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O novo e importante livro de Francis Fukuyama, Identidades(Dom Quixote), tem um esclarecedor subtítulo: “A exigência de dignidade e a política do ressentimento”. No fundo, explica como essa exigência transformou a política não apenas num combate de ressentimentos mas também de narcisismos. O narcisismo, como diz, não leva ao fascismo – mas “a um vasta despolitização da sociedade em que as lutas pela justiça social são reduzidos a problemas psicológicos pessoais”. Onde o Estado liberal do século XIX e do século XX tinha como função promover os direitos básicos, manter a lei e assegurar a educação, a segurança e a mobilidade – o Estado contemporâneo visa melhorar a autoestima dos cidadãos, falando-lhes docemente e tratando-os como pacientes numa sessão de terapia e aconselhamento psicológico. Absurdo? Não. Inclusive, os próprios eleitores ficam reconhecidos aos políticos quando eles mentem em serviço, desde que isso os faça sentir melhores, mais otimistas e sem insónias. O livro de Fukuyama mostra como a vida política se transformou num combate de ilusões perigosas.
Quantos manifestos, abaixo-assinados, declarações, cartas abertas circularam em Portugal acerca das eleições no Brasil? Ilustres conselheiros, académicos de renome, marqueses republicanos, escritores, músicos, artistas de várias filiações, professores, gente que passa férias no Brasil, deputados, cavalheiros conhecidos ou, pura e simplesmente, cultores de samba ou putativos amantes de Chico Buarque, todos eles se desmultiplicaram em apelos sobre a necessidade de derrotar o fascismo nas urnas. Nas chamadas “redes sociais” o assunto tomou proporções dramáticas, e parece que se prepara uma imigração em massa de brasileiros para a Europa e de bravos portugueses para as margens do Araguaia, de onde iniciarão uma guerrilha para expulsar os fascistas de Brasília. Por nenhuma destas cabecinhas, beijocadas e apaparicadas pelas televisões (que emitiram livremente os seus dislates e a sua indignação), passou sequer a ideia de os eleitores brasileiros lhes desobedecerem por pura pirraça. O presidente eleito é um fanfarrão idiota. Mas a coleção portuguesa de fanfarrões é de truz.
O resultado das eleições de ontem no Brasil só daqui a algum tempo pode ser compreendido em toda a sua extensão. Mas ele resulta de uma derrota da política ou, pelo menos, da transformação da política num combate identitário. Não passa pela cabeça de ninguém que oitenta milhões de brasileiros sejam “fascistas” e tenham desejado votar num idiota, da mesma forma que mais de metade dos votantes de Haddad votou nele para não permitir a eleição de Bolsonaro, e não para se associar ao bando que, nos últimos anos, tem destruído o Brasil. O país não voltará a ser o mesmo até que os moderados possam ter uma oportunidade. Até lá, o combate (e a guerra sem quartel e sem regras) será, não entre políticas diferentes, mas entre identidades opostas. A semente deste mal foi a corrupção que minou toda a autoridade e credibilidade do Estado. Os intelectuais, que têm mais voz, mais protagonismo, não compreenderam — como de costume — a invisibilidade destes dois mundos que se opõem no Brasil. Tal como nos EUA, proíbem a palavra ‘nigger’(preto) mas chamam ‘redneck’(pacóvios) aos votantes de Trump.
O livro de Harper Lee, Não Matem a Cotovia (To Kill a Mockingbird também traduzido entre nós como Mataram a Cotovia, uma história sobre o racismo no sul dos EUA) foi eleito “o livro mais amado pelos americanos” numa votação iniciada na primavera passada pela rede pública de rádio e tv, PBS, e na qual participaram vários milhões de leitores. Os outros livros finalistas (de uma lista de cem) foram as séries Outlander, Harry Potter e O Senhor dos Anéis, além de Orgulho e Preconceito – a cerimónia (porque foi uma festa) foi apresentada na televisão americana por Meredith Vieira, uma jornalista de origem açoriana (do Faial), já agora. Acredito que Os Maias, de Eça de Queirós, seria o livro mais votado numa hipotética iniciativa portuguesa – assinalam-se agora os 130 anos da sua publicação (em 1888) e vai ter lugar em breve um colóquio na Fundação Gulbenkian. Nem de propósito, o livro esteve para ser retirado da lista de leituras obrigatórias do ensino secundário, pois era essa a intenção das autoridades. Seria um crime que, por pressão pública, não foi cometido.
É evidente que há um problema com o uso da internet – a velocidade. Italo Calvino definiu a “velocidade” como uma das ideias fortes do milénio, por oposição à lentidão, ao recolhimento ou à ponderação. Os vídeos “virais” que todos os dias povoam a internet são o produto dessa exigência de velocidade. É por eles que circulam as “fake news” e é neles que se expõe o pior e mais grotesco ou abjeto dos utilizadores. A solução dos censores habituais, ou a dos que pensam que podem moderar a ordem das coisas por decreto (porque são mais inteligentes) é a de estabelecer um controle ideológico sobre a imprensa e, por extensão, sobre a internet. É impossível. Proibir a velocidade da internet (do Whatsapp, do Facebook, do Twitter) para impedir as “fake news” exige um esforço descomunal – e sem garantia de sucesso. Essa velocidade é o resultado do otimismo dos que garantiam estar aí um admirável mundo novo. Um dia, é provável que voltemos à lentidão, à consistência, à humanidade como ela teria sido. Mas a censura é a pior forma de sonhar com esse dia. Seria uma tirania intolerável.
Estes textos são, na sua quase absoluta maioria, crónicas diárias publicadas no Correio da Manhã.
Há um romance de Rubem Fonseca, ‘Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos’, em que o protagonista (um realizador de cinema) dialoga com o irmão, pastor evangélico. Este promete que “um dia” as igrejas hão de dominar o Brasil: “Nós, evangelistas, precisamos de uma representação forte no Congresso.” Mais adiante: “Não está longe o dia em que teremos um pastor na Presidência deste país.” O romance é de 1988 e, desde então, Edir Macedo, o líder da IURD, foi suporte de Lula e Dilma, com quem fez uma aliança que ruiu quando Lula acabou implicado até ao pescoço no pântano que criara; nesse dia, Edir Macedo não atendeu o telefone de Lula – e este percebeu que tinha chegado ao fim da estrada. Agora, a imprensa conta – indignada – que “os evangélicos” apoiam Bolsonaro, o fanfarrão. Será assim até o pântano crescer de novo, o que não é difícil. O filme do Brasil vai repetir-se até ser completamente impossível distinguir o falso do verdadeiro, o novo do antigo, o sim do não. Entretanto, convinha perguntar – mesmo – aos brasileiros porque é que escolhem um e não outro. São eles que votam.
Anda por aí um grande sarapatel com as “fake news”. Fazia-nos falta. A Comissão Europeia já lançou o isco: pretende, a prazo, criar uma vigilância sobre textos homofóbicos, sexistas ou xenófobos publicados na imprensa; o governo espanhol, que tem a febre do controle da informação, repetiu a coisa. Em Portugal corre um alarido cómico sobre o assunto, que teve o mérito de fazer sair os censores para fora da toca – dois ou três deputados anunciaram, em surdina, a “necessidade imperiosa” de legislar “urgentemente” sobre o assunto: as “fake news”. Nesse saco, misturam-se notícias falsas com piadas (os burocratas, fascistas e leninistas, têm muita dificuldade em lidar com elas), erros de comunicação, opiniões malévolas e opiniões estapafúrdias, notícias verdadeiras mas nefastas, e notícias nefastas mas verdadeiras. E, claro, a internet. Claro que conhecemos o fenómeno e é preciso denunciá-lo, mas todos nos lembramos de como certo candidato bonzinho aproveitou as “redes sociais” para chamar novos eleitores – e de como agora se torna imperioso fechar o Whatsapp e, creio eu, a internet.
MAIO DE MINHA MÃE
O primeiro de Maio de minha Mãe
Não era social, mas de favas e giestas.
Uma cadeira de pau, flor dos dedos do Avô
— Polimento, esquadria, engrade, olhá-la ao longe —
Dava assento a Florália, o meu primeiro amor.
Já não se usa poesia descritiva,
Mas como hei-de falar da Maromba de Maio
Ou, se era macho, do litro de vinho na sua mão?
O primeiro de Maio nas Ilhas, morno como uma rosa,
Algodoado de cúmulos, lento no mar e rapioqueiro
Como Baco em Camões,
Límpido de azeviche
E, afinal de contas, do ponto de vista proletário,
Mais de mãos na algibeira do que Lenine em Zurich.
(Porque foi por esta época: eu é que não sabia!)
A minha Maromba tinha barriga de palha como as massas
E a foice roçadoira da erva das cabras do Ribeiro
Que se pegou, esquecida, no banco do martelo de meu Avô
Cujas quedas iguais, gravíficas, profundas
Muito prego em cunhal deixaram,
Muita madeira emalhetaram,
Muita estrela atraíram ao bico da foice do Ribeiro
Nas noites de luar em que roçava erva às cabras.
Favas de Maio do meu tempo!
Havia poder popular
Nas mãos de minha mãe, que as descascava como flores
E flores eram de si, na flórea abada
Como se já guardassem flor de laranjeira e açaflor
Nas suas intenções de Maio 1918, para as depor
(Nem pensada sequer) na fronte à minha amada.
(Sapateia Açoriana, Andamento Holandês e Outros Poemas) [1938]
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O BICHO HARMONIOSO
Eu gostava de ter um alto destino de poeta,
Daqueles cuja tristeza agrava os adolescentes
E as raparigas que os leem quando eles já são tão leves
que passam a tarde numa estrela,
A força do calor na bica de uma fonte
E a noite no mar ou no risco dos pirilampos.
Assim, gloriosos mas sem porta a que se bata;
Abstratos mas vivos;
Rarefeitos mas com o hálito nebuloso nas narinas dos animais,
Insinuado nos lenços das mulheres belas, cheios de lágrimas,
Misturado às ervas grossas da chuva
E indispensável aos heróis que vão rasgar no céu, enfim, o último sulco!
Ser a vida e não ter já vida ‑ era um destino.
Depois, dar a minha Mãe a glória de me ter tido;
A meu Pai, vendado de terra, um halo da minha luz; e tocar tudo,
Onde eu houvesse estado, de uma sagração natural; ‑
Não digo como as Virgens Aparecidas,
Que tornam imbecis e radiosos os pastorinhos,
Mas como certo orvalho de que me lembro, em pequeno –
Para lá da janela a luz cortada por chuva,
E uma prima que amei, a rir, molhada, chegando;
Mar ao fundo.
Tudo isto, e vontade de dormir, também em pequenino,
E logo uma mão de mulher pronta a fingir de asa aberta,
E preguiça,
Impressão de morrer do primeiro desgosto de amor
E de ir, vogando, num negrume que afinal é toda a luz que nos fica
Desse amor forrado de desgosto,
Como as estrelas encobertas,
Que, depois de girar a nuvem, mostram como estão altas:
Tudo isto seria aquele poeta que não sou,
Feito graça e memória,
Separado de mim e do meu bafo individualmente podre,
Livre das minhas pretensões e desta noite carcomida
Pelo meu ser voraz que se explora e ilumina.
Mas não. Do canto necessário
Para me diluir em som e no ar que o guardasse
(Como o nervo do degolado alonga em tremor seu pasmo)
Não chego a soltar senão uma vaga nota,
E a noite faz muito bem em vergar uma gruta sem ecos
No meu buraco vil de bicho harmonioso.
Deixarei, estampada pelo silêncio definitivo,
A ramagem fremente dos meus dedos num pouco de terra
Estranho fóssil!
(O Bicho Harmonioso) [1938]
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A CONCHA
A minha casa é concha. Como os bichos
Segreguei-a de mim com paciência:
Fechada de marés, a sonhos e a lixos,
O horto e os muros só areia e ausência.
Minha casa sou eu e os meus caprichos.
O orgulho carregado de inocência
Se às vezes dá uma varanda, vence-a
O sal que os santos esboroou nos nichos.
E telhadosa de vidro, e escadarias
Frágeis, cobertas de hera, oh bronze falso!
Lareira aberta pelo vento, as salas frias.
A minha casa… Mas é outra a história:
Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,
Sentado numa pedra de memória.
(O Bicho Harmonioso) [1938]
Na semana passada, Jean-Luc Mélenchon – candidato às presidenciais francesas, coqueluche da esquerda bloquista – apareceu encolerizado à frente dos polícias que iam revistar o seu escritório (há, entre outras coisas, uma acusação de uso fraudulento de fundos europeus). “La France c’est moi!”, gritava o líder da França Insubmissa, assim se chama o seu movimento, enquanto se atirava aos agentes judiciais. O episódio não foi muito glosado por cá, uma vez que heróis como Mélenchon (que continua a ameaçar quanto pode e a encolerizar-se como é o seu estilo) costumam estar acima da lei e de toda a suspeita, e são incensados pelo seu verbo. A massa anónima, claro, ficou chocada – e reserva-lhe uma interessante votação nas próximas eleições. A Europa das chancelarias e das burocracias, que agora se interroga muito sobre “os populismos”, poderia começar por analisar o fenómeno Mélenchon e sobre como as suas imagens (ah!, ele a gritar “la France c’est moi!” é maravilhoso) contribuíram em poucas horas para formar mais “populistas” desejosos de deixarem o seu manguito no boletim de voto.
Quando uma coisa destas é publicada, devemos parar por instantes. Apesar de ser hoje discreta a sua presença, Vitorino Nemésio (1901-1978) é um dos autores que marcará definitivamente a poesia do século XX – sem falar da importância de Mau Tempo no Canal (1944), um dos últimos grandes romances do nosso tempo. O primeiro volume da Poesia de Nemésio acaba de ser publicado pela Companhia das Ilhas e pela Imprensa Nacional (com edição de Luiz Fagundes Duarte) e abrange os anos de 1916 a 1940, incluindo títulos como O Bicho Harmonioso ou Eu, Comovido a Oeste. Poesia desta dá uma volta inteira aos desertos da nossa língua, como uma luz rara, um lirismo sem choro nem lamúrias, cheio de ironia: “Eu gostava de ter um alto destino de poeta,/ Daqueles cuja tristeza agrava os adolescentes/ E as raparigas que os leem quando eles já são tão leves/ Que passam a tarde numa estrela,/ A força do calor na bica de uma fonte/ E a noite no mar ou no risco dos pirilampos.” Uma harmonia brava, desconhecida hoje, atravessa estes versos – não os percam. É do melhor da nossa língua.
Sempre que tropeço em notícias sobre “grandes avanços da humanidade” fico petrificado. Apenas por instantes. Refiro-me a pessoas & coisas estapafúrdias que povoam redações e universidades. Outro dia um lunático (formado numa universidade portuguesa de vanguarda e docente numa outra, onde espalha o seu credo – porque hoje os credos substituem a ciência e o saber) defendia que obrigar as crianças a dar um beijo aos avós era um acto agressivo e violento que, naturalmente, traumatiza os jovens seres. Uma outra, mas no estrangeiro, sugeria que dar de mamar a crianças do sexo masculino podia transformá-los, mais tarde, em violadores. Uma psicóloga australiana acaba de anunciar que os pais devem aguardar por alguma forma de consentimento dos bebés para lhes mudar as fraldas; de contrário, trata-se de uma forma de abuso sexual. Uma universidade proibiu as palmas no fim das conferências a fim de não ofender os estudantes surdos ou “com problemas cognitivos”. Como disse, fico petrificado – mas finjo surpresa. Depois murmuro “que maravilha”, e sigo adiante. Vivemos tempos interessantes.
Margarita Carmen Cansino nasceu há exatamente cem anos e só ela me ia impedir de falar sobre o orçamento de Estado – não com esse nome, mas com o de Gilda (ela, não o Orçamento). Ou seja, Rita Hayworth, o nome que adota a partir de 1937. É aí que começa a “construção de Gilda”, logo com a figura de Judy em Only Angels Have Wings (de 1939), um filme maravilhoso de Howard Hawks. Gilda é de 1936 – um filme de Charles Vidor em que Rita Hayworth contracena com Glenn Ford: a sua beleza dramática evapora toda a história (um guião de bandidos de casino e de passados que regressam ao cenário dúbio de Buenos Aires) e nunca mais desaparecerá da nossa memória. Dois anos depois ela será Elsa em A Dama de Xangai, de Orson Welles (com quem tinha casado em 1943), mas não atingirá nunca mais aquele pico de beleza, intensidade, perda, doce amargura de Gilda. Cem anos depois do seu nascimento em Nova Iorque (assinalados hoje) é essa beleza que nos atordoa. Claro, há a frase célebre (“A maioria dos homens apaixona-se por Gilda, mas acorda comigo.”). É a maldição que persegue as mulheres fatais.
A forma como lidamos com as tragédias é controversa: tanto esperamos que elas venham, como nos escandalizamos com a atenção que lhes dedicamos – como, finalmente, as valorizamos e desvalorizamos consoante a sua “oportunidade”. Esperava-se que o furacão Leslie (já em regime de “tempestade tropical”) chegasse a Lisboa sob os holofotes das televisões e a atenção da imprensa. A verdade é que, mal as televisões e a imprensa saltaram para a rua, surgiram acusações de alarmismo. No entanto, as imagens mais dramáticas não vieram de Lisboa nem do Porto – mas da Figueira da Foz, de Coimbra ou de Aveiro, porque as tempestades não têm palco reservado. O dia seguinte revelou o costume: os estragos, os dramas, as queixas. Sou suspeito, mas o rasto de destruição seria ampliado caso o Leslie tivesse “escolhido” passar mesmo por Lisboa, onde teria mais atenção, em vez de ter espalhado a destruição em Soure ou na Figueira, terras simpáticas mas com glamour relativo nesta matéria. O Presidente da República esperou até ao almoço de ontem para aparecer. Imagino se tivesse sido em Bragança, vá lá.
Willard Huntington Wright (1888-1939) nasceu no mesmo ano de Fernando Pessoa; foi o ano em que Sherlock Holmes continuava as suas aventuras em O Signo dos Quatro, e também o ano da publicação de Os Maias. Jornalista de esmerada educação, como então se dizia, foi editor no ‘LA Times’, crítico e ensaísta (Faulkner apreciava-o muito) – até que a cocaína o salvou. Explico-me: o consumo de droga levou-o a um esgotamento e, depois, a escrever romances policiais. O Caso Benson saiu em 1926, ao fim de três anos de depressão, assinado por S.S. Van Dine, o nome que lhe conhecemos. Com A Morte da Canária e Os Crimes do Bispo (todos publicados na Vampiro) tornou-se best-seller nos EUA – o seu detetive Philo Vance é um esteta, um gourmet e um homem estranho, quase assexuado, um conservador de inteligência rara. Van Dine marcou o policial da primeira metade do século XX (as suas 20 Regras para Escrever Histórias de Detetives eram o modelo de Ellery Queen, mas também de Agatha Christie – até aparecer Chandler). É tão fora de moda que é bom. Nasceu há 130 anos, assinalados hoje.
Gostamos da nossa língua? Duvido. Gostamos de escrever em bom português? Duvido; somos uns trapalhões. Achamos que as questões de correção linguística são coisas de outros tempos, não consultamos os dicionários, temos horror aos mestres da língua, perdemos nas últimas décadas quantidades assustadoras de palavras, adotámos uma telegrafia miserável e repelente, repetimos até ao limite erros de construção de frases, desinteressamo-nos. O livro Por Amor à Língua, de Manuel Monteiro (Objectiva), inventaria os nossos erros mais comuns e denuncia a enorme capacidade destrutiva do linguajar de hoje – banalizado, pobre, sem gosto nem regras, escrito sem orgulho nem brio sobretudo quando é ‘praticado’ por burocratas e “gente pública”. Além disso, dá exemplos desses erros crassos, pecados veniais, expressões daninhas – e é um elogio aos revisores, essa gente maravilhosa que encontra os nossos deslizes mais fatais. O livro de Manuel Monteiro lê-se e sublinha-se; é uma ajuda preciosa para quem ama esta “última flor do Lácio, inculta e bela” (o verso é de Olavo Bilac e é maravilhoso).
Ontem, enquanto amanhecia, uma menina da rádio advertia para “a chegada do mau tempo” – prevista para hoje, leitores. Por instantes pensei que me tinha escapado a chegada anunciada de um furacão; mas não: era a promessa de alguma chuva, aguaceiros aqui e ali, céu nublado, um ventinho de sul, temperaturas noturnas a descer. Na verdade, apetece a chuva: para limpar as cidades (que bem precisam), molhar os campos e as florestas, humedecer a atmosfera, misturar-se à água dos rios. – mas, infelizmente, será por pouco tempo. Antigamente, caso não saibam, existia uma coisa hoje cada vez mais rara, que dava pelo nome de Outono (em maiúscula hoje), de braço dado com outro nome – o da “meia estação”. Ou seja, não era uma estação quente, não vinha coroada daquele frio de janeiro, mas obrigava a “vestir moderadamente”, olhando para o céu em busca de sinais para o resto do dia. Esse equilíbrio desapareceu. Provavelmente, a minha geração foi a última a poder apreciar os benefícios da “meia estação”: nem quente, nem frio, apenas um tempo bom para contemplar a passagem da natureza.
O que foram fazer os senhores deputados a Serralves? A resposta é fácil: foram, em fila e organizados, ver as fotografias de Robert Mapplethorpe, com um de dois propósitos – ou verificar se houve censura por parte da administração de Serralves aos desejos do senhor curador; ou – malandrice – apreciar as obras do fotógrafo americano. Convenhamos que nenhuma das coisas deve ter sido feita. Ver uma exposição requer, digamos, predisposição, tranquilidade, disposição e até anonimato; sentamo-nos diante de uma peça (embora os museus contemporâneos, em geral, não gostem de assentos), submetemo-nos à luz, ao silêncio – contemplamos. Não acredito que os senhores deputados tivessem tempo, disposição e ausência de câmaras para cumprir estes desígnios. Quanto à censura, bom, as obras estavam lá, e não me parece que a sua contemplação esclarecesse os representantes da nação em relação à censura. Nem precisavam (vários representantes dos sindicatos de curadores já tinham decidido que houve censura). Quem sai beneficiada é a exposição. A gritaria fez-lhe imensa publicidade. Continuem.
O presidente da República falou ontem sobre a sua relação com José Saramago e abordou o chamado “caso Sousa Lara” – quando este, então subsecretário de Estado da Cultura, vetou o nome de Saramago (com o romance O Evangelho Segundo Jesus Cristo) como candidato português a um prémio europeu de literatura. Fez bem Marcelo Rebelo de Sousa em lembrar o episódio de 1992, seis anos antes do Nobel: foi um acontecimento perfeitamente dispensável, que então já não era do nosso tempo. Mas é bom recordá-lo por outro motivo – porque traduz bem o tipo de imbecilidades que se produzem quando o Estado tem uma política ideológica ou de gosto para a área da cultura. Não cabe ao Estado, como um “comissário”, dizer “o que é português” (foi esse o argumento usado), o que “nos representa”, o que é ideológica ou politicamente correto, o que é “ofensivo”, ou o que está ou não “do lado certo” da História. É por isso, já agora, que o Estado não deve meter-se no “caso de Serralves” – como pretendem algumas vozes, saudosas de uma intervenção amiga e, para todos os efeitos, capturada e manietada.
Tem graça: uma peça de Banksy, o adorado grafiteiro por quem se babam, desfez-se em tirinhas logo depois de ter sido licitada por 1,2 milhões de euros num leilão da Sotheby’s em Londres. Quem aprecia o género merece ser aldrabado – e em público, no meio de gargalhadas. A verdade é que as obras de Banksy são o que são: intervenções de rua, ‘grafiti’ em campanhas políticas, aparições de humor, opiniões populares sobre coisas correntes – mas o seu valor em termos de “arte contemporânea” (ou seja: muito valorizado por papalvos, colecionadores e filósofos do género) atingiu um estatuto de primeira linha. Os últimos grandes pintores (Freud, Bacon ou Rêgo, por exemplo) foram ultrapassados pelo linguajar desse material histriónico ou apenas irónico, que os “curadores” bem queriam numa loja de “artes decorativas” dos seus museus, junto de caixas de plástico, pneus reutilizados, bonecos de madeira, sujidades, tudo com propósitos provocatórios contra “o sistema” e a arte tradicional. A suprema ironia de Banksy parece de flibusteiro, claro – mas não é: ele só provou quão ridículo é o sistema.
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