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Estive no primeiro Rock in Rio, em janeiro de 1985, num Rio de janeiro chuvoso e tropical: Iron Maiden, AC/DC, Ozzy Osborne, B-52’s, Nina Hagen, Queen, ao lado de Barão Vermelho, Pepeu e Baby Consuelo, Go-Go’s ou George Benson, ou até chatos como Gil e Scorpions. Mas isso são outros tempos (a ideia era levar finalmente o rock para o Brasil, que era relapso nessa matéria). Este ano, um grupo de políticos, entre os quais o Presidente da República, o presidente da AR, F. Louçã e Catarina Martins, vai de boleia ao Rock in Rio Lisboa homenagear Zé Pedro – o Zé Pedro dos Xutos. Li a notícia e não estranhei; Zé Pedro era um músico de eleição e um homem bom, popular, um rocker de primeira linha. A ideia das figuras do Estado é perversa: estando no palco, festejam “o cidadão Zé Pedro”, não o músico libertário e rebelde que ele foi. Ou até podem festejar este último, mas a sua omnipresença devora essa dimensão, porque o Estado devora tudo aquilo em que toca. Por pudor, deviam abster-se desse passo. O Rock in Rio não é Woodstock, muito longe disso – mas Zé Pedro não merece ser banalizado.
[Da coluna no CM]
Se o fenómeno da diminuição de leitores não é português, mas global, há números que são só nossos. E não nos honram.
Os pessimistas são geralmente desprezados por estarem fora de moda (de todas as modas) antes do tempo e porque, ao «invocar o mal», parecem ter gosto em estragar o festim. Vejamos, portanto, alguns números desagradáveis que não servem de conforto a ninguém: o mercado do livro em Inglaterra registou em 2017 um aumento de faturação de 0,09% em relação ao ano anterior; «tamanho crescimento» foi, felizmente, acompanhado de outras boas notícias, como a abertura de novas livrarias (só a cadeia Waterstones abriu mais uma dezena lojas) – infelizmente, isso não impediu que se tivessem vendido menos 2,9% de livros. Ou seja, menos leitores. Bons números em Espanha, pelo que se sabe, onde se registou um aumento de 3% do valor faturado (ou seja, subiu o preço médio por título em venda), o que pode ajudar a compensar perdas anteriores da ordem de 700 milhões nos últimos dez anos, mas os números do índice de leitura per capita mantiveram-se baixos ou diminuíram – enquanto o mercado alemão (um dos mais fortes) parece ter perdido mais de meio milhão de leitores (queda de 1,3% em número de exemplares vendidos) e em França, apesar dos números sempre festivos, se ter registado uma quebra real de 1,1%.
Vamos e venhamos — as estatísticas permitem outras leituras mais otimistas como a que valoriza o facto de os leitores não terem desaparecido da face da terra e estarem preparados, na obscuridade, para aparecerem e melhorar os índices dos anos futuros. Assim seja.
Esta leitura não é pessimista. Para um leitor, esses números são sempre baixos, porque é da sua natureza imaginar um mundo onde a leitura – e talvez a literatura (indiferentemente distribuída por ficção, poesia e não ficção) – é uma das primeiras prioridades. Acontece que não é. Dados disponíveis no Eurostat (2011) informam-nos que apenas 5,2% da população portuguesa lê mais de dez livros por ano (metade da Espanha, que tem uma taxa de 11,7%, e muito menos que a Estónia, com 21,9%, a Alemanha, 22,1%, ou a Finlândia, 24,4%). 9% dos portugueses lê entre 5 a 9 livros por ano. Abaixo de Portugal, nesse inquérito que envolve mais de vinte países, só a Roménia e a Turquia. Bom, talvez dez livros seja demais, bem vistas as coisas. Sigamos o bom exemplo do Presidente da República e procuremos aquilo em que somos mesmo bons: a única contabilidade em que Portugal fica no topo é na honrosa categoria «não leu um livro», em que nos classificamos no segundo lugar — entre os países da UE apenas a Roménia nos bate.
Se o fenómeno da diminuição de leitores não é português, mas global, há números que são só nossos. E não nos honram. Mas há pouco que possamos fazer.
A crescente desvalorização da literatura no ensino do português, onde foi substituída por exemplos de textos em «português normal», está a produzir vítimas a curto prazo, na companhia da banalização conhecida por «entretenimento» (diretamente do inglês entertainment, uma mistura de «espectáculo» com moda, aliás «fashion», cozinha, música pop, viagens, lifestyle, cinema, gossip, festival da canção), onde se mesclam o bom e o mau em doses idênticas, desde que tenham uma «dimensão cultural» e «festiva». Que isto aconteça na vida dos jornais, compreende-se (apesar de muitos deles, sobretudo nos EUA e no Reino Unido, já terem separado as zonas de livros das áreas de lifestyle) – mas que a escola não se preocupe (como acredito que é o seu papel) com a valorização do cânone, com a leitura dos autores e com o conhecimento da história e das ideias que modelaram as nossas literaturas e as nossas sociedades, é razão para ficarmos preocupados.
Seria talvez importante, por isso, avaliar a qualidade do ensino relacionado com a leitura – e ver até que ponto ela reflete e expande essa crescente banalização do banal.
Participei recentemente num encontro relacionado com bibliotecas escolares – onde ouvi as três cantilenas do costume. Uma: que o digital providencia um «absolutamente notável» progresso da civilização, e que esse progresso é inquestionável. Duas: que é necessário transformar a leitura numa «atividade inclusiva», provavelmente banindo «livros difíceis» e «incluindo» cada vez mais literatura popular «que diga alguma coisa às pessoas». Três: que a vida é como é.
Não sendo já possível questionar a utilidade da literacia digital (mas sendo absolutamente necessário expulsar o vocabulário apatetado dos seus guardiães), convinha recordar que o digital não é um fimmas o meio, tal como o conhecimento da gramática do português não é um fim, mas um meio. Tal como convinha dizer que é apenas na escola que muitas crianças e adolescentes terão contacto com os livros do cânone: eliminar esses livros das salas de aula é prestar um grande serviço à analfabetização das novas gerações e um péssimo serviço à democratização da leitura e do livro. O lero-lero da «inclusividade» e da «leitura inclusiva» não é mais do que uma desculpa para perpetuar essa banalização do banal nas nossas escolas.
[Carta do editor, LER 148, Abril]
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