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O The New York Times publica todas as semanas uma entrevista intitulada By the Book em que escritores falam dos livros que estão a ler e quais recomendam, com que autores gostavam de jantar, que livros leram na adolescência, quais são os livros da sua vida, etc. É uma coisa de bom gosto, até pelos nomes dos entrevistados. Na edição deste fim de semana, uma revista para mulheres millenials desmontou a coisa: teve o cuidado de ir fazer arqueologia e de comprovar que os autores homens recomendam mais livros de homens do que de mulheres – o que é, pelo que li, um aspeto a corrigir com a introdução de quotas, 50-50, ou então há denúncia na praça pública – independentemente do gosto e da qualidade literária, coisa de somenos, porque o machismo está onde menos se espera. Veja-se Cynthia Nixon (a Miranda da série O Sexo e a Cidade), candidata a governadora de NY, que promete uma medida importante para a igualdade de género: regular e aumentar a temperatura do ar condicionado, que é machista e prejudica as mulheres, por vestirem menos roupa – e passam frio durante o verão.
Gosto do meridiano de Greenwich, que determina o nosso fuso horário. Gosto de ter esta hora equilibrada – com o sol a nascer de acordo com as estações ao longo do ano e a luz do dia a desaparecer de forma gradual, sem alterações abruptas. E não, não gosto dos domingos em que muda a hora, atrasando ou adiantando a hora de acordar, recolher a casa ou escurecer de repente, de um dia para o outro – o que ocorre em março e outubro. A Comissão Europeia, pressionada por muitas vozes, decidiu finalmente ouvir os cidadãos sobre o que lhes andam a fazer aos relógios biológicos, depois de se ter verificado que a alteração de horário “de verão” e “de inverno” não traz grandes benefícios para a economia – e, segundo a imprensa alemã, parece que 80% dos europeus inquiridos (cerca de 4,6 milhões) é contra a mudança de hora. Também parece que essas alterações de hora, repentinas e artificiais, têm mais impacto do que se supunha sobre o nosso comportamento. A decisão ainda não foi tomada, mas é um dever impedir que a escuridão desça sobre as nossas cabeças, de repente, em outubro.
Sou o pessimista de serviço – estou aqui para vos dar as boas notícias: chegou a altura de dizer a verdade. De 2008 até hoje encerraram muito mais livrarias do que aquelas que abriram, ou seja, suspeita-se que mais de um quinto fecharam as portas. Ao contrário das medidas “gerais” preconizadas por um grupo de generosos livreiros que recentemente tornou públicas as suas apreensões sobre o tema, eu penso que são necessárias medidas “globais”. Um pacto de regime. Em primeiro lugar, que o Presidente da República e os governantes não continuem, por exemplo, a repetir a lengalenga de que tudo vai bem no mundo do livro; que os partidos sejam chamados à atenção; que as associações do sector olhem mais longe – para o futuro. E não me venham com números sobre o crescente número de leitores (comparativamente, no Eurostat, estamos mal, muito mal). Trata-se de um pacto de regime sobre a leitura. Se, ao contrário de França ou de Inglaterra, as autoridades não estão despertas para o assunto, envolvendo (à cabeça) o Ministério da Educação – daqui a 10 anos estaremos uma desgraça, salvo seja.
Há quem goze com a figura do Presidente em fato de banho, toalha e chinelos, mergulhando em praias fluviais, lagoas, açudes e rios. Eu também gozo – faz parte do nosso mistério lusitano, encontrar motivo para desconfiar de tudo. Mas, porque é que Marcelo Rebelo de Sousa tem razão na sua campanha de chamar a atenção para o interior do país? Porque ninguém o fez antes de forma tão categórica. Fizeram-se discursos, claro – e medidas tão avulsas como anedóticas em torno de benefícios fiscais irrisórios. Mas ir lá (lá mesmo, onde fica o interior, em Côja ou em Figueiró, seja onde for), só Marcelo foi – e a sua campanha tem mostrado um país que as televisões só conhecem quando há tragédias, dramas, agências dos CTT ou da Caixa a encerrar. Esse país faz parte da paisagem em torno de Lisboa e do Porto, num raio de 500 quilómetros, mas só conta como paisagem. E mesmo o escândalo dos atrasos nos comboios só foi escândalo porque a certa altura afetou o Lisboa-Porto. Nesse país que Marcelo visita para que o vejamos, os comboios estiveram sempre atrasados. É por isso que ele tem razão.
Lisa Brennan-Jobs é a filha de Steve Jobs (1955-2011), o fundador da Apple, um dos cérebros mais criativos da era de Silicon Valley e do digital – e, claro, o refrão para mais de uma dezena de livros sobre como era genial: Jobs, o inovador, o visionário, o imperador, o mágico, o líder, o criador do mundo. Passados sete anos sobre a sua morte, Lisa Brennan-Jobs (que o pai rejeitou e abandonou durante anos, antes de realizar um teste de DNA) conta num livro a publicar esta semana nos EUA, Small-Fry, a natureza da sua relação e a forma como sobreviveu a ela. O livro é apaziguador para Lisa (que lhe perdoa tudo), mas é chocante para o leitor: Jobs aparece à luz desses anos 80 da Califórnia, onde os hippies se associavam aos maníacos de ficção científica para criar computadores e engendrar fortunas, como um homem frio, cruel, insensível – mas a quem Lisa perdoa tudo. Já agora, mesmo com a fortuna de Jobs, tiveram que ser os vizinhos a reunir dinheiro para pagar os estudos de Lisa (a quem o pai não instalou aquecimento no quarto para lhe ensinar “um sistema de valores”).
Os casos acumulados contra Trump (soube-se de mais um, extraconjugal) revelam – como se sabia há muito – um caráter ignóbil. Há quem defenda que as questões de caráter não para chamadas para a área da política. São, quando interferem com a capacidade de julgamento ou a confiança dos cidadãos. A morte de John McCain, o senador do Arizona, vem reacender a discussão sobre o destino do partido Republicano, entregue agora a uma vaga de populistas dos quais Donald Trump é a excrescência que chegou ao topo. McCain foi a última tentativa de seriedade na liderança dos republicanos, herdeiro da tradição anti-esclavagista, abolicionista (como Lincoln), conservadora, reformista, e teria dado um bom presidente dos EUA. O populismo, infelizmente, é uma sereia trágica para as lideranças políticas de hoje – e repete, como num guião mal ensaiado, os momentos de torpor e mediocridade de outros momentos da nossa história, quando os eleitorados prescindem de verificar a qualidade dos eleitos ou as mentiras dos seus discursos. À esquerda ou à direita, em doses idênticas, a tentação é grande.
José Afonso (1929-1987) foi um notável autor, poeta e cantor que mudou a história da música popular portuguesa; a par disso, que já não é pouco, é um dos símbolos do 25 de Abril e ‘a voz’ essencial na luta contra a ditadura. Seja como for, não é a proposta de trasladação de José Afonso para o Panteão que está em causa. Em relação ao assunto, e serenamente, a família do músico impôs bom senso, fez prevalecer o respeito pela vontade de José Afonso e evitou uma discussão frívola em terreno minado. A existência do Panteão implica, também, um conjunto de regras que sirvam para unir os portugueses em torno da decisão de incluir, com gratidão, mais um nome naquela galeria de notáveis – não para os submeter a um exame ideológico ou para fazer vingar uma dada leitura do passado. Vinte, trinta, quarenta, cinquenta anos: é um período curto para que o juízo da História assente como uma poeira definitiva. Alterar as leis – como se tem feito, levianamente, ao sabor da ocasião e das euforias – para substituir o tempo pela “comoção popular” é um péssimo serviço à nossa memória.
David Friend, que foi editor da Vanity Fair (e na Life) escreveu um belo livro, The Naughty Nineties (havia um filme de Abbott & Costello com esse título, mas de 1945): os picantes, marotos, pecaminosos anos 90 – ou seja, como viveu a América dos anos Clinton no meio de sexo, alcovas alheias, escândalos, trocas de casais e de fluidos. Norman Mailer já tinha identificado a “energia sexual” dos anos Kennedy no romance O Fantasma de Harlot, de primeira ordem. Os tempos que correm não têm essa energia, nem esse tom alcoviteiro – um presidente ignóbil não dá tesão, e as histórias de sexo são sombras do passado que regressam para vinganças ocasionais. Asia Argento, que fez a agit-prop do movimento #MeToo, acusou Harvey Weinstein de abusos sexuais há 20 anos. Agora, é ela a acusada de ter abusado sexualmente de um jovem ator de 17, há cinco anos. A lei considera crime manter relações sexuais com menores, mas aos 17 um rapaz já tem ereções e Asia não lhe pediu identificação. Comecei a simpatizar com ela: no meio dos sevandijas gerais, abusar de um rapaz de 17 é um gesto romântico.
Evocar hoje o francês Roger Martin du Gard é mencionar uma velharia – na minha adolescência, era quase obrigatório ler O Drama de João de Barois (1913), o romance-discussão sobre a emancipação do catolicismo, sobre o medo da religião e o aproveitamento político das questões de fé. Não só: também sobre o drama íntimo e intransmissível de um homem que deixa, por escrito, o pedido para que o não deixem regressar à sua fé religiosa. Mas a sua obra mais famosa foi Os Thibault, oito volumes intermináveis, publicados de 1922 a 1940 – um fresco monumental de análise à vida burguesa e familiar da França nas primeiras décadas do século XX e durante a I Guerra (a obsessão da sua vida era o Guerra e Paz, de Tolstoi). Pelo meio, em 1937, Martin du Gard recebeu o Prémio Nobel. Recordo-o porque passam hoje 60 anos sobre a sua morte, em 1958 (nasceu em 1881) e porque é um daqueles escritores (amigo de Albert Camus e de André Gide de quem, em breve, também ninguém se lembrará) que já quase nada significam, e cuja humanidade está tão fora de moda como os seus livros.
Ninguém, ai de nós, está contente com a imprensa. Tanto ela publica notícias desagradáveis (publica), como tem ‘alinhamentos’ (tem) ou o hábito de desdizer o palavreado dos poderosos ou dos incensados. Fradique Mendes, o personagem heterónimo de Eça, afiançava que o senhor arcebispo de Paris detestava “essas folhas impressas que aparecem todas as manhãs”; os primeiros-ministros que telefonam aos jornalistas concordam com o arcebispo. Claro que quem se afeiçoa ao poder que detém na imprensa acha que tudo o que se publica de negativo “é uma conspiração” (veja-se o BE, que ainda hoje não percebeu o “caso Robles”); e quem a desejava como pau mandado fica frequentemente desiludido. A verdade é que quem vai à guerra não pode esperar que lhe respeitem as trincheiras. Ontem, por exemplo, o PSD reagiu no Twitter a um texto que lhe não agradou, aproveitando para identificar o nome da jornalista, ironizar sobre a notícia e, depois de uma temporada no mausoléu, despertar com uma tuitada – como se sabe, muito depressa se descobre um Trump no Campo Alegre, como diz um provérbio anónimo.
Há dois duetos de Aretha Franklin que acho inesquecíveis e nenhum deles é com George Michael – uma versão de “What Now My Love”, com Frank Sinatra, e “Don’t Waste Your Time”, com Mary J. Blige (também há um com Luther Vandross). Explico: há duetos em que uma das vozes explica à outra como se canta; acontece com Bob Dylan vencido por Johnny Cash, ou de Bono destroçado pela Mary J. Blige. Aretha venceu todos os seus duelos, como se cantasse “Respect” a plenos pulmões, mesmo em temas românticos e suaves. Toda a sua música é um dueto. Há canções, como “Without the One You Love” ou a versão de “What a Difference a Day Made”, que não têm a ver com as suas três ou quatro mais conhecidas, “Respect” à cabeça, logo seguida de “I Never Loved A Man”, ambas um prodígio de voz, harmonia, ironia, inflexões que tanto lembram o jazz como abrem caminho pelos palcos de qualquer género. Essas são as duas faces de Aretha Franklin: doce (em “I Wish I Didn’t Love You So”) e impagável e imponente, como em ‘Respect’, que ela – filha de pregador – não deixou de cantar ao apresentar-se às portas do céu.
Se bem que pelo menos um quarto dos oradores convidados sejam mais do que dispensáveis, não se sabe o que passou pelo cerebelo dos organizadores para convidar Marine Le Pen a vir à sessão da WebSummit de Lisboa. Talvez ouvi-la, mas nunca se sabe. O absurdo seria idêntico se se convidassem Trotsky, Estaline, Franco ou o antigo diretor dos Serviços de Censura a ir a um debate sobre liberdade de imprensa; eu sei que a analogia parece imprópria (não é), mas a cosmogonia da globalização e da internet não têm nada a ver com Marine Le Pen. Um absurdo. Mas esta é a cacofonia da própria WebSummit: um evento pop em que certas pessoas se conhecem e talvez façam negócios (10%, no máximo, ao que se sabe), e onde a generalidade dos discursos festeja o próprio acontecimento de tablet na mão. Nada contra; somos um país de turismo e a WebSummit é um instrumento interessante e útil. Quanto à questão política: não se tratava de proibir Le Pen de vir ao acampamento – mas, simplesmente, de não convidar a senhora; melhor do que desconvidá-la e dar-lhe palco. Para populistas, já cá temos.
Não sei se recordam a passagem de Os Maias em que João da Ega se manifesta contra o perigo de levar a civilização até às mais recônditas paragens do globo. Segundo o Ega, isso seria péssimo para o turista que, depois de muitos sacrifícios para chegar a Tumbuctu, encontrava lá, afinal, cavalheiros africanos de cartola, civilizados, a ler o Jornal dos Debates. Nessa altura já se conhecia o nome do Sr. Thomas Cook (1808-1892), que não só criou as viagens de grupo em comboio, como inventou os vouchers de hotel e a indústria moderna do turismo. A agência de viagens que leva hoje o seu nome decidiu indemnizar uma cliente, Freda Jackson, súbdita britânica que foi para Benidorm, uma conhecida selva de Espanha – onde contava fazer férias (conta o CM). Não pôde: no hotel havia, queixa-se ela, “demasiados espanhóis”, rudes e barulhentos. Além disso, a “animação local” era dirigida a espanhóis, coisa que não se entende sobretudo porque Benidorm fica, aparentemente, em Espanha. Ms. Jackson tem toda a razão: que ideia absurda, a de haver espanhóis em Espanha. Toma lá, João da Ega.
Para sermos justos, o poema “Se”, de Rudyard Kipling (o autor de ‘O Livro da Selva’), só se aprecia verdadeiramente no original, “If”. Mas todos o conhecem: “Se fores capaz de sonhar sem deixar que os sonhos te escravizem...” Foi escrito para o filho, em 1895 – e é considerado um dos mais representativos da língua inglesa. Na universidade de Manchester, onde estava afixado numa parede, foi tapado pela associação de estudantes – que não tem nada contra este poema de Kipling, mas contra o “colonialismo do autor” – e substituído pelo belo poema da poetisa negra americana Maya Angelou “Stil I Rise” (“Podes inscrever-me na história/ com as mentiras amargas que contares./ Podes arrastar-me no pó/ Ainda assim, como pó, vou levantar-me...”). A razão terá a ver com o alegado “racismo” e o “imperialismo” de Kipling (apesar do belo poema) e com a necessidade de “descolonizar a universidade”. Contaminar o passado a partir do presente tem a sua razão de ser, mas é idiota. Por aquelas cabecinhas não correu a ideia de colocar os dois poemas lado a lado; precisam de banir o que não cabe lá dentro.
V.S. Naipaul (Vidiadhar Surajprasad Naipaul, Trinidad e Tobago, 1932), que morreu anteontem em Londres, esteve há dois anos em Portugal – é o autor de alguns dos livros que mais amo, como A Curva do Rio, Num Estado Livre, Uma Casa para Mr. Biswas ou O Enigma da Chegada. Antes do pós-colonialismo, do ressentimento e da hipocrisia política, V.S. Naipaul escrevia sobre o desenraizamento, as sociedades que se tinham libertado da dominação colonial e sido submetidas por regimes despóticos – os seus personagens solitários, valentes, nostálgicos e discretos são miniaturas magníficas, preciosas. Em Metade da Vida passa por Moçambique quando os portugueses estão prestes a abandonar aquele país: “Nunca admirei tanto os portugueses como naquele momento.” Naipaul foi, como escritor, um repórter minucioso – e um autor desassombrado, sem medo das críticas ‘politicamente corretas’ que desprezavam a literatura que não fosse escrita em nome de “valores superiores.” Essa forma de tirania e de submissão, Naipaul nunca a aceitou. Esta é a despedida a um enorme autor.
Independentemente das causas dos incêndios – eles existem. Diante das tragédias naturais e humanas, a única coisa que se pode fazer é estarmos preparados para elas, lutarmos contra a força devastadora das chamas, evitar perdas, programar-se o futuro. Diante disto, ninguém exige aos políticos que apaguem os incêndios por decreto ou magia – mas que sejam usados com competência todos os meios ao seu dispor. E que sejam verdadeiros. E que escolham os melhores para o combate de hoje e os melhores para pensar nos combates do futuro. No ano passado não foram nem competentes nem verdadeiros; nem tocados pela nobreza da humildade e da generosidade, pedindo desculpa pelos erros e pela descoordenação (que voltaram este ano). Pelo contrário, um ano depois ainda se discute o drama de Pedrógão e ninguém fica realmente convencido com a escolha do eucalipto como inimigo da espécie humana e como causa de todo o mal. O problema é achar que a política é o campo permanente da propaganda, e que com promessas de “sucesso” e frases de campanha a serra de Monchique ficava a salvo. É uma pena.
Vestir com simplicidade e ser discreto na roupa – e, além disso, prestar-lhe (ou parecer mostrar) pouca atenção. Essa é a grande virtude da verdadeira sofisticação. Longe de mim querer associar-me aos “polícias do estilo” ou competir com os comentadores e comentadoras de moda, muito atentos ao mister da sua profissão, mas há coisas em que se tropeça com humor e certa alegria. E uma delas é o estado dos sapatos do príncipe Harry, que compareceu no casamento de um amigo de infância exibindo um nobre e britânico buraco na sola (do pé esquerdo, notou a imprensa). Risota no mundo dos parvos. Há uma passagem de Orgulho e Preconceito, de Jane Austen, em que Miss Bennet olha, muito curiosa, para os sapatos de Mr. Darcy – podem imaginar isso na adaptação cinematográfica com Keira Knightley e Mathew Macfadyen, mas não na de Lawrence Olivier com Greer Garson. Ora, Mr. Darcy, tal como o príncipe Harry, era pessoa para se apresentar com um buraco no sapato e manter todo o seu charme antes de requisitar umas meias solas no sapateiro, como faziam os cavalheiros de antigamente.
Não sei se isto acontece com regularidade mas valia a pena fazer um estudo comparativo sobre gente com responsabilidade política, pública e até governativa, que tem “suscitado dúvidas” sobre o seu currículo. Espanha, Itália, Alemanha, naturalmente Portugal – há algures um mestrado que não se frequentou, um cargo que não existiu, um artigo que não se escreveu, uma universidade onde não se esteve. Por um lado, infantilidade pura: com os meios de hoje, é fácil verificar um currículo e transformar uma dúvida numa nódoa persistente e à vista de todos. Por outro, mais infantilidade ainda: falsificar, embelezar ou engordar um currículo é coisa de flibusteiro, ou de um pavão que não resiste à vaidade da mentira. E uma deslealdade de todo o tamanho. Será coisa geracional? Também; há sempre quem queira um mestrado para pendão da genealogia. Antes da net era mais difícil encontrar as falhas; depois, é menos difícil mentir – e fácil ser descoberto. “Grande coisa, ter um curso!”, dizia o nobre Vilaça, de Os Maias, na festa de formatura de Carlos Eduardo em Coimbra. Outros tempos.
É pela Linha do Douro que Jacinto e Zé Fernandes, os de A Cidade e as Serras, entram em Portugal vindos de Paris – por Barca d’Alva, Pocinho, Tua, Pinhão e Régua. Aquele “cheira bem” pronunciado por Jacinto ao entrar na velha pátria não podia repetir-se hoje, porque esse troço ferroviário foi fechado há muito. Mas Santa Apolónia continua aberta – é lá que, em Os Maias, Carlos da Maia é salvo pela providência: à partida do comboio para o norte, a senhora condessa de Gouvarinho, sua amante, aparece acompanhada do marido, e ele não tem de inventar desculpas para não a acompanhar numa noite de luxúria em Santarém. Hoje não seria preciso: o comboio provavelmente não partia ou iria avariar no Carregado. Há linhas que encerraram porque, além da concorrência desleal do asfalto (pago pelos fundos europeus) não tinham condições nem passageiros. Mas há outras que fazem parte da nossa vida – e não funcionam. No Crime no Expresso do Oriente, de Agatha Christie, o comboio imobiliza-se no meio da neve, o que facilita a investigação de Poirot. Em Portugal o comboio não teria sequer partido.
Foi preciso esperar que várias gerações tivessem perdido a memória e o sentido do ridículo para que a expressão “Fado, Futebol e Fátima” pudesse ser escutada sem o tradicional esgar de horror. Esse era o retrato, em resumo e com pinceladas fortes, que se fazia do país sob o salazarismo – e que as “novas gerações” que tomaram conta do regime de 1974 (e que são hoje “senadores da República”, expressão medonha) iriam tratar de mudar. Tempos atrás de tempos, no entanto, são o melhor dos mestres em política como na vida em geral. Veja-se o que Madonna explicou aos sociólogos através de uma entrevista à ‘Vogue’ (edição italiana): “Digo sempre que Portugal é governado pelos três ‘F’: Fado, Futebol e Fátima.” Claro que a entrevista foi lida como uma prova de “amor a Portugal” e as autoridades ficaram contentes, sorridentes e disponíveis para encontrar mais lugares de estacionamento para a cantora. Mas eu, que passei décadas a ouvir alguns dos atuais incumbentes políticos a desdenhar de fado, futebol e Fátima, vejo que o país, afinal, está tão catita como antes. Pois muito me contam.
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