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Roth devia ter escrito mas não escreveu.

por FJV, em 01.06.18

Dara Horn, uma autora estranhamente talentosa (está publicado entre nós O Mundo Que Virá), escreveu para o The New York Times um artigo sobre o legado de Philip Roth, que morreu no passado dia 22. O título é apelativo: “Tudo o que Roth não sabia sobre mulheres dava para encher um livro” (aliás, o que não sabemos sobre mulheres dá para encher bibliotecas). Várias feministas fartaram-se de saltear Roth na frigideira; neste caso, o defunto é acusado de não ter sabido criar personagens femininas complexas, de não ter feito justiça às mulheres e boas profissionais de New Jersey, e de não ter criado verdadeiras mulheres nos seus romances. A acusação procede e é justificada: Roth não estava interessado no assunto. Escrevia sobre o que queria e, quando escrevia sobre mulheres (como em O Complexo de Portnoy, para não ir mais longe), escrevia “do seu ponto de vista”, um judeu sexualmente promíscuo que gostava de gentias e que ignorava questões de género. A polícia da literatura avança a passos largos. Um dia alguém hostilizará Eça por não se ter interessado, vá lá, pela sardinha.

[Da coluna no CM] 

 

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Dez coisas fundamentais sobre «o pessoal do Porto»

por FJV, em 01.06.18

Como todas as cidades que vale a pena visitar – e onde vale a pena viver – o Porto tem as suas «singularidades», o seu sotaque, os seus hábitos, a sua maneira de conduzir o automóvel, as suas figuras emblemáticas, os seus aromas ou os seus interditos (que são sempre importantes). Mesmo para um português não é fácil definir nem a cidade, nem os portuenses.

A tradição manda dizer que eles são alegres, espontâneos, bairristas, acolhedores, afáveis e descontraídos. Que prezam muito uma boa anedota, especialmente se for sobre Lisboa (aquela cidade mais abaixo no mapa). Que gostam de festa e que raramente a traduzem por party. Que gostam de comer e de partilhar a comida. Que enfrentam as dificuldades com energia.

Bom. A tradição também manda dizer – embora apenas entre portuenses, e em voz baixa, como se fosse uma confidência entre gente da mesma família – que podem ser o contrário de tudo isso.

 

  1. A primeira coisa: os portuenses são mesmo bons. Ou seja, que são os melhores. Em quase tudo. A melhor obra de Eiffel, por exemplo, está no Porto (há aquela torre em Paris, sim, uma tentativa bem conseguida). Os portuenses são tão bons e tão «os melhores» que apreciam muitas coisas que vêm de fora – e de que logo se apropriam – porque houve uma distração as fez nascer noutro lado qualquer.
  1. Falam alto. Esta ideia é verdadeira de vez em quando, mas não traduz nenhuma indelicadeza ou falta de urbanidade. Pelo contrário: os portuenses não só acham que os visitantes têm dificuldades de audição, como também gostam de lembrar que não têm receio de dizerem o que pensam em voz alta. Alguns exageram – puro excesso de simpatia e cordialidade. Há quem diga que há um sotaque do Porto (no fundo, trata-se de uma forma extremamente musical de falar o português), o que também inclui uma grande variedade de palavrões de grande utilidade. Não tente imitar. Seja cuidadoso.
  1. Têm orgulho na sua cidade. Com certeza. Portugal nasceu aqui. São João nasceu aqui (não sabia?) e todos os anos a cidade o celebra durante um dia e uma noite explosivas (de 23 para 24 de junho) naquela que é a melhor e a maior festa urbana do país – todas as outras festas que decorrem na mesma data em todo o mundo para assinalar o solstício de verão são inspiradas no São João do Porto. Quem diz São João diz quase todos os outros santos. Também é preciso dizer que os santos, no Porto, não são apenas santos– também são ligeiramente malandros. Como o pessoal do Porto.
  1. São alegres. É uma ideia tão nobre quanto verdadeira. O portuense inventa piadas e justificações para tudo. Se tudo fizer rir um pouco, tanto melhor. Os portuenses não apreciam gente enfatuada e convencida (claro que há portuenses enfatuados e convencidos, mas não são de cá). Ser alegre não é ser pateta-alegre. Até porque não há tristeza tão genuína como a do Porto; se a tristeza é verdadeira, então, é mesmo a mais triste (mas nada de exibicionismo: não fazem cantiguinhas sobre isso, nem lhe chamam fado). Ninguém leva a melhor aos portuenses, como se sabe.
  1. Um cêntimo é um cêntimo. Os portuenses têm fama de serem poupados – e não sovinas. Cada tostão é um tostão, mesmo que o tostãojá não se use há décadas. O portuense vive do seu trabalho, preza a poupança e, por vezes (nas anedotas, por exemplo), até a ostentação. «Contas à moda do Porto» diz quase tudo: cada um paga a sua parte.
  1. Há outros lugares onde se come bem. As tripas. As francesinhas. A costela mendinha. O arroz – o arroz de todas as maneiras (branco, malandrinho de feijão, malandrinho de tomate, de grão, de grelos, de vitela, de polvo, de sardinhas, de frango, de cenoura, de couve – e de arroz). O cabritinho. A broa de Avintes. Os bolinhos de bacalhau. As iscas de bacalhau (o mesmo que pataniscas – uma ideia estranha). As sanduíches de pernil da Casa Guedes. A vitelinha no forno. Os rissóis de peixe. As sardinhas fritas. O bacalhau à Gomes de Sá. A punheta de bacalhau. Os filetes de polvo e de pescada. A aletria e o arroz doce. Claro que há outros lugares – em Portugal e até fora do país, estranhamente – onde se come bem; mas digam lá um lugar, um que seja, vá. Imbatíveis, os portuenses.
  1. São gente de confiança. Por isso desconfiam. Os portuenses conhecem como ninguém o género humano (basicamente, o género humano nasceu aqui), portanto confiam nele – mas não exageram. Sabem que um certo grau de ceticismo tem o seu charme.
  1. São espontâneos. Este é um mito posto a circular por gente que não entende que os portuenses gostam de fazer crer que são espontâneos. O que eles são é naturais, diretos, francos, e sem tempo para perder com demasiadas cerimónias. «Gostas?» «Gosto.» «Então.»
  1. E Lisboa? Todas as cidades se distinguem por detestar outras cidades. Grandes rivalidades, claro que existem: Madrid e Barcelona, Rio e São Paulo, Atenas e Esparta, a lista é imensa. Criou-se o mito de que os portuenses não gostam de Lisboa, de que gostam de contar piadas sobre Lisboa e os lisboetas, de que o melhor lugar de Lisboa é aquele onde fica a placa que diz «Porto: 299 kms», ou de que – finalmente – há uma rivalidade entre o Porto e Lisboa. Mentira. Absolutamente mentira. Em primeiro lugar, porque o Porto não tem rival. E outra coisa: existe uma Praça de Lisboa em pleno coração do Porto; toda a gente sabe que Lisboa se chama Lisboa graças a essa praça portuense – de contrário teria outro nome qualquer, muito menos agradável.
  1. São antigos. Prezam o antigo, valorizam o contemporâneo (mas brincam com ele). Portugal nasceu aqui. O mais belo rio do mundo, o Douro, encontra o mar aqui. O melhor vinho do mundo guarda-se aqui – como uma preciosidade. Não há razões de queixa.

Na revista UP, da TAP.

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