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Acaba de sair para as livrarias um nova tradução de António e Cleópatra, de Shakespeare (de Rui Carvalho Homem, Relógio d’Água) – uma das notas do caráter da rainha egípcia é o horror que lhe suscitam os portadores das más notícias. Matar o mensageiro é uma expressão conhecida e Cleópatra é apenas um dos exemplos. Há outros. A responsável pela justiça da Comissão Europeia, a checa Vera Jourová, é uma das candidatas – a comissária acha que é necessário “regular os média” para impedir a disseminação de ideias sobre o “abuso racial, discriminação e a ‘má versão do nacionalismo’ que promove a exclusão e o ódio”. Tudo isto são más notícias, certamente; mas a ideia de que os média devem ser, “se necessário”, submetidos a uma regulação específica, abrirá as portas a formas deliberadas de censura e de controle da imprensa. Todos reconhecemos que a “disseminação do ódio” é um mal, mas a criminalização da opinião e a vigilância ideológica dos média abre a porta a todas as outras formas de censura, mesmo quando mascaradas de actos de bondade. Ou sobretudo com essa máscara.
Esta fotografia é importante. O apoio dos evangélicos de Edir Macedo a Bolsonaro não me comove nem enjoa – é banal e esperado, os patifes apoiam-se uns aos outros. Antes de Bolsonaro, Edir Macedo foi um suporte importante de Lula. Aliás, Lula percebeu que estava perdido quando Edir Macedo deixou de atender-lhe o telefone.
Os países são aquilo em que se transformam – e o Brasil ameaça transformar-se naquilo que conseguiu não ser até agora, ou seja, uma vasta república sul-americana onde os caudilhos, patifes e pusilânimes podem chegar ao poder central. Antes e depois da ditadura militar (que terminou de forma trágica, com um presidente – Tancredo – que não chegou a ser), ninguém como Bolsonaro, um fanfarrão encartado, ameaçou chegar a Brasília. Muitos como ele (e outros piores, convenhamos) espalharam-se aqui e ali, em prefeituras e governos estaduais – mas a presidência acabaria sempre nas mãos de alguém que conservava o mínimo de senso. A casta dos poderosos brasileiros é uma das mais imbecis da espécie; e a esquerda local, afilhada do PT, vive entre o corrupto leninismo tupi e o folclore dos anos sessenta. Bolsonaro emerge como o chefe de gangue que quer “pôr o país na ordem” – não será eleito na segunda volta, mas forçará a eleger o mal menor. O tempo não é dos moderados (na esteira de Fernando Henrique), mas a culpa é também deles por terem deixado que os demónios emergissem desta maneira.
Pois muito me contam. Recordo as sábias palavras com que, há um ano (a 10 de setembro), o senhor ministro da Defesa espinoteou o país: “No limite, pode não ter havido furto nenhum.” Há aqui qualquer coisa de Wittgenstein: ou me dão aqui, já, as armas roubadas, ou não se pode falar das armas roubadas. E elas lá apareceram – mas, no meio de uma garabulha tremenda, em número desigual apareceram parte das que desapareceram, se me entendem, e ainda outras que não tinham desaparecido, como uma espécie de bónus. Com isso, a “instituição militar” salvou a honra do quartel; o ministro salvou a honra do governo; e as autoridades resmonearam: não há aqui nada para ver, é desandar, é desandar, Tancos não aconteceu. Parece que, afinal, houve mesmo um roubo de armas em Tancos – o que, conforme as palavras do presidente da AR, segunda figura do Estado, se revestiu de “momentos altamente cómicos”. Não exageremos, portanto. Roubaram armas em Tancos? E foram militares? Ora. Conforme disse o senhor ministro da Defesa (a 30 de junho de 2017), “não foi o maior roubo do século”. Pois muito me contam.
É muito interessante esta ideia de “a cidade é nossa”, gritada por uns manifestantes e supiníssimos, dedicados amantes de Lisboa. Eu julgava que a cidade era de quem nela vive, de quem passeava nas suas ruas – mas também de quem a visita para aprender a amá-la ou a esquecê-la (depende muito), para fazer negócios com os seus habitantes ou para entregar a sua alma (acontece). Aqueles lisboetas que anunciaram que “a cidade é nossa” (um slogan um pouco xenófobo, não acham?) não o faziam com esta veemência há uns anos, quando o centro estava decrépito, abandonado, entregue à bicharada – e o chão e as paredes dos bairros da moda cheiravam a porcaria. Infelizmente, os números às vezes são chatíssimos; por exemplo, os que dizem que pela primeira vez em muitos anos o número de habitantes do centro de Lisboa aumentou significativamente. As cidades são feitas de trocas e de negociações; e o turismo ajudou bastante a recuperar o centro de Lisboa e do Porto. Às vezes, ao escutar estes slogans fascistazinhos, apetece responder “fiquem com ela”. Mas paguem-na. E, já agora, limpem-na.
Basílio de Cesareia (330-379), uma das grandes figuras do cristianismo oriental, dizia que “a saúde em extremo é perigosa”. Escreve-o num texto maravilhoso, Discurso aos Jovens ou, na versão que acaba de ser publicada por Miguel Cabedo e Vasconcelos, Aos Jovens, Sobre como Tirar Proveito da Literatura (edição da Universidade Católica). São Basílio foi um erudito que amava a música e as letras; conviveu com os clássicos, mas sempre preocupado com aquilo que hoje designamos “realidades sociais”. É uma figura fantástica; atravessou tanto as academias como os silêncios da época, da Síria ao Egito, de Alexandria a Constantinopla, de Atenas à Mesopotâmia. Escreve a certa altura que aprendeu bastante com os homens cultos da Antiguidade “que vos deixaram palavras tais que fazem de vós [jovens] seus discípulos”. Na temporada atual, consagrada ao final do verão, o texto de Basílio é uma cratera aberta no coração das nossas inquietações. Nunca saberemos realmente como tirar proveito da literatura – a não ser a sua respiração. E, mais tarde, fartos de “saúde em extremo”, a sabedoria.
O caso de Tancos preocupa e diverte. Preocupa, naturalmente, porque se trata de armamento não apenas desaparecido mas roubado de instalações militares – e na lista está material para explosivos e munições de 9mm, sempre com boa procura. Diverte porque é uma traquinice: as autoridades clamam ter recuperado material que, inicialmente, estava a mais e que, agora, está a menos. Pelo meio, um ministro kantiano, sorrindo como Falstaff, e admitindo que “no limite, pode não ter havido furto”, uma vez que a realidade (pelo menos na geringonça) é o que quisermos que seja – e, quanto a armas roubadas, vão à internet. Claro que o ministro podia ter dito a verdade, mas preferiu aparecer como um bacano. Thomas Marshall, que foi vice-presidente de Woodrow Wilson, era um bacano semelhante. Quando o aborreciam com questões que deviam ser respondidas com a verdade, ele era lapidar: “O que este país precisa é de um bom charuto de cinco cêntimos.” A frase foi depois recuperada num romance de Saul Bellow, mas podemos adaptá-la: “O que o país precisa é de uma verdade simples de cinco cêntimos.”
A ideia de que todas as mudanças “são boas” não é seguramente verdadeira – sobretudo no “sistema educativo”, onde as experiências se acumulam depois de produzirem vítimas que dificilmente serão recuperadas. Uma organização independente inglesa, a Education Endowment Foundation, realizou durante três anos um estudo – em 140 escolas do Reino Unido – sobre os efeitos da utilização de iPads ou quadros interativos na sala de aula: a conclusão é a de que se deviam reintroduzir o giz e os quadros negros de ardósia. Os efeitos benéficos têm a ver com uma maior concentração por parte das crianças, mais atenção aos processos, aprendizagem mais sólida, melhoria da relação física com a natureza das matérias e com a ortografia, além de uma maior interação com o tempo e com os outros. Tamanha descoberta (vem no ‘Telegraph’) não me comove por aí além; procede, igualmente, do bom senso, da intuição e da experiência. Estamos a assistir a alguns regressos importantes. Depois de passar a “febre finlandesa” na educação, anseio pelos cadernos de duas linhas estreitas para treino de caligrafia.
A polémica em redor da exposição de Robert Mapplethorpe em Serralves tem sido vista como censura; se isso é verdade, ou seja, se a Administração de Serralves interditou obras devido a conteúdo sexual, incorreu num erro lamentável – mas a administração garante que não o fez. Aguardemos; os subterrâneos que ligam o “poder cultural” e a “arte contemporânea” são sempre flutuantes. O museu não pode interditar obras, substituindo-se às famílias, que fazem o que entendem, incluindo colocar na sala de estar de suas casas um gigantesco pénis fotografado por Mapplethorpe (o autor da maravilhosa fotografia andrógina de Patti Smith). De resto, as “guerras da moralidade” são tão obtusas como as interdições e as “intenções provocatórias” destinadas a chocar as burguesias que apreciam a “arte contemporânea” como subgénero das artes decorativas em geral. Se alguém estrebucha, faz-se escândalo; se ninguém estrebucha, faz-se escândalo na mesma até que a provocação seja tão banalizada que se imprima em t-shirts para oferecer às tias. Quem vai ver obras de Mapplethorpe sabe ao que vai. Aguardemos.
A greve de taxistas, sendo justa ou injusta, não me suscita simpatia; nem grande antipatia – mas alguma há de perceber-se. Depois de uma cansativa viagem de comboio (atrasado), eu e algumas centenas de pessoas não encontrámos táxis naquele mono lisboeta e desconfortável conhecido por Estação de Oriente; expliquei porquê a uns turistas – e a maior parte dedilhou os polegares no telefone e recorreu à Uber. Entretanto, à enorme fila entretanto formada, chegavam alguns táxis que anunciavam que só transportavam passageiros para fora de Lisboa. Bela amostra. Até ontem, eu era um cliente regular de táxis dentro das cidades. Fui mal atendido várias vezes (sobretudo no aeroporto de Lisboa), mas bem atendido de outras (quando peço um táxi do meu bairro). No entanto, bloquear as cidades e ameaçar com chantagem e ruído não me parece uma boa ideia para ganhar apoio da população que, munida de telemóvel, chama um carro (limpo e confortável, já agora), não quer discutir preço e não está para aturar recriminações. Este é o rumo que as coisas tomam, caso os táxis não percebam.
Alberto de Lacerda morreu no verão de 2007 (a 26 de agosto). É um poeta singular e, infelizmente, ignorado ou pouco lido entre nós. Nasceu na Ilha de Moçambique em 1928 (passam hoje 90 anos) e veio para Lisboa aos 18 anos. Com David Mourão-Ferreira, Cinatti, Couto Viana e Fernanda Botelho, fundou a Távola Redonda mas, depois disso, viveu pelo mundo fora: primeiro em Londres (trabalhou na BBC) e depois nos EUA (em Austin, no Texas, em Nova Iorque ou em Boston), onde foi um notável professor; e, finalmente, Londres de novo – onde se reuniu a dois velhos amigos dessa geração de prata portuguesa do Índico (Rui Knopfli e Eugénio Lisboa) e acabou por viver mais de 50 anos. Experimentou o drama e as vantagens da extraterritorialidade, cultivando sempre uma ironia ácida, uma melancolia tingida de cinismo, uma poesia apreciada por eleitos. O seu vastíssimo espólio, esse, continua sem encontrar uma casa. Fica a poesia: “A minha intenção/ Se a tivesse/ Era interromper de vez em quando as vossas falas/ E fazer-vos voltar a cabeça silenciosos/ Na única direcção em que os versos existem.”
Tenho uma grande admiração por Marco Pierre White. Para quem leu a sua biografia, ‘Um Diabo na Cozinha’, ou para quem acompanhou as suas tropelias pela imprensa, o feitio do ‘chef’ inglês (que aparecia amiúde no MasterChef australiano) não é novidade. No mundo do comércio, Marco Pierre White (mentor de vários ‘chefs’ como Ramsay, Blumenthal ou Batali) fez o que tinha a fazer e, como estrela pop, deve ter negociado bem; mas o que mais me interessou foi o seu gesto de, aos 33 anos, recusar as três estrelas Michelin para o seu restaurante londrino – devolvendo-as para “reconquistar a liberdade”. A verdade é que as estrelas Michelin são uma armadilha e acabam por impor um padrão de gosto, de etiqueta e de esquizofrenia – e são um braço armado da política cultural francesa. Agora, o Guia Michelin procurou Marco em Singapura, onde tem o seu novo restaurante, mas o cozinheiro recusou a visita dos inspetores – quer fazer comida à sua vontade. Há uns tempos dizia que preferia comer um pastel de nata no aeroporto de Lisboa do que um menu de degustação. Um tipo livre e de mau feitio.
Número especial da revista Oceanos, editado por mim.
Foi há duzentos anos que a Ilha de Moçambique – mil e quinhentos quilómetros a norte de Maputo – foi elevada ao estatuto de cidade pelo governo português de então, em 1818. A Ilha, que fora entreposto de escravos desde a passagem de Vasco da Gama em 1498 (e até ao século XIX), e primeira capital da então província ultramarina, foi também um
lugar de “cruzamento de culturas”. A expressão hoje banalizou-se, e não quer dizer senão “muita gente diferente”, mas quem captou melhor essa herança foi o poeta Rui Knopfli: “Caminhos sempre abertos para o mar,/ (...) uma lentura / brâmane (ou muçulmana?) durando no ar.” Hindu, muçulmana, cristã, animista ou puro lugar de contemplação – a ilha teve muitos poetas de visita (Camões, a abrir, mas também Tomás Gonzaga, Jorge de Sena, Alberto de Lacerda, Knopfli, Mia Couto, Eduardo White, Luís Carlos Patraquim, Virgílio de Lemos, a lista é vasta) e foi uma espécie de paraíso que sobreviveu às várias guerras, a colonial e a civil (a esta, com dificuldade). É, se me permitem o devaneio, um dos lugares mais belos do mundo. Uma herança luminosa.
Não sei se reconhecem esta argumentação, mas ela assenta em duas frases acopladas: “Ainda não era isto. É outra coisa, mesmo ao lado – mas muito melhor.” Com o fim da URSS ouviram-se muitas vozes defendendo que não se tratara – ainda – do verdadeiro socialismo; por isso é que tinha falhado; por isso e por falta de tempo. Escuso de falar do Camboja (que em poucos anos eliminou milhões de cambojanos nos campos de reeducação), da China, do “modelo albanês”, da pobre Roménia ou da caricata Coreia do Norte. Com o caso da Venezuela era importante reler hoje as grandes declarações de apoio ao “socialismo do século XXI”. Houve entre nós epígonos ilustres que chegaram ao cúmulo de defender Hugo Chávez quando encerrou televisões e fechou jornais. Parte deles repete a lengalenga do “ainda não era isto”. Assisti na Venezuela ao nascimento desta ditadura anunciada e ominosa enquanto, na academia e na imprensa, europeus fartos (quase sempre confortados com dinheiros públicos) defendiam a catástrofe e os “bons revolucionários” que faziam a revolução onde ela não podia incomodá-los.
Em Portugal tivemos (e temos) os nossos casos, mas agora comovem-me estas revelações sobre o currículo de políticos espanhóis: primeiro-ministro (um habilidoso), ministros, líder da oposição, mais uma série de políticos de pequeno e médio porte – todos apareceram manchados por acusações de plágio descarado nas suas teses universitárias, e há mesmo casos de mestrados inexistentes ou de teses que não valem um chavo, sem falar de menções a cargos anteriores que depois se percebe que não foram exercidos. A primeira reação é a mais óbvia e compreensível: trata-se de uma geração de aldrabões notórios que quer parecer o que não é, tratando de embelezar com dignidade académica o ‘lerolero’ e o ‘parlapié’ moderninho com que traulitam na vida política, com o apoio e a cumplicidade de universidades da treta. Na circunspecta Alemanha, ministros (um deles, a da educação) e deputados caíram por plágio de tese, a provar que o vírus é universal – mas que deve ser castigado. Já agora, a informação: há dois anos, a Universidade de Coimbra anunciou 60 casos de plágio entre teses dos seus alunos.
Passam hoje dez anos sobre a morte – trágica – de David Foster Wallace (1962-2008). O seu romance A Piada Infinita é um emblema da literatura americana dos anos da mudança de século (foi publicado em 1996, só em 2012 saiu a edição portuguesa) e, até agora, sem sucessor à altura. Pelo movimento da prosa, pela ironia, pelo pessimismo radical, pela forma como leu o espírito do tempo, A Piada Infinita era o livro ideal para ser esquecido – mas não foi. Wallace ainda começou a escrever um novo romance (O Rei Pálido), uma obra incompleta que arrebatou o Pulitzer postumamente. O livro Uma Coisa Supostamente Divertida Que Nunca Mais Vou Fazer, onde mistura ensaios e reportagens delirantes (um congresso de necrologistas, um cruzeiro nas Caraíbas, a indústria da pornografia, a ficção televisiva, um festival da lagosta, o ténis de Federer, etc.) é o grande guia para a sua obra e a sua dispersão. Wallace suicidou-se aos 46 anos, mergulhado numa profunda depressão que o atormentava sem cessar. Olhando para trás – não há ainda um sucessor desta obra nem da sua energia maníaca.
Para lá do debate sobre o caráter facultativo da leitura de Os Maias no ensino secundário há outras questões que deviam colocar-se acerca dos currículos propostos. Em primeiro lugar, a linguagem usada para justificar os programas – uma trapalhada que, em certos casos, não resiste sequer à primeira leitura. Custa a crer que no Ministério da Educação não exista gente que escreva com clareza, elegância e sem atropelos. Provavelmente não há (duvido), mas o problema não é ‘deste’ ME, mas de qualquer um dos anteriores ‘ME’, onde por vezes parece que um bando de cripto-pedagogos anda à solta com os complicómetros ligados. E, depois, se me permitem, gostava de saber se os professores têm sido ouvidos sobre as alterações curriculares. Se alguém – lá, no céu ministerial onde os cripto-pedagogos congeminam – andou pelas escolas, ouvindo professores que estão todos os dias em contacto com os alunos (não falo daqueles que não dão aulas) e que acumulam anos e anos de experiência. E se esses professores, muito deles o orgulho da profissão, são mesmo ouvidos. Porque merecem ser ouvidos.
Não volto a Os Maias para vos atazanar com literatura, mas por causa da memória. Em 1991, quando Dublin foi capital europeia da cultura, um dos programas turísticos mais populares era o percurso de Ulisses, de Joyce, na capital irlandesa: começava às 8 da manhã, terminava depois da meia-noite e pagavam-se 10 libras da altura (o programa estava sempre esgotado). Dublin está cheia de Joyce – tal como Portugal está cheio de Eça (ou de Camilo, ou de Aquilino, façam a lista). Claro que é possível fazer o percurso de Tormes (e reconstituir o jantar de A Cidade e as Serras), visitar o Solar dos Condes de Resende em Gaia (onde Eça se enamorou de Emília e onde é hoje a sede da Confraria Queirosiana), passar no casarão abandonado de Verdemilho, venerar a estátua de Eça na Póvoa, imaginar a Oliveira de Azeméis de A Capital e a Leiria do Crime, observar o lugar onde foi demolida a casa da Granja. Ao ocupar o Palácio do Ramalhete, Madonna também evoca a nossa memória (mesmo falsa) de Os Maias. É essa a importância dos nossos clássicos. Fingirem, connosco, que estão vivos.
Não sei se vale a pena criar um drama por causa de Os Maias, que passará a ser opcional no Secundário. Que os alunos leiam um romance de Eça é bom, desde que o façam mesmo. Grave é, no programa do 11.º, serem obrigados a ler o penoso Frei Luís de Sousa mas só opcionalmente um romance de Camilo (ou Garrett), ou estarem ausentes poetas do renascimento exceto Camões, do barroco ou do romantismo. O problema é que Os Maias, tal como Amor de Perdição, a lírica de Camões, o Bocage romântico, Cesário, Aparição, entre outros, são elementos comuns a um conhecimento intergeracional da nossa cultura – o cânone, que hoje é odiado por uma multidão de ressentidos modernos. O romance de Eça está ao nível do monumento; dispensá-lo é como deixar de lado a complexidade dos Jerónimos ou da charola de Tomar. O ensino da literatura não pode estar desligado da passagem do tempo e do conhecimento da nossa história – e não pode ser usado apenas para estudar gramática e interpretar textos. Mas, como de costume, desde que haja um bom professor, um aluno está salvo. É a nossa esperança.
Atualização: as auctoridades voltaram atrás; vá lá.
Algumas almas cândidas, que apreciam muito escandalizar-se, declararam-se chocadas com a ideia de Rui Rio abrir fogo (no meio de um discurso às juventudes do PSD) sobre a imprensa e o Ministério Público. Sobre o Ministério Público e a Justiça, trata-se de um combate antigo de Rui Rio; já a carga de cavalaria sobre a imprensa, é mais do que combate – é obsessão. Rui Rio não entende o funcionamento da imprensa nem aprecia que uma entidade livre (ainda por cima, não eleita nem dominada por eleitos) ande à solta. É certo que isto diz mais dele do que da imprensa, mas devemos ser tolerantes. A certa altura do seu discurso, Rio diz que a imprensa apenas se preocupa em vender e em fazer manchetes, como se isso fosse um pecado e Rio preferisse que a imprensa fosse propriedade do Estado para que os eleitos a manietassem a seu gosto. Ai de nós. Poderíamos brincar e sugerir que, para Rio, o jornal ideal seria um boletim elaborado pelos eleitos da sua Junta de Freguesia, com informações autorizadas pelos órgãos competentes, mas seria brincar com o fogo; e com Rio não se brinca.
Recebi seis emails de leitores indignados por ter aqui defendido o direito, da Universidade do Porto, a não proibir uma conferência – creio que sobre alterações climáticas. Na perspetiva dos meus ilustres correspondentes, o facto de achar que não se devia proibir uma conferência (um ajuntamento, uma discussão, um sinédrio, seja o que for), parece que me coloca do lado dos que “deviam ser proibidos”. Ora, haver manifestos contra a conferência, e resposta dos organizadores, e troca de argumentos – contribui para o esclarecimento, o debate e o restabelecimento dos níveis de tensão arterial. Hoje em dia está muito na moda proibir; elites vagamente cultas, letradas, certinhas, educadas em liberdade, costuma apelar à proibição disto e daquilo com argumentos morais, políticos e, pasme-se, éticos. No velho Speakers Corner de Londres, antes da internet, a polícia velava não para impor o respeito pela ordem estabelecida – mas para que ninguém interrompesse os oradores, que normalmente diziam coisas estapafúrdias sobre os políticos, a Rainha, a ciência e a moral. Civilização.
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