosos permanentes (mas onde os católicos nunca tinham sido atacados desta forma) – sobretudo entre hindus, muçulmanos e budistas –, o vandalismo anti-católico na Europa é silenciado de forma envergonhada pela imprensa. A história não procura vinganças. Mas a indiferença provoca-as bastante.
Da coluna diária do CM.
No “começo da internet”, como no apogeu da cultura televisiva, ninguém – a não ser conservadores contumazes, cavernícolas por feitio ou gente sem apego às maravilhas do mundo moderno, que nem telemóvel se preocupavam em ter – se atrevia a pôr em causa as vantagens dos novos tempos. Elas são enormes e inegáveis, indispensáveis ao nosso modo de vida atual. Mas hoje, que é o Dia Mundial do Livro, convém perguntarmo-nos se perdemos ou não alguma coisa com essas “vantagens dos novos tempos”. Perdemos. Provavelmente, como nos explicam os “especialistas em comunicação” (que nunca arriscam mais do que o seu nariz), nasceram outras formas de leitura e de conhecimento. Há um denominador comum a uni-las: o desprezo a que votam o livro e a leitura aprofundada, demorada e concentrada. Nada que incomode os profetas. No século VI, a regra de São Bento impunha não o direito de ler (que já era um avanço na época) mas o dever de ler: os monges eram obrigados a ler. Hoje, isso passa por ser uma excentricidade monástica. Mas foi essa regra que permitiu a civilização tal como a conhecemos. Lembrem-se.
Da coluna diária do CM.
Amanhã, 23 de abril – Dia Mundial do Livro – decorre em Lisboa a iniciativa Manifesta-te pela Leitura. Um pouco por todo o país, livrarias, bibliotecas e escolas assinalarão a data e vários responsáveis falarão, como convém, de “leitura & cidadania”, e é provável que outras entidades com certo peso declarem, com um otimismo apalhaçado, que se lê cada vez mais, que é necessário defender e promover a leitura e que “nunca como hoje” se leu assim. Como é evidente, trata-se de uma falsidade rocambolesca: o mercado do livro em Portugal perdeu cerca de 30% nos últimos anos (a situação não é diferente de outros países). Simplesmente, uma coisa é perder 30% em relação a milhões de leitores – outra coisa é perder 30% de quase nada. Nesta matéria, Portugal está nos últimos lugares nos estudos sobre hábitos de leitura nos inquéritos do Eurostat. A responsabilidade é de todos (a começar pelas “elites”) mas, sobretudo, da política escolar dos últimos 20 anos, que tem destruído a cultura do livro. Festejar a leitura é um sinal de fé e resistência – mas o desastre é demasiado visível e grave.
Da coluna diária do CM.
A Páscoa judaica celebrava-se cerca de mil anos antes de Cristo, assinalando a libertação dos escravos hebreus no Egito. Jesus celebrou essa Páscoa e transformou-se no intérprete de outra – que trata da sua vida, morte e ressurreição. A leitura dos evangelhos canónicos (respetivamente de Mateus, Marcos, Lucas e João) é uma experiência literária cativante e, para os cristãos, uma travessia da história. É curioso que, mesmo para não crentes, dois mil anos depois estes textos continuem a despertar uma torrente de interrogações, espantos, entusiasmos e emoções – que me interessam mais do que a fé absoluta. Falar disto é uma espécie de despropósito num mundo que reduz a Páscoa a confeitaria e chocolate, mas acredito que vale a pena insistir. Todos os anos há uma celebração importante a registar – mas sempre em nome da liberdade: ou em nome dos escravos que se libertam e atravessam o deserto, ou em nome de quem se liberta da lei da morte através de uma mensagem inovadora e tão cheia de ironia como de promessa. É isso que celebramos todos os anos. Boa Páscoa.
Da coluna diária do CM.
A criatividade linguística tem limites? Talvez. Em literatura, o limite é mais vasto – e as suas fronteiras são indefinidas. Mas convém que, na “linguagem oficial”, os incumbentes de certos cargos (do Presidente da República ao diretor das alfândegas ou o secretário de uma associação de bombeiros), não se exprimam nem por sonetos (como, por graçola, Eça sugeria aos políticos de antanho), nem como Odorico Paraguaçu, o personagem de telenovela brasileira. Já tivemos um caso extraordinário e infeliz, o do “inconseguimento” (protagonizado pela segunda figura do Estado na altura, Assunção Esteves); de cada vez que alguém diz “inconseguimento”, desatamos a rir porque se trata de alguém que “desconseguiu” falar corretamente, de acordo com as normas. Ontem, o primeiro-ministro, ao falar da decisão de não construir uma barragem no Alto Tâmega, mencionou a sua “desnecessidade”. A Língua Portuguesa (eu escrevo com maiúsculas, porque ela merece) leva hoje em dia tratos de polé sem necessidade nenhuma. É nestes casos que se pede que o exemplo venha de cima, e em termos que nos tranquilizem.
Da coluna diária do CM.
Que pena, Portugal; que pena não teres prolongado a vida e a glória de Ricardo Chibanga (1942-2019). Naquele belo poema de Alexandre O’Neill – “ó Portugal, se fosses só três sílabas/ de plástico, que era mais barato” – há referência a “toureiros da Golegã” e eu lembrei-me de Ricardo Chibanga, nascido em Lourenço Marques (no pobre bairro da Mafalala), que morreu anteontem na Golegã. Eu sei que as meninas e os meninos hoje não gostam de tauromaquia e ficam transidos de indignação com as praças de touros, mas isto não tem a ver com o assunto: Ricardo Chibanga faz parte da nossa galeria de retratos e devíamos amá-lo com orgulho. Recordo-me (era miúdo) do olhar, do sorriso e do “porte altivo do rosto” de Chibanga, o negro mais negro das arenas, o nosso toureiro preto vestido de ‘traje de luces’, desafiando um país branquinho “de plástico, que era mais barato”, levando cornadas e encarando a morte com galhardia. Chibanga interpretou (tal como outros, a lista é vã) o orgulho negro em Portugal. E devia – em conformidade – ser motivo de orgulho português, aplaudido de pé. Com solenidade.
Da coluna diária do CM.
«O resumo do antigo regime. Um país que produz muito pouco além de comerciantes, famílias ilustres, apelidos e casas de férias. O mal português é esse, o incesto. A endogamia. Banqueiros cujas filhas mais novas casaram com rapazes que dançavam bem nos anos setenta. Depois, os rapazes envelheceram e casaram com outras mulheres mais novas e ligeiramente mais tontas, mas conservaram a marca de origem. Filhos que receberam um apelido e que mais tarde entraram nos quadros do banco ou voltaram a casar com uma mulher que leva no nome qualquer coisa como Companhia Limitada. Sociedade Anónima. A mesma coisa há duzentos anos. Um avô que foi ministro da República e afilhado de um ministro da Monarquia. Uma avó que teve um amante diplomata em Roma. Temos os arquivos cheios de casos assim. Adolescentes que se conheceram no picadeiro, montando cavalos que também já são cruzamento entre famílias. Férias em Moledo, passeios no rio Minho, estadas no Algarve. Não. O Algarve é mais recente, é uma coisa recente. O Algarve é uma coisa do tempo de depois do ié-ié, do biquíni autorizado pela família, do tempo do segundo ou do terceiro divórcio quando a moral deixa de ser a porta de entrada e é só um corredor, uma passagem, uma genuflexão. Havia tios poderosos, ministros e subsecretários de Salazar que passavam férias com um criado ao pé do telefone. Salazar podia telefonar, se bem que Salazar nunca telefonasse. Sua excelência não gastava dinheiro em telefonemas – escrevia cartas, não tinha a febre da velocidade.» (Francisco José Viegas, O Colecionador de Erva)
Passei a semana a ver a sétima temporada da Guerra dos Tronos como preparação para o primeiro episódio da nova série, que ainda não vi e, provavelmente, não verei esta semana. Não aguentaria passar uma semana a imaginar como seria o segundo episódio e, provavelmente, não aguentaria passar outra semana a imaginar como seria o terceiro – o que significa que não sei quando verei a oitava e derradeira temporada. O ideal seria isolar-me do mundo e evitar toda e qualquer conversa sobre A Guerra dos Tronos. Há quem pense que isto é um sinal de adolescência retardada ou atrasada. Têm razão: é. A Guerra dos Tronos tem tudo o que convém a um espírito que não quer perder a capacidade de imaginar: horror, sexo, morte, dragões, violência, fantasmas, medo, magia, superstição, poder, superação, humor e também poesia. Mesmo assim, tem menos ilusionismo do que as últimas declarações do ministro Centeno e menos humor do que as interessantes regras do concurso para guarda florestal. O problema é que daqui a um mês e meio estará tudo acabado. Na Guerra dos Tronos, claro. O resto continua.
Da coluna diária do CM.
1889 é o ano do nascimento de Salazar, de Hitler e do último rei português, D. Manuel II (e, já agora, do filósofo Martin Heidegger) – e de Charlie Chaplin, em Londres, numa família de artistas do espectáculo; o pai, alcoólico, morreu de cirrose; a mãe, foi internada por ter “problemas mentais”. Charlot, a grande criação de Chaplin, estreou-se no cinema em 1914, nos EUA, onde o ator e realizador entrara quatro anos antes. Todas as peripécias biográficas são conhecidas – tal como as pantominas de Charlot, que hoje não comovem crianças nem adolescentes mas que há duas gerações ainda faziam rir toda a gente. A Quimera do Ouro (de 1925) é talvez o seu grande filme, mas eu prefiro O Grande Ditador (1940, no apogeu da II Guerra – a cena de Chaplin vestido de Hitler, e a fazer saltitar o globo terrestre, é a mais conhecida), As Luzes da Ribalta (1953, com Buster Keaton) ou Tempos Modernos (1936), para lá de todos ou quase todas as aparições de Charlot. Inovador no cinema mudo, Chaplin e Charlot andam de mãos dadas na nossa imaginação. Amanhã passam 130 anos sobre o seu nascimento.
Da coluna diária do CM.
Várias escolas públicas de Barcelona decidiram varrer os ficheiros das suas bibliotecas a fim de eliminar os livros considerados sexistas. Entre estes, encontram-se Capuchinho Vermelho, Cinderela ou Branca de Neve – e, enfim, cerca de 30% dos títulos encontrados. São os livros que as fascistas de Barcelona consideram “tóxicos”; os restantes dividem-se entre “problemáticos” (60%) e os “adequados a uma perspetiva de género” (uns pobres 10%). Se um dia estas fascistas decidem que os “problemáticos” também devem ser retirados das estantes, bem podem acender uma fogueira e fazer o que fizeram os seus antepassados da Inquisição, a cujo mundo pertencem. Exagero? Uma sindicalista (as centrais sindicais espanholas têm grupos de fascistas pedagógicos) já o lembrou: “Não vamos acender uma fogueira, mas devemos refletir.” Esta purga é organizada por professores, pais e mães imbecis, sindicalistas e loucos indeterminados, mas ameaça fazer lei por todo o lado. Eu até aceitaria discutir o assunto com alguma cordialidade, mas prefiro começar pelo mais básico: chamando fascistas às fascistas.
Da coluna diária do CM.
Há dois anos, com Magris.
Claudio Magris completa hoje 80 anos. Não falo dele por ser uma espécie de “eterno candidato” ao Nobel (aquele prémio que hoje é uma espécie de fancaria para iletrados nórdicos, como se viu), mas por ser um dos grandes pensadores da Europa – além de apaixonado de Portugal. Justamente, escreveu um conto, “O Conde”, sobre a figura do “Duque da Ribeira”, essa personagem incontornável da memória portuense. O seu Danúbio é um belíssimo livro de viagem e uma redescoberta da cultura europeia, único e duradouro. Pensador complexo e prosador simples, clássico e atrevido, nostálgico de “uma Europa dos cafés” (como George Steiner, outro grande mestre), por vezes a obra de Magris recorda-nos que somos um continente flutuante, tanto à deriva como à procura das suas raízes. Este italiano (de Trieste) fascinado pela cultura alemã e pelas línguas europeias, autor de Alfabetos e de Às Cegas, previa há muito que a Europa se transformaria nisto: um lugar envelhecido e tempestuoso – mas o único lugar onde sabemos viver em paz com a nossa ideia de felicidade e a memória dos nossos antepassados.
Da coluna diária do CM.
Coro de vergonha ao saber que um grupo de trabalho governamental vai propor que o Censos de 2021 tenha uma pergunta sobre a “origem étnico-racial” de cada cidadão, ou seja, se se é “branco, negro, cigano ou asiático”. Compreendo que a maquineta ideológica precise destes dados para tirar conclusões sobre “racismo e xenofobia” – quando o que é necessário é tirar conclusões sobre integração social e rendimento familiar (mas isso não lhes interessa, porque, moderninhos como são, já não acreditam na luta de classes). Mas tenho vergonha porque, ainda que essa informação não figure nos Cartões de Cidadão, ela foi pedida numa sondagem que garante que 78% dos portugueses quer essa informação, e que 80% está disposto a dá-la. Eu não quero. Não quero um país de guetos e de etnias em trincheiras. Quero um país onde a etnia, a raça, a religião, a língua ou o sexo não contem para o Estado. E em que sejam punidos os que se atreverem a discriminar alguém com base nestas características. E coro de vergonha ao saber que o grupo tomou a sua decisão com o apoio de uma sondagem onde há tanto racista iludido.
Da coluna diária do CM.
Em 1974, pelo 25 de Abril, o top de discos português era dominado por Terry Jacks, um canadiano que cantava ‘Seasons in the Sun’ – uma das canções preferidas de Curt Cobain, o líder dos Nirvana. Mas o autor da versão original (‘Le Moribond’) era um belga, Jacques Brel, e tinha aparecido em 1961, no álbum Marieke, ao lado de canções inesquecíveis como ‘On n’oublie rien’ ou ‘Le prochain amour’. Brel (1929-1978) é o meu cantor, juntamente com Leonard Cohen ou Bob Dylan; nasceu há exatamente 90 anos cumpridos hoje e merece ser ouvido com solenidade e admiração. ‘Ne me quite pas’, ‘La valse a mille temps’, ‘Quand on n’a que l’amour’, ‘Marieke’, ‘Les bonbons’ – a lista de canções de Brel é vasta para tão pouco tempo de carreira e de vida (dedicou-se ao cinema a partir de 1967 –morreu aos 49 anos). Filho da melancolia belga (é o autor da belíssima ‘Le plat pays’), católico e bilingue (francês e flamengo) de Bruxelas, Brel cantou toda a tristeza possível, a beleza, o riso e a ironia. Está sepultado nas suas amadas ilhas Marquesas, na Polinésia, a dois passos do pintor Paul Gauguin.
Da coluna diária do CM.
Uma pessoa começa por ler as notícias sobre a nomeação de familiares (e relativos”, resumindo) para cargos políticos no Estado com alguma distância, esperando para ter o retrato completo. Depois, a lista aumenta e torna-se preocupante. Já aqui escrevi que o mais grave de tudo não é o escrutínio destes casos presentes – mas o que a situação revela quanto à endogamia da classe dirigente, ao seu escol de cumplicidades e à falta de mobilidade social que lhe está na base desde o século XIX. Ao contrário do que se diz, a campanha contra esses casos de familiaridade excessiva (não parece haver ilegalidade flagrante em nenhum deles), que acabam por constituir uma rede de amizades, não é a demonstração do “desespero da direita” diante dos sucessos governamentais, ou uma patetice que antecipa a silly season. É, além de tudo o resto, uma questão de pudor social. E de falta de elegância no exercício do poder e nas nomeações para cargos não eleitos que dependem de confiança política e pessoal. O The New York Times ficou espantado com o despudor. Nós não ficamos espantados mas também não apreciamos o gesto.
Da coluna diária do CM.
Conheci Hugo Claus em Antuérpia, a sua cidade natal – emblema da Flandres, terra de pintores (como Brueghel, Rubens, Snyders ou Matsys), grandes tipógrafos (Plantin ou Moretus), músicos, negociantes e lapidadores de diamantes. Claus, ele próprio filho de um tipógrafo, habituado ao cheiro da tinta e do papel impresso, foi um dos grandes escritores europeus do século XX (1929-2008) e autor de um dos mais belos livros sobre a Bélgica e a Europa, A Tristeza dos Belgas (Le Chagrin des Belges) – um romance publicado em Portugal infelizmente sem grande sucesso, e que contribuiu para que o seu nome estivesse quase sempre na lista dos candidatos mais prováveis ao Nobel da literatura. É um gigantesco livro passado durante a II Guerra, um retrato do nacionalismo flamengo e das suas contradições, bem como da nostalgia de um país impossível, sitiado e minúsculo. Há passagens que deviam ser lidas ao som de Jacques Brel. Viveu com Sylvia Kristel, a atriz de Emmanuelle (na sala, em Antuérpia, havia uma cadeira igual à do filme, que eu cobicei). Completaria amanhã 90 anos de solidão belga.
Da coluna diária do CM.
O humorista Diogo Faro foi mandado embora do Irão – foi ontem anunciado pelo próprio. Parece que a República Islâmica do Irão não gosta de humoristas, especialmente dos que, como Diogo Faro, andam “a ser marxistas culturais, a defender a igualdade de género e os direitos LGBTI” (são expressões do próprio). Estou com Diogo Faro, embora eu gostasse de ir ao Irão, especialmente a Shiraz. Seja como for, acho estranho que nenhum “ativista cultural” (como agora se diz) tenha já antes avisado os visitantes do Irão de que podem enfrentar problemas desta natureza mal aterrem em Teerão – mas se tenham esfalfado a recomendar a Conan Osíris que não vá a Israel porque é um país onde uma pessoa chamada Conan Osíris pode até vencer o eurofestival, ser marxista cultural, e defender a igualdade de género ou os direitos LGBT (em Israel ambos estão garantidos historicamente), ao contrário de países com os quais os “ativistas” se solidarizam, e nos quais a comunidade LGBT e as mulheres são apedrejadas até à morte com bastante aplicação e publicidade. Ainda bem que Diogo Faro regressou incólume.
Da coluna diária do CM.
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