Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
O ataque ontem desferido por Michael Cohen a Donald Trump, numa comissão do Congresso dos EUA, é praticamente letal – de certa maneira, completa o retrato de um homem que mente despudoradamente, que pensa não existirem entraves nem limites à sua atuação, e que é, ele próprio, uma soma de disparates. As torpezas cometidas por Trump durante este seu primeiro mandato devem somar-se às que cometeu antes de ser eleito – isso completa o retrato de um homem vil, irrefletido, desenfreado e, que me perdoem, feio demais para ser eleito presidente dos EUA. A forma como o partido Republicano ficou refém da criatura dá uma ideia, ainda que pálida, de como a consciência conservadora perdeu tantas batalhas – Trump é tudo menos um conservador: é um troca-tintas. Acontece que “do outro lado”, o democrata, a lapardice não é menor. Bernie Sanders, que a esquerda europeia tanto beijoca, é o mesmo Bernie que, em 1986, antes da desagregação final da URSS, visita o país dos sovietes e se declara maravilhado com uma das ditaduras mais sanguinárias, estapafúrdias e envilecidas da história. Lindo cenário.
Da coluna diária do CM.
Dando-se o caso de – como qualquer pessoa normal e na posse de parte das suas faculdades – ter passado a noite de domingo a dormir, foi com grande espírito de sacrifício e de missão que vi, em gravação, parte da “cerimónia da entrega dos Óscares”. Foi muito penoso, e não me refiro aos trailers dos filmes – a única parte mais ou menos interessante da coisa. Atores chatos (com poucas exceções todos pareceram largamente patetas) e atrizes chatas peroraram ao longo de duas horas, vestiram coisas inenarráveis e deram gritinhos histéricos. O momento mais deprimente da noite (o celebrado dueto entre Lady Gaga e Bradley Cooper) alternou com sugestões, alusões e confusões acerca dos EUA, sexo e outros assuntos importantes. Toda a gente estava muito tensa, com medo de dizer piadas. Os comentadores, muito ilustrados, gemiam observações sobre rabos de palha de produtores e realizadores. Para cúmulo, aquela mistela não tinha apresentador (Billy Crystal devia ter sido entronizado como mordomo geral e a título vitalício) e toda a gente pareceu contagiar-se de inanidades parvinhas. Uma seca.
Da coluna diária do CM.
Deus nos livre de comentar as doutíssimas palavras do juiz Neto Moura (que se tem distinguido por desvalorizar agressões de violência doméstica). Acontece que nessas sentenças há parágrafos, passagens, frases notáveis, e não me refiro a matéria jurídica; são esses pedacinhos que me preocupam, não a sua conformidade ou concordância com a lei. Digamos, entre nós, que um parágrafo do meretíssimo Neto Moura há de estar de acordo com os códigos (por isso ele é juiz) – pode é não estar de acordo connosco, espécie humana. Por exemplo, num texto que ontem li, o juiz Neto Moura desagrava a sentença de um tribunal de Matosinhos que condenara um sujeito a usar pulseira electrónica (e três anos de pena suspensa) depois de ter agredido gravemente a ex-mulher e de, consequentemente, a ter ameaçado de morte. Para o Dr. Neto Moura a pulseira é um exagero, bem como a pena em geral: o energúmeno podia perfeitamente aproximar-se da ex-mulher passado um ano de lhe ter aplicado uns murros. A justiça da espécie humana é que não se aproxima, nem um pouco, da do Dr. Neto Moura, o que é uma pena.
Onze milhões de almas, praticamente – é tudo quanto somos. Parte delas estavam ontem indignadas com a situação de abandono a que chegou o edifício do Teatro Portalegrense, inaugurado em 1854 e que está à venda desde 2013, até ter chegado às páginas da OLX, onde o anúncio da secção de imobiliário pede 350 mil euros. Por volta de 1943 uma inspeção tinha já declarado que o edifício não tinha condições para a representação de espectáculos – e na década de 80, a situação era bem degradante. Pela província fora, há outros edifícios semelhantes; representam um país em que havia vida na província e gente nas escolas. Agora há sobretudo exceções pontuais. Os Verdes, uma delegação do PCP, interpelou o governo porque o edifício é “propriedade de privados”, suprema afronta – e a ministra da cultura pediu tempo para avaliar eventual classificação, uma vez que foi aí representada a primeira peça de Régio (muito má). A câmara de Portalegre diz que não pode fazer nada – mas classificou-o de “interesse municipal” em 2010. São uma pena, as ruínas do Portalegrense. Mas uma pena já anunciada há muito.
Da coluna diária do CM.
O rei D. Pedro IV é o autor suspeito de uma frase controversa antes de iniciar a guerra civil: “Portugueses, não me obrigueis a libertar-vos pela força!” Justamente, o governo inglês acaba de emitir uma diretiva em que impõe a liberdade pela força, proibindo das associações de estudantes e de inteletuais de proibir conferências, aulas, visitas de professores, bem como “lugares seguros” em que os estudantes não se sintam agredidos por ideias que não partilham. Em tempos, um departamento de uma universidade portuguesa proibiu um debate sobre o Islão porque ele seria “ofensivo” e, recentemente, um autor foi também proibido de ir falar a uma outra universidade. Em Inglaterra (nos EUA seria pior), onde os maluquinhos tomaram já as rédeas das instituições de ensino, foi necessário que o governo chegasse a este ponto, tal como há muitos anos protegia os oradores furiosos do Speakers Corner londrino e defendia o seu direito a dizer o que lhes apetecesse sem serem perseguidos. Com a demissão cívica dos inteletuais e professores, criou-se um clima de censura que é necessário combater.
Da coluna diária do CM.
A editora Guerra e Paz publicou, na sua coleção de clássicos, um dos autores mais subestimados da nossa literatura. Quando morreu, Eça de Queirós dedicou-lhe uma frase tão genial quanto cruel: Júlio Dinis (1839-1871) viveu de leve, escreveu de leve, morreu de leve (aos 31 anos). A verdade é que Os Fidalgos da Casa Mourisca é o romance mais programático do constitucionalismo – e As Pupilas do Senhor Reitor e Morgadinha dos Canaviais dois retratos (aparentemente inocentes) do regime rural e do país. Já Uma Família Inglesa (de 1868), acabado de publicar, é um dos grandes livros do Porto, um folhetim admirável e romântico que centrado na história de Carlos Whitestone e de Cecília Quintino (e do “anjo” Jenny). Portuenses e ingleses, ricos e remediados, as personagens da cidade burguesa e conservadora entram no romance iluminados pela beleza discreta que Júlio Dinis persegue e acaba por captar sem perceber que o momento é genial. Uma Família Inglesa é um romance para ser filmado sem a perversidade da classe média portuense, mas com parte da sua sabedoria. É um dever relê-lo.
Da coluna diária do CM.
Li os primeiros livros de Len Deighton fascinado com o seu conhecimento do mundo da espionagem e dos bastidores da história militar da II Guerra – estão publicados em Portugal Adeus, Mickey Mouse, O Que Escondem as Águas e Um Cérebro de um Bilião de Dólares (na Gradiva), mas há muito esgotados, o que é uma pena. Deighton é um escritor formidável e, além disso, deixa para trás uma biografia cheia de boas referências: trabalhou como empregado de bar em comboios, comissário de bordo em aviões, ilustrador e publicitário, colaborador da espionagem, historiador militar, gastrónomo, autor de livros de cozinha e de guias de viagem (foi editor da secção de viagens da Playboy), produtor de cinema – e autor de maravilhosos thrillers (alguns transformados em filme com Michael Caine, que interpreta o papel de Harry Palmer). Alguns dos seus livros, sobretudo os da série com o personagem Bernard Samson, são um prodígio de humor negro e cinismo sobre o mundo da espionagem, cheio de tiques e traições. Vale a pena relê-los. Hoje, Deighton –·que vive em Portugal – festeja os seus 90 anos.
Da coluna diária do CM.
Os jornais anunciaram, com escândalo, que Portugal bateu a Rússia em consumo de álcool (ó Rússia, venham daí esses fígados!). Com a chancela da Organização Mundial de Saúde, esses números foram papagueados por jornalistas consumidores de sumos verdejantes e quinoa orgânica. Fui ver. Não era bem assim: Portugal baixou o consumo de álcool desde 2011. De 14,6 litros por cabeça passámos para 12,3 – a descida mais significativa foi da cerveja, que baixou de 31 para 26% de todo o álcool, sendo que na poderosa Rússia cerca de 40% do álcool consumido é, vá lá, vodka (o nosso nível de consumo de “bebidas brancas” fica-se pelos 9%). Para os parvinhos e moralistas que ficaram combalidos com o nosso “alcoolismo”, beber vodka ou beber cerveja e vinho é a mesma coisa. Não é. Os problemas de saúde devido ao álcool são de 9,3% na Rússia e apenas de 3 aqui. Beber excelentes vinhos e boas cervejas não nos prejudica como os álcoois do norte da Europa, onde caem redondos porque não sabem beber nem conhecem a arte de comer. Assim cai o mito da vitória alcoólica sobre a Rússia. Que pena, ó saudáveis da treta.
Da coluna diária do CM.
Parece que o estádio municipal de Braga, construído para o Euro 2004, começou com um orçamento de 65 milhões e poderá, no total, chegar aos 180. Os deslizes desta natureza aconteceram com outros estádios – que, além do mais, poderão ser demolidos (como o de Aveiro, prodígio de mau gosto) e transformados em outra coisa qualquer. A “indústria de eventos” é de cálculos difíceis e representa um investimento não a fundo perdido, mas a “fundo desconhecido”. A embaixada do rei D. Manuel I ao papa Leão X, em 1514, somou um valor de 500 mil cruzados em oferendas, muito mais do que estava previsto. Foi Leão X que esteve na origem das grandes críticas de Lutero – os fundos portugueses prolongaram o fausto da Roma de então, que vendia indulgências e licenças; foi um negócio discutível, mas mais ou menos claro. Já o dos estádios do Euro 2004 nasceram no período de “dinheiro a rodos” que quatro anos depois terminou em depressão e ficará sempre obscuro. Além do caso da Caixa, o dos estádios continua a atormentar-me. Mas como é conluio com o futebol, trata-se de interesse nacional, não é verdade?
Da coluna diária do CM.
Durante cerca de quatro anos e meio, Charles Darwin (1809-1882) esteve fora de casa – durante a célebre viagem do navio Beagle. E o que fez ele durante esse tempo? Dedicou-se a estudar fósseis e animais vivos (como a vida das cotovias, dos tentilhões, ornitorrincos ou das tartarugas), desde conchas de mexilhões a famílias de tatus e preguiças. Para um observador externo, a vida de Darwin, que até aí estudara medicina, teologia (ambas sem muito sucesso) e geologia, não seria muito interessante – salvo a viagem a bordo do HMS Beagle, propriamente dita, que o levou de Londres à América do Sul e à Austrália, com passagem nos Açores e em Cabo Verde. No regresso, trazia os elementos para um livro que mudaria verdadeiramente o mundo, Da Origem das Espécies por Meio da Selecção Natural ou a Preservação de Raças Favorecidas na Luta pela Vida, publicado em 1859, e no qual observava que as espécies se transformam, evoluem, modificam e melhoram a forma como habitam na Terra. O humilde, estudioso e paciente Darwin, de quem passam hoje 210 anos do seu nascimento, é um dos pais da modernidade.
Da coluna diária do CM.
© Fotografia do editor João Rodrigues.
Poeta maravilhoso – de “tom menor”, talvez –, poeta de pequenos instantes e de grandes recordações, sem épica nem pompa, desmontando verso sobre verso os grandes mitos da própria poesia. Fernando Assis Pacheco (1937-1995) começou por escrever nos anos sessenta (1963, Cuidar dos Vivos) sobre a guerra colonial (1972, Catalabanza, Quilolo e Volta e seguintes), até chegar ao grande momento de Variações em Sousa (1987), onde a grande melancolia se cruza com a ironia amarga, os repentes de uma vida dedicada a observar os outros – e o mundo que nunca passa: os pirilampos de Pardilhó, a família, o bairro, a herança galega, o trabalho de jornalista, a relação com a literatura, a marca anti-romântica. Uma poesia assim passou ao lado dos crepúsculos, tanto como dos empertigados: quase como se não fosse. Reunida agora, de novo (já teve várias edições anteriores, desde 1991), essa poesia que nos faz rir e chorar está em A Musa Irregular, organizada por Abel Barros Baptista, com um posfácio de Manuel Gusmão (edição Tinta da China). É bom ver regressar o Assis às livrarias, caramba.
Da coluna diária do CM.
A imagem é do psicólogo Filipe Nunes Vicente e, como de costume, é certeira: “A violência não é ‘doméstica’, não é uma prateleira de esfregonas. É sexual, de posse, de reacção à mudança e emancipação delas.” Clamar contra a “violência doméstica” a propósito destes crimes, é meter tudo no mesmo saco para desvalorizar o essencial. Os crimes do Seixal, como os outros recentes, são violência brutal, no limite do humano. Gente que não suporta a rejeição ou a contradição, a perda de poder – e usa a força bruta como um esteróide de ginásio contra a emancipação das mulheres e a sua crescente autonomia e liberdade. É assassínio do fisicamente mais fraco – a que a justiça assiste, sentadinha sobre os códigos, apesar dos avisos da polícia. Leis mais duras? Sim. E que punam os sacanas desde o primeiro abuso. Que os afastem das vítimas, com vigilância apertada. Que penalizem os crimes contra as pessoas (que têm sido desvalorizados). Que os ponham com dono e a grilhetas, aos abusadores de crianças e de mulheres – como exemplo preventivo da luta contra a barbárie e a violência.
Da coluna diária do CM.
O papa visitou os Emirados Árabes. Se a ignorância fosse cotada na Bolsa, haveria muita gente rica ao fim destas 48 horas em que o chefe da Igreja Católica esteve no Golfo: em Portugal o assunto não teve grande destaque e, pelo que ouvi em algumas televisões, alguns cavalheiros trataram o acontecimento em tom cómicos. Acontece que este foi um dos encontros mais importantes do papa com um líder muçulmano, na altura em que os cristãos estão a sofrer perseguições em África, na Ásia e no Médio Oriente (sem falar da Europa, mas isso é outro problema). Ao conseguir, com o Imã da universidade de Al-Azhar (um dos grandes centros de irradiação de teologia islâmica), assinar uma declaração condenando a violência e a intolerância religiosa, ou exortando ao fim das discriminação das mulheres. Em Abu Dhabi o papa estabeleceu uma ponte para o Islão (sunita) e um miradouro sobre os territórios do outro lado do Golfo; é um passo importante para alguma esperança entre gente de bem. Eu, que não sou papista nem faço parte da legião de fãs de Francisco, acho que se tratou de um momento raríssimo.
Da coluna diária do CM.
A história da Venezuela é triste e mostra como aquele miserável populismo caudilhista destruiu o país. Assisti uma vez a um sermão dominical de Hugo Chávez e bastou-me, porque tinha visitado supermercados vazios, bairros pobres das colinas de La Guaira, chantagem na obtenção dos cartões de saúde (“Se não és do partido, não tens.”), perseguição aos comerciantes, repressão nas escolas e nas ruas, criação de uma burguesia bolivariana (a “boliburguesía”) arrogante e protegida pelos militares (comprados a peso de ouro), e de uma apertada vigilância política entregue a oficiais cubanos – o retrato não bastou para parte da esquerda portuguesa e europeia. Depois de falhadas as revoluções na Europa, toca a apoiá-las na América Latina, onde os filósofos do século XVIII tinham visto o “bom selvagem” e os patetas do século XX queriam plantar o “bom revolucionário”. Mas nem com o retrato do desastre, da repressão e da loucura de Maduro essa esquerda deixa de festejar, publicamente ou não, a “revolução bolivariana”. Não lhes dói; é tudo lá longe dos gabinetes da universidade ou do parlamento.
Da coluna diária do CM.
Mesmo que a sua poesia tenha sido sobrevalorizada por razões não literárias (‘Folhas Caídas’ tem momentos de certa valia), restam dois ou três momentos importantes na sua obra e da sua oratória, mas nenhum comparável a Viagens na Minha Terra (e sim, Frei Luís de Sousa vale a pena, tal como alguns versos do Retrato de Vénus). Só por isso vale a pena assinalar que passam hoje 220 anos sobre o nascimento de Almeida Garrett (1799-1854), no Porto. Exilado em 1823, depois da subida ao poder de D. Miguel, só regressa definitivamente a Portugal em 1833, depois de Paris e Londres. Deputado, vagamente ministro, figura do Setembrismo (a ala esquerda do campo liberal), cronista-mor do reino, “renovador do teatro nacional”, literato, orador cheio de verniz, visconde do regime – mas nada se compara às Viagens (1846), um texto desabrido, fora de todos os géneros (misturando-os), que Garrett nunca soube que era mesmo genial e inovador. Geografia, política, literatura, simplificação panfletária, história, incursões autobiográficas, as Viagens têm tudo, até talento. Dá prazer lê-lo.
Da coluna diária do CM.
Não fosse aquele acidente estúpido (electrocutado por uma lâmpada durante o banho, em março de 1978) e Claude François podia festejar hoje o seu octogésimo aniversário, por ter nascido (família franco-siciliana) à beira do canal de Suez, em Ismaïlia, Egito, no primeiro dia de fevereiro de 1939. Em 1956, quando os estrangeiros foram expulsos do país, Claude vai para França e torna-se empregado bancário; começou por tocar bateria numa orquestra do clube de futebol de Monte Carlo e por cantar temas de Aznavour ou Ray Charles. Em 1961, Brigitte Bardot (a quem deu lições de dança) e Sacha Distel convencem-no a ir para Paris, onde estrelou no twist e no ié-ié. Notável dançarino. Grande êxitos? Eternos e desprezados: ‘Belles, belles, belles’, ‘Cette année-là’, ‘Lundi au Soleil’, ‘Magnolias Forever’ e, em especial, ‘Comme d’habitude’, depois cantada como ‘My Way’ por Paul Anka, Elvis e Sinatra (mas era dele, sabia?), sucesso dos sucessos. Hoje poucos se recordam da sua voz e do seu rosto – sorrimos, ignorantes, ao ouvir o nome de Claude François, mas ele merece esta homenagem pop e romântica.
Da coluna diária do CM.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.