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Aqui há dias escrevi sobre os que, entrando na vida política, adulteravam os seus currículos, acrescentando graus académicos inexistentes, cursos que não se frequentaram ou cargos onde não se esteve. É um tipo particular de provincianismo pacóvio. O vereador Ricardo Robles é um provinciano de outro tipo: limitou-se a anunciar que o que diz não faz sentido, e que os seus discursos inflamados sobre a especulação imobiliária, a “gentrificação”, o mundo dos malvados que não concordam com a bondade do seu radicalismo, não passavam de um exercício de retórica para ludibriar os outros. Fernando Pessoa, que era um ironista fino, inventou a figura do banqueiro anarquista; Robles, que é um ativista obtuso, criou a do especulador comunista; o Bloco apenas se limitou a confirmar o seu moralismo de pés de barro. Na Espanha dos anos 80 criou-se a designação gorda de “beautiful people socialista” para a clique oligárquica que enriquecia à sombra dos seus discursos sobre como eram “modernos” e de esquerda. Robles faz parte do “beautiful people”; já sabíamos. Mas o moralismo é insuportável.
O meu avô era um termalista. Durante quinze dias ia a águas, disciplinado e conformado; bebia a água, tomava os banhos, passeava no parque. Creio que acrescentou mais de dez anos à sua vida. Quarenta anos depois, levanto-me às sete, tomo a água indicada em três doses, até às oito e meia; faço o resto dos exercícios, entro em gabinetes onde há água, sou fustigado por água, massajado por água, volto a beber água durante a tarde, passeio no parque, leio. Um cavalheiro local, vendo-me como um pacóvio a caminhar pela rua, recomendou que olhasse para o céu, onde estão os bosques do Gerês – e não para o chão. Fez bem: é lá que se repousa, no céu onde estão os bosques. Não sei onde tenho andado que ainda não tinha descoberto este lado do planeta. Às vezes, tomada a água, passeio pelo parque do Gerês e julgo encontrar o meu avô, que sabia tudo sobre comboios e quase tudo sobre as termas. Os meus médicos sugerem que me falta uma vitamina qualquer que se encontra debaixo do céu, tal como as termas – um reduto da civilização de outrora, juntamente com a caligrafia, a leitura e a contemplação.
De ‘Spartacus’ (de 1960, com um elenco de primeira ordem onde figuravam, além de Kirk Douglas, Lawrence Olivier, Peter Ustinov, Tony Curtis, Jean Simmons) a ‘De Olhos Bem Fechados’ (‘Eyes Wide Shut’, 1999) ou ao seu último projeto, ‘AI, Inteligência Artificial’, que acabou por ser realizado por Spielberg, a lista de filmes imaginados, produzidos ou escritos e dirigidos por Stanley Kubrick (1928-1999) inclui títulos inesquecíveis e fundamentais para a história do cinema. O polémico ‘Laranja Mecânica’ (1971) é sem dúvida um deles, tal como ‘2001: Odisseia no Espaço’ (1968), uma sinfonia angustiante, ou a maravilhosa adaptação de ‘Lolita’, de Nabokov (com James Mason), ou ainda ‘Shinning’ (1980), adaptando o livro de Stephen King (Jack Nicholson num dos papeis da sua vida). Mesmo deixando para trás ‘Dr. Strangelove’, há ainda ‘Nascido para Matar’ (‘Full Metal Jacket’, 1987), a sua versão do Vietname e da violência. Mas o mais notável de todos é o maravilhoso ‘Barry Lyndon’ (1975), onde está toda a gramática do seu génio, e uma banda sonora notável. Kubrick completaria hoje 90 anos.
Passam hoje 130 anos sobre o nascimento de Raymond Chandler (1888-1959), o criador do maior heroi contemporâneo do romance policial, Philip Marlowe. Livros e filmes como À Beira do Abismo (The Big Sleep), Playback ou O Último dos Duros (Farewell, my Lovely) transportam consigo a melancolia, a coragem e o modelo de homem solitário que Marlowe interpretou como ninguém na história do policial: um detetive honesto e duro, sem ilusões nem futuro, sem paixões duradouras nem valentia escusada. Marlowe (que no cinema teve os rostos de Humphrey Bogart ou Robert Mitchum, James Garner, Robert Montgomery, Eliot Gould ou James Caan) é a sua maior criação – mas o modo como o género policial se transformou, também, em literatura, deve-se a livros inesquecíveis como A Dama do Lago ou O Imenso Adeus, histórias tão fascinantes há 50 anos como hoje. Neles está presente o grande génio de Raymond Chandler, um gentleman que trouxe dignidade, intensidade e beleza ao romance policial. Nenhum autor como ele soube fazê-lo com tanta delicadeza. Está na eternidade, entre os grandes.
Não sei se o extravagante grupo de 20 heroicos deputados portugueses que apelou ao Supremo Tribunal brasileiro para que libertasse o ex-presidente Lula (que o mesmo tribunal mandou prender) tem continuado a fazer apelos a instâncias internacionais – mas suponho que não. Caso faltem matérias, recomendo que prestem atenção à Nicarágua, onde a violência provocada pelas autoridades do presidente sandinista Daniel Ortega já provocaram 280 mortos e mais de 2000 feridos nos últimos 3 meses. Estes números são aceites pela ONU e são os mais graves desde a guerra civil que terminou em 1990. As forças policiais de Ortega são auxiliadas por grupos paramilitares e ‘snipers’ que atacam manifestações, aldeias e cidades. Ultimamente têm atacado igrejas e tentaram matar um bispo. Ortega está há 11 anos no poder (já antes tinha sido presidente, entre 1979 e 1990). Forneço estes dados para conhecimento dos senhores deputados, a quem peço para considerarem também um apelo à reposição da ordem democrática na Venezuela. Pelo sim, pelo não, podiam aproveitar o período estival. Obrigado.
Hoje, falar de Anita Brookner é uma espécie de curiosidade literária para quem não leu ‘Hotel du Lac’ (que obteve o Booker em 1984, publicado em Portugal em 1986) ou para quem não sabe que foi a primeira mulher a ocupar a cátedra de Fine Arts na universidade de Cambridge em 1967. A família é curiosa: o avô materno, polaco, fundou uma companhia de tabaco, a mãe era cantora, o pai era também um imigrante judeu vindo da Polónia. Sempre solitária, “a mulher mais triste do mundo” (é este o retrato das suas personagens femininas) só publicou o primeiro romance aos 53 anos, em 1981 (antes disso escreveu sobre pintura) – mas foram ‘Olhem para Mim’, ‘Hotel du Lac’ e ‘Uma Amiga de Inglaterra’ os seus livros mais marcantes, cheios de melancolia, de tristeza, de mulheres tímidas da classe média inglesa que nunca viveram uma história de amor ou vivem sozinhas (ela própria nunca casou e escreveu um romance luminoso sobre o tema, ‘As Regras do Compromisso’) – ou seja, sobre pessoas que nunca têm aquilo que procuram. Hoje completaria 90 anos, mas morreu em 2016, com 87 anos. Sozinha.
[Da coluna no CM]
A certa altura de ‘Os Maias’, a saborosa condessa de Gouvarinho começa a desconfiar das visitas de Carlos da Maia à casa de “uma senhora brasileira”, que era “muito linda”. Carlos explica-lhe que um médico não podia exigir um atestado de hediondez às suas doentes; já se sabe o resto da história. Para evitar estes problemas no mundo do futebol, a FIFA (que tem um “responsável pela diversidade”) mandou que as televisões deixem de filmar mulheres bonitas nas bancadas dos estádios, explicando que a medida se destina a combater o sexismo no futebol. A partir de agora, durante os jogos de futebol, os realizadores de TV procurarão evitar rostos bonitos de mulheres e, suponho, de homens, para não ferir suscetibilidades. É uma estupidez monumental. A ida de mulheres aos estádios foi uma tremenda vitória da humanidade e significou o fim de uma era em que só os homens iam ver futebol. Alguns dos melhores comentadores de futebol-futebol hoje em dia são mulheres. As mulheres são aguerridas e festivas nos estádios. Pois que sejam bonitas também. Mesmo que a FIFA as censure na TV.
[Da coluna no CM]
Lê-se hoje menos ficção; parece que parte da responsabilidade se deve à televisão e às séries da Netflix, o que me parece argumento de peso e substância. Quando Miguel de Cervantes quis publicar o Quixote, dirigiu-se a Francisco de Robles, livreiro de Madrid com olho para o negócio e desejoso de repetir o sucesso de romances best-sellers da época. Em 1605, saiu a primeira parte do Quixote (1500 exemplares esgotados em três meses, além de uma edição pirata em Lisboa, note-se). A segunda edição saiu em abril desse ano, mas era preciso continuar a escrever as aventuras do amalucado cavaleiro da Mancha. Como Cervantes preguiçasse ou andasse distraído, apareceu em 1614 uma falsa segunda parte do Quixote, mas assinada por Alonso de Avellaneda, nome também falso – vendeu-se muito bem, parece, com várias reimpressões. Cervantes tratou então de apressar a parte em falta do verdadeiro e glorioso Quixote, o que aconteceu um ano depois, o autor fatalmente doente (morreu em 1616). Foi um insucesso. Os leitores já tinham devorado a versão falsa. De Avellaneda. Da Netflix, queria eu dizer.
[Da coluna no CM]
Apesar do regresso do calor e da época balnear, quem não ficou, ao menos por alguns instantes, suspenso das imagens que chegavam da Tailândia? Mesmo as coisas estapafúrdias do futebol (ou a comédia da libertação falhada de Lula, no Brasil) ficaram para segundo plano. Sim, comovemo-nos diante das imagens e dos relatos sobre os miúdos presos na caverna; não é possível ser de outra maneira – “ainda temos um lado humano”, oiço dizer. Também nos comovemos com a qualidade e discrição das operações de resgate, evidentemente. Mas há coisas que talvez fossem diferentes na Europa, ou nos EUA, e uma delas é a magoada carta de desculpas escrita pelo treinador dos miúdos. Ou os pedidos de alguns destes por uma refeição com a família (‘moo krat’ ou frango frito, por exemplo) mal o tormento passe. Ou uma outra, especial, assinada por Bew: “Não se preocupem, mãe e pai. Estou fora há duas semanas, mas vou voltar e ajudá-los na loja.” Tenho a impressão de que isto seria a última coisa que diria uma criança ocidental. Escutada a esta distância, a frase comove mais do que o habitual.
[Da coluna no CM]
A história do ViaCTT é exemplar para ver como o Estado se julga no direito de modelar a vida dos cidadãos de acordo com a sua paranoia. Para abrir o século XXI, o Estado quis facilitar a vida aos cidadãos e oferecer-lhes uma caixa de correio eletrónico, o ViaCTT – que funcionava mal e era de acesso mais penoso do que qualquer email de outros provedores. Como se tratava de “democratizar” a net, todos teríamos o mesmo serviço de email (um mimo para quem quisesse ou vigiar ou torpedear o serviço), coisa que o fisco aproveitou: era preciso ter uma conta ViaCTT para receber notificações. Ninguém ligou; não só o ViaCTT não funcionava bem, mas também porque os cidadãos escolheram e usavam a sua conta de email. Passados anos – agora –, o absurdo foi total: os cidadãos que não tivessem ViaCTT seriam multados. No passado, os funcionários públicos tinham de ter uma conta na Caixa – e pagamentos a instituições públicas só com um cheque da Caixa. Porque não um email? O governo recuou ontem (quem não quiser ViaCTT não é multado), mas a pergunta fica: e todos vestidinhos da mesma maneira?
[Da coluna no CM]
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