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MAIO DE MINHA MÃE
O primeiro de Maio de minha Mãe
Não era social, mas de favas e giestas.
Uma cadeira de pau, flor dos dedos do Avô
— Polimento, esquadria, engrade, olhá-la ao longe —
Dava assento a Florália, o meu primeiro amor.
Já não se usa poesia descritiva,
Mas como hei-de falar da Maromba de Maio
Ou, se era macho, do litro de vinho na sua mão?
O primeiro de Maio nas Ilhas, morno como uma rosa,
Algodoado de cúmulos, lento no mar e rapioqueiro
Como Baco em Camões,
Límpido de azeviche
E, afinal de contas, do ponto de vista proletário,
Mais de mãos na algibeira do que Lenine em Zurich.
(Porque foi por esta época: eu é que não sabia!)
A minha Maromba tinha barriga de palha como as massas
E a foice roçadoira da erva das cabras do Ribeiro
Que se pegou, esquecida, no banco do martelo de meu Avô
Cujas quedas iguais, gravíficas, profundas
Muito prego em cunhal deixaram,
Muita madeira emalhetaram,
Muita estrela atraíram ao bico da foice do Ribeiro
Nas noites de luar em que roçava erva às cabras.
Favas de Maio do meu tempo!
Havia poder popular
Nas mãos de minha mãe, que as descascava como flores
E flores eram de si, na flórea abada
Como se já guardassem flor de laranjeira e açaflor
Nas suas intenções de Maio 1918, para as depor
(Nem pensada sequer) na fronte à minha amada.
(Sapateia Açoriana, Andamento Holandês e Outros Poemas) [1938]
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O BICHO HARMONIOSO
Eu gostava de ter um alto destino de poeta,
Daqueles cuja tristeza agrava os adolescentes
E as raparigas que os leem quando eles já são tão leves
que passam a tarde numa estrela,
A força do calor na bica de uma fonte
E a noite no mar ou no risco dos pirilampos.
Assim, gloriosos mas sem porta a que se bata;
Abstratos mas vivos;
Rarefeitos mas com o hálito nebuloso nas narinas dos animais,
Insinuado nos lenços das mulheres belas, cheios de lágrimas,
Misturado às ervas grossas da chuva
E indispensável aos heróis que vão rasgar no céu, enfim, o último sulco!
Ser a vida e não ter já vida ‑ era um destino.
Depois, dar a minha Mãe a glória de me ter tido;
A meu Pai, vendado de terra, um halo da minha luz; e tocar tudo,
Onde eu houvesse estado, de uma sagração natural; ‑
Não digo como as Virgens Aparecidas,
Que tornam imbecis e radiosos os pastorinhos,
Mas como certo orvalho de que me lembro, em pequeno –
Para lá da janela a luz cortada por chuva,
E uma prima que amei, a rir, molhada, chegando;
Mar ao fundo.
Tudo isto, e vontade de dormir, também em pequenino,
E logo uma mão de mulher pronta a fingir de asa aberta,
E preguiça,
Impressão de morrer do primeiro desgosto de amor
E de ir, vogando, num negrume que afinal é toda a luz que nos fica
Desse amor forrado de desgosto,
Como as estrelas encobertas,
Que, depois de girar a nuvem, mostram como estão altas:
Tudo isto seria aquele poeta que não sou,
Feito graça e memória,
Separado de mim e do meu bafo individualmente podre,
Livre das minhas pretensões e desta noite carcomida
Pelo meu ser voraz que se explora e ilumina.
Mas não. Do canto necessário
Para me diluir em som e no ar que o guardasse
(Como o nervo do degolado alonga em tremor seu pasmo)
Não chego a soltar senão uma vaga nota,
E a noite faz muito bem em vergar uma gruta sem ecos
No meu buraco vil de bicho harmonioso.
Deixarei, estampada pelo silêncio definitivo,
A ramagem fremente dos meus dedos num pouco de terra
Estranho fóssil!
(O Bicho Harmonioso) [1938]
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A CONCHA
A minha casa é concha. Como os bichos
Segreguei-a de mim com paciência:
Fechada de marés, a sonhos e a lixos,
O horto e os muros só areia e ausência.
Minha casa sou eu e os meus caprichos.
O orgulho carregado de inocência
Se às vezes dá uma varanda, vence-a
O sal que os santos esboroou nos nichos.
E telhadosa de vidro, e escadarias
Frágeis, cobertas de hera, oh bronze falso!
Lareira aberta pelo vento, as salas frias.
A minha casa… Mas é outra a história:
Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,
Sentado numa pedra de memória.
(O Bicho Harmonioso) [1938]
Na semana passada, Jean-Luc Mélenchon – candidato às presidenciais francesas, coqueluche da esquerda bloquista – apareceu encolerizado à frente dos polícias que iam revistar o seu escritório (há, entre outras coisas, uma acusação de uso fraudulento de fundos europeus). “La France c’est moi!”, gritava o líder da França Insubmissa, assim se chama o seu movimento, enquanto se atirava aos agentes judiciais. O episódio não foi muito glosado por cá, uma vez que heróis como Mélenchon (que continua a ameaçar quanto pode e a encolerizar-se como é o seu estilo) costumam estar acima da lei e de toda a suspeita, e são incensados pelo seu verbo. A massa anónima, claro, ficou chocada – e reserva-lhe uma interessante votação nas próximas eleições. A Europa das chancelarias e das burocracias, que agora se interroga muito sobre “os populismos”, poderia começar por analisar o fenómeno Mélenchon e sobre como as suas imagens (ah!, ele a gritar “la France c’est moi!” é maravilhoso) contribuíram em poucas horas para formar mais “populistas” desejosos de deixarem o seu manguito no boletim de voto.
Quando uma coisa destas é publicada, devemos parar por instantes. Apesar de ser hoje discreta a sua presença, Vitorino Nemésio (1901-1978) é um dos autores que marcará definitivamente a poesia do século XX – sem falar da importância de Mau Tempo no Canal (1944), um dos últimos grandes romances do nosso tempo. O primeiro volume da Poesia de Nemésio acaba de ser publicado pela Companhia das Ilhas e pela Imprensa Nacional (com edição de Luiz Fagundes Duarte) e abrange os anos de 1916 a 1940, incluindo títulos como O Bicho Harmonioso ou Eu, Comovido a Oeste. Poesia desta dá uma volta inteira aos desertos da nossa língua, como uma luz rara, um lirismo sem choro nem lamúrias, cheio de ironia: “Eu gostava de ter um alto destino de poeta,/ Daqueles cuja tristeza agrava os adolescentes/ E as raparigas que os leem quando eles já são tão leves/ Que passam a tarde numa estrela,/ A força do calor na bica de uma fonte/ E a noite no mar ou no risco dos pirilampos.” Uma harmonia brava, desconhecida hoje, atravessa estes versos – não os percam. É do melhor da nossa língua.
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