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O mundo das letras & das artes incomoda-se muito; frequentemente escandaliza-se – mas discute pouco. Gosta de unanimidades e de verdades banais, daquelas que põem toda a gente de acordo. Quem diz das letras, diz das artes. Em Guadalajara, no México, António Lobo Antunes contrariou mais uma vez essa unanimidade de tons cinzentos; eu admiro-o por isso, mesmo que não concorde com ele. Diz coisas incómodas, inesperadas, que deixam as audiências em suspenso. As autoridades esperam um escritor que seja escritor, de casaca e comenda, e que não incomode muito – Lobo Antunes é como os personagens dos seus livros: nunca fazem o que está no guião (lembro-me sempre de O Manual dos Inquisidores, um dos seus romances mais perfeitos), enternece-se em público, os olhos brilham, ninguém sabe o que vai dizer a seguir. É esse o seu enorme talento. Chegou ao ponto ideal: não deve favores. Dizem que tem “um temperamento difícil” e há histórias sobre o seu mau feitio. Que pena, quererem um funcionário das letras, estimado e respeitador, e lhes sair um Lobo Antunes.
Falar de velharias reconcilia-nos com uma estranha sabedoria, a do tempo que já passou. Uma dessas velharias é Clive Staples Lewis, conhecido apenas como C.S.Lewis – poeta bissexto e romancista, além de um dos grandes críticos literários do século XX. Lewis (1898-1963) nasceu há 120 anos, assinalados hoje, em Belfast e é um dos representantes da velha Inglaterra literária. Os seus livros mais conhecidos compõem as Crónicas de Nárnia, cuja adaptação ao cinema, cheia de efeitos especiais, ganhou milhões de adeptos e, depois, felizmente, leitores encantados. As Crónicas estão atravessadas pelo temor e pelo prazer do desconhecido, com referências às mitologias nórdicas, grega e ao cristianismo, e são um produto do pós-guerra (foram publicadas entre 1949 e 1954), diante do espectáculo devastador de um continente destruído. Amigo de autores como J.R.R. Tolkien (de quem leu os livros, O Hobbit e O Senhor dos Anéis, antes de serem publicados), Chesterton ou T.S. Eliot, o maior poeta da sua geração, C.S.Lewis foi um teólogo carinhoso e um excelente leitor e crítico de literatura.
É difícil fazer o elogio do futebol nestes dias, depois dos acontecimentos violentos de Buenos Aires — mas também depois de parte do “futebol português” se ter transformado num ringue para energúmenos armados, traficantes, advogados e polícias se cruzarem fora e dentro dos estádios. O problema está na génese do próprio futebol. O editor e psicanalista Vasco Santos publicou recentemente um artigo (no blogue da Sociedade Portuguesa de Psicanálise) sobre o futebol como um jogo de substituição dos próprios jogos de guerra; ele tem razão — a fé na tribo substitui a avaliação e a ponderação. Mas quem quer ver ponderação num jogo de bola? O ideal era que violência e paixão pudessem estar separadas por um dique. As grandes lições sobre futebol, de Camus a Assis Pacheco, passando por Galeano ou Valdano, e estou a saltar por alto, falam da beleza pura, acessível a todos; aí, um golo pode ser um relâmpago no céu mais negro; ficamos deslumbrados quando isso acontece. Infelizmente, a malandragem (a rapinagem, abjeta e poderosa) rouba sempre esse prazer. O espectáculo foi tomado de assalto.
Civilização. Penso nessa palavra para referir que no próximo domingo passam 380 anos sobre o nascimento de Catarina de Bragança (1638-1705), mulher de Carlos II de Inglaterra e, portanto, senhora dos reinos de Inglaterra, da Irlanda e da Escócia – e do que isso significava. Os americanos impediram a colocação de uma estátua sua no bairro de Queens (blablabla, multiculturalismo, blablabla), mas há coisas mais importantes. Odiada por uma parte da corte britânica por ser “papista”, católica, a rainha Catarina, filha de D. João IV, levou-lhes o hábito de beber chá às cinco da tarde (e a entrega de Bombaim, já agora, em troca do apoio militar para a guerra com Espanha), a ópera italiana (a ópera, portanto), o uso de pratos e talheres à mesa e, também (mas há discussão sobre isso) o bolinho conhecido por “queque” (aportuguesamento de “cake”) e a utilização de tabaco para fins medicinais – e recreativos. Rainha sitiada no país onde reinou, regressou a Portugal sete anos depois de ter enviuvado (em 1685). Antonia Fraser e Jean Plaidy escreveram sobre ela, maravilhosamente. Salve, Rainha.
Passou o verão, passou a euforia do turismo, e a da “uébessamite” – e regressou o país. A esta distância, compreendo (malevolamente) o ar atarantado das autoridades diante do drama dos incêndios de Pedrógão: como é que “aquilo” podia acontecer no país mais na moda em todo o mundo, o melhor do mundo na bola (vê-se, com os processos judiciais acumulados, abjetos e vergonhosos), o melhor da Europa a receber turistas e personalidades do mundo do espectáculo? As imagens não eram bonitas: desespero, sim, mas também pobreza e desconsolo. A ideia de desconsolo não é “fofinha”; viu-se nas pessoas que de repente ficaram sem casa e sem vida – e nas declarações de políticos interessados em salvar a pele (o Presidente compreendeu bem a “necessidade de consolo”) e que “pareceram” imunes à desgraça alheia, como se governar um país fosse apenas administrar as querelas entre o Chiado e São Bento. O país voltou com a pequena tragédia de Sabrosa e, depois, com a de Borba. Não interessam, para já, as culpas nem as responsabilidades – é o meu país triste que regressa. Nunca deixou de ser assim.
Uma mesa gigantesca. Era isso o Bolero de Maurice Ravel (1875-1937) interpretado pela coreografia genial de Maurice Béjart (1927-2007). Estávamos em Paris, em 1983, e pude comprar um degrau na Ópera para ver o Bolero com a força genial de Jorge Donn, o bailarino que o interpretara pela primeira vez como figura masculina no filme Les Uns et les autres, de Lelouch. E, portanto, hipnose pura – quinze minutos (14 minutos e 10 segundos na partitura de Ravel) de um crescendo maravilhoso e sensual. A peça estreou no dia 22 de novembro de 1928; passam amanhã exatos 90 anos sobre o pequeno escândalo que foi a execução do ballet por Ida Rubinstein (uma figura magnífica, judia russa, bissexual, amiga de Claudel, D’Annunzio, Debussy, Stravinsky) com coreografia de Bronislava Nijinska, irmã do bailarino russo. Fica a música, hoje – e a sua intensidade, familiar de peças como Pavana para uma Infanta Defunta, La Valse ou Daphnis et Chloé, outras peças de Maurice Ravel que amanhã devíamos também ouvir – para assinalar a efeméride de Bolero e a grande beleza da música.
A entidade reguladora para a comunicação social acha que a maior parte das reportagens ou notícias das televisões sobre violência doméstica são pouco rigorosas. A ERC acha que há, por parte das televisões, “pouco investimento na problematização deste fenómeno social”, e que essas notícias não fazem “referências a causas estruturais e sociais da violência e suas consequências, nas diversas dimensões”. É todo um programa: a ERC não quer apenas que as televisões apresentem a notícia corretamente mas, já agora, que expliquem “o fenómeno”, suponho que de acordo com a cartilha oficial. A violência doméstica é um crime abjecto e repulsivo; ponto. E, também, um caso de polícia. Houve um tempo em que as elites urbanas achavam repulsivo que a imprensa “se metesse na vida privada das pessoas” quando o CM (muito antes da criminalização da violência doméstica) fazia notícias sobre casos pungentes que geralmente terminavam em homicídio. Nessa altura, o CM era “sensacionalista” – porque falava de violência sobre as mulheres antes de o assunto entrar na agenda política. Não tagarelava.
Num cemitério de Viena há uma gloriosa praceta onde estão duas sepulturas e um “memorial” – este é dedicado a Mozart, cujo corpo se perdeu numa vala comum; as sepulturas são de Beethoven (1770-1827) e de Franz Schubert (1797-1828), e compõem, com a amarga ausência de Mozart, uma espécie de pódio da música europeia. Podíamos passar uma vida inteira a escutá-los: Mozart, Beethoven e Schubert – o momento mais alto do classicismo e dois génios que traduziram as aventuras do romantismo. Schubert ajudou a transportar a urna no funeral de Beethoven (morreria no ano seguinte), mas a sua obra é de um veio diferente: os seus tormentos nunca tiveram uma “dimensão épica” ou “sinfónica”. Como qualquer pessoa, comovo-me com O Canto do Cisne (Schwanengesang, canções do fim da sua vida), o seu Ave Maria, Viagem de Inverno, A Truta (o segundo andamento é um emblema romântico) ou, naturalmente, com os seus “Improvisos” (bela versão de Maria João Pires) ou o que fica da 8.ª Sinfonia, Inacabada. Passam hoje 120 anos sobre a morte de Schubert. Devíamos ouvi-lo como um encontro com a beleza.
Por falar em fascistas (era o último dos temas da coluna de ontem). O jornalista Angus Berwick, da Reuters, acaba de publicar uma extensa reportagem sobre a Venezuela. Ou seja, não sobre a Venezuela propriamente dita, mas sobre o novo cartão de identidade dos cidadãos venezuelanos – fabricado por uma empresa estatal chinesa, a mesma que produz os cartões do seu país (a ZTE, de Shenzhen). Através deste novo cartão, a acreditar na reportagem, o Estado venezuelano fica com toda a informação familiar do cidadão, alargando-a a emprego e rendimentos anuais, propriedades, história médica, benefícios recebidos do Estado, presença nas redes sociais, se é ou não membro do PSUV (o partido no poder), ou a qual pertence, que participação tem no PSUV – e em quem votou (que é o processo mais complexo, mas calculado através de um algoritmo trabalhado sobre dados recolhidos pela CanTV venezuelana). O cartão anterior tinha sido produzido por uma empresa cubana mas o seu software foi atacado por hackers – razão por que Nicolás Maduro escolheu o fornecimento chinês. Eis uma máquina de fascistas.
Deve ter sido, naturalmente, a generosidade da personagem – mas para todos os efeitos o papa Francisco classificou a “coscuvilhice” como “terrorismo”. Errou; o Papa caiu na esparrela da tagarelice. Quando queremos chamar a atenção para qualquer coisa, damos-lhe um nome superlativo: terrorismo, arrasar, escândalo, mortífero. O que for, desde que funcione. Por exemplo, o ataque a Alcochete é “terrorismo”, designação que serve o interesse do Ministério Público, porque alarga o prazo de investigação. O que separa este “terrorismo” daquele a que eu próprio assisti no Médio Oriente e a que os leitores assistiram pela televisão em muitos atentados pelo mundo fora, em nome da religião, do patriotismo ou da política? Tudo – a começar pela dimensão e pelo horror do espectáculo. Quando houver terrorismo a sério, o que lhe chamarão? Da mesma forma, a moda de chamar “fascista” a tudo o que não entra no dicionário da esquerda – e que desvaloriza o termo, banalizando-o até à irrisão e irritando os incautos. Quando chegar um verdadeiro fascista, o que lhe chamarão? Cuidado com as palavras.
É uma poesia esquecida, a de Pedro Mexia – e tão recente. O próprio autor facilita esse esquecimento, mas é uma injustiça. De Duplo Império (1999) a Uma Vez Que Tudo se Perdeu (2015), vai um programa inteiro, como um plano de reflorestação do próprio deserto. Até a sua invocação de Ruy Belo neste poema que resume o seu lugar no mundo: “Vencido do catolicismo, sem plural/ que me conforte ou confronte,/ sem o ombro gratuito, conveniente,/ de uma geração que me console.” Os poemas de Pedro Mexia, além desta herança, ecoam a uma autobiografia sentimental em estado de permanente catástrofe – mas também às observações minuciosas do mundo dos domingos urbanos, das ruas desertas, dos desencontros ocasionais, dos poetas igualmente vencidos (que Eliot e Outras Observações, de 2003, melhor transcreve), de uma desilusão sem mágoa, apenas melancólica. Na sua geração, ninguém como Mexia soube conciliar essa melancolia com a auto-ironia, evitando comiseração e egocentrismo. Os Poemas Escolhidos (Tinta-da-China) agora publicados são uma das melhores coisas deste outono. Tirando o outono.
É evidente que todos rimos um pouco da forma como Pedro Filipe Soares, o dirigente do Bloco de Esquerda, se dirige aos seus companheiros de partido (durante a convenção do fim de semana passado): “Pois é, camaradas e camarados...” Claro que é um lapso desculpável, sejamos generosos. Vem do “portuguesas e portugueses”, do “companheiras e companheiros”, “cidadãs e cidadãos”. No tempo em que me indignava com erros de Português, ouvi “estudantas e estudantes” (era uma professora em lides políticas), tal como acho cómico e ridículo “presidentas e presidentes” – e, um dia, ouviremos “palermas e palermos” tal como, em Espanha (onde o delírio da tontice atinge níveis estratosféricos, como de costume), uma dirigente política se dirigiu à audiência tartamudeando “miembros y miembras”. Pedro Filipe Soares deu conta do lapso, corrigiu para “camaradas e camaradas”, a audiência aplaudiu o lapso e o seu reconhecimento, e tudo seguiria em frente se o líder do grupo parlamentar do BE não tivesse acrescentado “a linguagem inclusiva tem destas coisas”. Incluindo o bom e o mau português. Ora, a “inclusividade” há de levar-nos a todos e a todas, a enfrentar as pessoas que não se reconhecem na relação binária de género. E então como faremos? Até amanhã, “camarades”.
Celebrou-se ontem o centenário do armistício franco-alemão que pôs termo à I Guerra. Como de costume, fizeram-se discursos sobre o “heroísmo” dos europeus, dizimados nos campos de batalha. O presidente da República também falou sobre o assunto, e mencionou o papel português na construção da Europa (o tratado de Versalhes foi em 1920), “pela liberdade, contra a opressão” e, como se recordam, contra a instrumentalização política das forças armadas (FA). Para sermos justos, tirando a defesa da integridade territorial em África, não foi nada disso: Portugal participou na I Guerra porque as FA foram, justamente, usadas num jogo político liderado pelos republicanos mais radicais, que queriam reconhecimento. Os soldados portugueses foram conscientemente enviados para um morticínio terrível de que o resultado mais conhecido foi a tragédia de La Lys. Não, a nossa participação da I Guerra não foi nada heróica; nem podia sê-lo, tão miserável era a nossa condição militar e humana. Se o PR quiser dar um exemplo de instrumentalização das FA, tem aí material de sobra. Não é preciso inventar.
Deus sabe como gosto de Montreal. Tem boas livrarias, os melhores restaurantes do Canadá (os portugueses estão no topo, aliás), cervejas artesanais de primeira ordem, a casa de Leonard Cohen no meio do bairro português, um certo gosto em receber, poesia portuguesa nos bancos de rua do Boulevard Saint-Laurent, o Velho Porto, as florestas e as baías do Quebec, ou o restaurante Schwartz; enfim, uma boa lista (claro que há coisas menos boas, como hóquei no gelo e Céline Dion). Acontece que o governo da província, o Quebec, decidiu encerrar as suas 12 lojas de canábis (cuja venda foi liberalizada em outubro no Canadá – há um total de 132 no país) durante metade da semana. Porquê? Repressão? Nada. Simplesmente, a canábis esgotou nas lojas. Outro dia, um jornal dizia que a erva, para fumar, se destina a “aliviar a tensão em pessoas com barulho criativo ou social”; bela metáfora. Os polícias de Montreal, que foram autorizados a fumar erva, têm agora um problema entre mãos, que é o de vigiar a situação de alarme social e fúria provocada pela falta de produto. O clima do Canadá é pedra.
O problema americano é o da sua criancice. Ao olhar os resultados e ler os comentários sobre as eleições intercalares dos EUA, ficamos com a impressão de estarmos num jardim infantil onde cada criança quer a sua dose exagerada de atenção; um político é, sobretudo, ou um farsola cheio de si, que se pode apreciar pela sua jactância e detestar pela grosseria – ou um terapeuta que promete aliviar problemas hormonais e apaparicar com desvelo os seus pacientes. Não se pede a nenhum deles que seja um génio à dimensão de John Hay ou Henry Adams, que desenharam o século XX americano; mas ao menos que interprete a grandeza do país. As estrelas de Hollywood (um grupo nefasto de parlapatões) e os grupos identitários de sexo, etnia e outras classes, minaram o campo democrata, que é um saco de gatos a miar de histeria; oportunistas e populistas canalizaram a sua fanfarronice para o lado republicano, desonrando com deselegância a sua tradição conservadora. Num mundo à beira de vários precipícios, os EUA, com estes bandos de crianças, não têm nenhuma mensagem interessante ou digna para partilhar.
Tancos interessa-nos porque toda a gente tem a impressão de que há um segredo. Porque a simples suspeita acerca da existência desse segredo deixa perceber um grande mal-estar. E ainda, já agora, porque quase um ano e meio depois, ninguém sabe explicar exatamente o que se passou na madrugada de 28 de junho de 2017. As armas reaparecem, desaparecem, são listadas, excluídas das listas e, finalmente, não há certeza (provavelmente nunca haverá, porque estamos a falar de segredos militares) sobre quem sabia e quem não sabia que o roubo e a devolução do material de guerra fora encenado, encoberto ou fingido. Escolho a palavra “fingido” porque não é normal esta troca de galhardetes acerca de suspeitíssimos “jogos de poder” e “jogos políticos” que são publicamente invocados para não explicar o que se passou. O comunicado da Presidência da República, de anteontem, é uma fonte de enigmas sobre “quem sabia” do que passou “antes” e “depois”, mas é indelicado que o primeiro-ministro recomende menos ansiedade ao PR. Um ano depois estamos todos ansiosos, na primeira fila. E, agora sim, indignados.
José Medeiros Ferreira, que tinha uma intuição inteligentíssima (e sempre bem-humorada), insistiu várias vezes que um dos caminhos do turismo português, e da economia portuguesa, poderia ser o da “organização de eventos”. Como de costume, tinha razão. O espectáculo da Web Summit é um desses exemplos, mesmo se desconfiarmos do seu tom de festa generalizada e de se duvidar dos números apresentados na operação financeira geral (parecem os anunciados “lucros” das PPP das auto-estradas). A capacidade portuguesa de realizar “coisas em grande” não é nova – o problema são mesmo as pequenas coisas. Lisboa é uma festa em momentos de festa; os turistas gostam da cidade e têm razões para isso por causa dos seus verões prolongados e da sua informalidade de baixo custo; mas eu pergunto-me como é possível que se tenha entrado num tão longo fim de semana com tanto lixo acumulado nas ruas da capital. Esse é um exemplo lisboeta. A chuva, que pulveriza o trânsito (duas horas para atravessar a cidade), tem ajudado a limpar as ruas e desintoxicá-la de odores e lixo. Oxalá venha mais. Tudo ajuda.
Há um ano, o The New York Times publicou um artigo intitulado “O Natal pode ter acabado, mas não a época das compras” (guardei-o) – esta ideia de o Natal ter acabado não me surpreende, apesar de em Bruxelas o tradicional Mercado de Natal ter sido substituído pelo ‘Prazeres de Inverno’ (com o argumento patetinha de que “não ofende os não crentes”), à semelhança de outras cidades europeias, e de muitos dos cartões de Boas Festas se recusarem a mencionar o Natal, preferindo a ideia de Festas Felizes, em inglês Happy Holidays ou Season’s Greetings (literalmente, “saudações da época”). Isto compreende as festas da temporada, ou seja, o Natal, o Hanukkah judaico (a consagração do segundo templo), o solstício de inverno, as férias escolares, o novo ano civil ou ainda o Kwanzaa (uma festividade negra). A coisa não me assusta – não por ser “inclusiva” (uma palavra palerma), mas, ao contrário, por ser plural. Assusta-me mais que os católicos, por cerimónia, evitem referir-se ao Natal, como me assustaria se os judeus se não se referissem ao Hanukkah. Época das compras é que não.
Deve-se ao psicólogo John Vasconcellos (1932-2014), filho de pai português e mãe alemã, congressista e senador da Califórnia, a criação – em 1986 – de um Grupo de Missão para a Promoção da Autoestima Pessoal (State Task Force to Promote Self-Esteem). Durante quatro anos, e sob os auspícios do estado da Califórnia, o grupo debateu, discorreu, e concluiu que o mais importante a retirar da Declaração de Independência era a concessão de dignidade e de auto-estima aos cidadãos. Parecia uma conclusão retirada das páginas mais choramingas de Rousseau – mas funcionou, sobretudo na Califórnia herdeira das correntes de contra-cultura dos anos 60, onde hippiese pós-adolescentes tinham decidido que nunca haviam de crescer.
O resultado foi que, duas décadas depois, as funções do Estado (e das instituições que o prolongam, como a escola e o sistema judicial) já não se limitem a fornecer educação, proteção na pobreza, justiça ou segurança – mas também, e em grande escala, apoio terapêutico para diminuir problemas de baixa auto-estima dos cidadãos, criando uma geração marcada pelo narcisismo e pela “afirmação da identidade” como degrau na construção da felicidade – a dos indivíduos, mas sobretudo a dos grupos.
Por isso, e de forma crescente, as questões identitárias vão substituindo aquilo que eram combates políticos. Sobretudo à esquerda, a velha luta de classes e os interesses da classe operária perderam-se num conjunto de causas dispersas e cheias de boas intenções – das “questões de género” (que substituiu a emancipação das mulheres), “raça” (que substitui a luta pelos direitos cívicos), à defesa das minorias religiosas, culturais ou sexuais, de braço dado com a chamada “agenda fracturante”. Mas, também à direita, as matérias de identidade adquirem cada vez mais importância. Em ambos os casos, aprisionando a política e os Estados em nome de agendas minoritárias, populistas e provoatórias.
É sobre estes problemas que reflecte o novo livro de Francis Fukuyama (o autor do derrapante O Fim da História, mas também de Ordem Política e Decadência Política), no qual propõe, como um antídoto contra o populismo, a definição de “identidades nacionais” que substituam a guerra de identidades étnico-narcísicas atuais. Inteligentíssimo, como de costume, Fukuyama é um moderado num mundo de gente curta. E o livro é para os dias de hoje.
Francis Fukuyama, Identidades. A Exigência de Dignidade e a Política do Ressentimento. Dom Quixote.
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