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Não é fácil explicar a um europeu que viva a norte dos 45º de latitude, que nós (no Sul) bebemos vinho às refeições, que temos o costume de não beber vinho como os finlandeses bebem vodka, que raramente bebemos sem comer, que dois copos de vinho por dia não são uma ameaça à paz mundial (como determinou o SNS britânico) – e que desprezamos o seu hábito de beber forte durante dois ou três dias (até cairem) e de aparecerem, depois, como puritanos, em culottes, com mau hálito e a implicar com tudo. Parece que há na UE uma “corrente de pensamento” proto-higienista, fomentada por burocratas que usam todos a mesma gravata, as mesmas cuecas e o mesmo tom de pele, que quer equiparar as garrafas de vinho a cargas de álcool eslavo, inutilizando os nossos rótulos com avisos mortais e ameaças de morte (à semelhança dos maços de tabaco). Se isso acontecer, Portugal e outros países civilizados do Sul da Europa devem pedir a rápida desanexação da UE. Esta é, por isso, uma crónica racista: contra a raça dos palermas e dos rostos pálidos que não sabem distinguir um vinho (com a sua carga de cultura, tradição, brilho, humanidade) de uma ampola de vodca bebida no aeroporto. Ninguém me convence de que isto não é uma conspiração de fascistas tolos, ainda por cima – lamento dizê-lo, ó pátria de grandes bebedores – irlandeses, o que é uma pena.
[Da coluna no CM]
Ao contrário dos “patriotas” que choram a emigração de hoje, eu compreendo-a. Desde o século XVI que ela é um protesto permanente contra Portugal, contra a penúria e a pobreza (na minha aldeia, emigrou um quarto da população nos anos 60); foi assim até ao final dos anos 70. E desde 2011, quando os números dispararam, que é também uma sequência da abertura dos mercados de trabalho europeus, da globalização da economia e da liberdade de movimentos “de pessoas e bens”. Desde então nasceram várias iniciativas “patrióticas” e folclóricas para trazer de volta pessoas que estão noutros países (dentro e fora da UE, maioritariamente entre os 20 e os 30 anos, alguns deles já com Erasmus no currículo) a ganhar o dobro ou o triplo do salário, a cultivar-se, a ganhar mundo e a experimentar viver de outra maneira. O primeiro-ministro aposta em trazê-los de volta, mas creio que não sabe como (há um programa, de 2015, que o PS chumbou) – ou se isso é possível num país que tanta gente exportou. Lamento pelos “patriotas” mas há coisas que se estudam na História de Portugal. Espalhai-vos.
[Da coluna no CM]
A Alfaguara, que já tinha publicado Submissão, de Michel Houellebecq, bem como Extensão do Domínio da Luta e O Mapa e o Território, publica agora A Possibilidade de uma Ilha, um romance (de 2005) perturbante e cruel que volta a obrigar-nos a pensar no Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley: uma descrição exaustiva e provocadora da forma como a humanidade se foi desumanizando. Para o fazer, Houellebecq não fala da solidão, nem tem sentimentos piedosos, cúmplices, poéticos, cheios de amor – pelo contrário, chega a ser obsceno, sempre mordaz e a rondar o abismo, contando a história de um mundo em que os homens e as mulheres se tornaram imortais, quase perfeitos, mas inevitavelmente imbecis. A “literatura estabelecida” não gostou, porque o seu negócio são os “bons sentimentos”, em aliança com as “boas políticas” e as “palavras corretas” de escritores laureados. Tudo lerolero – e do mais cretino. A verdade é que a imbecilidade e a desumanização cresceram de mãos dadas com as boas intenções – nada que não nos falte com esta gente que ascende ao poder para nos purificar.
[Da coluna no CM]
Quando olhei para o telemóvel, por volta das sete da manhã, era isto: a primeira notícia do dia anunciava a morte de Philip Roth e, com ela, uma certa sensação de catástrofe; acontecera quase o mesmo com Gore Vidal, Mailer, Updike, até com Tom Wolfe. Claro que não era catástrofe, o mundo podia continuar a rodar, porque haverá sempre O Complexo de Portnoy, A Mancha Humana, Pastoral Americana, Casei com um Comunista, O Teatro de Sabbath. Uma genial feminista portuguesa, convenientemente analfabeta, destratou-o como misógino e machista, o que dá bem a ideia de como Roth tinha razão nos seus livros acerca de literatura, do género humano e da obsessão pelo sexo. A Academia Sueca não o considerou para o Nobel – suponho que por ser judeu e ter escrito Operação Shylock (ou O Complexo de Portnoy, quem sabe). Quanto à América, alertou os seus leitores (Conspiração contra a América): devagar, o terror pode instalar-se, basta uma distração. Mas a principal pergunta deixada por Philip Roth, no meio de tantos livros, foi esta: até quando seremos capazes de resistir à morte?
[Da coluna no CM]
Pouco tempo depois da invasão francesa da península italiana, em 1494, o frade dominicano Girolamo Savonarola (nasceu em 1452, alguns meses depois de Da Vinci), pregador e profeta, queria fazer de Florença uma “república popular”. Odiava os Médici e a corrupção do clero, detestava o ambiente de luxo em que os florentinos e a cúria romana viviam, defendia o regresso às virtudes piedosas do cristianismo primitivo e, de seguida, uma boa perseguição, com pancada se possível, aos hereges, pagãos e libertinos. Um dos rituais purificadores passava pelas “fogueiras das vaidades”, durante as quais se destruíam “livros desnecessários” (como os de Ovídio, Dante ou Bocaccio, para simplificarmos), objectos de luxo ou instrumentos musicais, manuscritos clássicos, tapeçarias, pinturas, tecidos, espelhos, esculturas, etc. – e Florença devia passar a ser governada “pela lei de Cristo”. Julgando-se a voz de Deus, foi excomungado pelo papa; acabou enforcado e queimado. Da Vinci emprestou o seu rosto ao Judas da Última Ceia. Amanhã passam 520 anos sobre a sua morte. Não foi um bom destino.
[Da coluna no CM]
Não sei se se recordam, mas o antigo primeiro-ministro José Sócrates era de esquerda. Fizesse o que fizesse, dissesse o que dissesse, promovesse a construção de auto-estradas ou viveiros de marmota, a digitalização da administração pública ou o aumento das tarifas elétricas, fazia-o porque “era de esquerda”. Isto coloca problemas sérios de teoria política – reconhecem-se cada vez menos diferenças entre “ser de esquerda” ou “ser de direita”. E, no caso de Sócrates, mesmo quando tomava decisões declaradamente “de direita” (no primeiro mandato, por exemplo), fazia-o brandindo as bandeiras “de esquerda”, porque era ele que decidia o que era “de esquerda” ou “de direita”. O recente congresso do PS repetiu a anomalia, mas alargando o espectro ao rigor nas contas públicas, ao combate à corrupção ou à diminuição do défice (não se ria em nenhum destes três casos, leitor!, porque a piada fica logo feita). As duas principais correntes socialistas discutiram mesmo quem era mais de esquerda e quem mais iria combater a direita. Vai ser uma competição e tanto para ver quem vai ganhar. Perdendo.
[Da coluna no CM]
Bom aviso, o de Pedro Correia: «Esses que andam a levantar os novos pelourinhos ainda não perceberam a perversidade da coisa. Alguns acabarão também pendurados neles. Novos Dantons, novos Robespierres: a criatura acabará por ganhar autonomia, virando-se contra os criadores. Seguindo o exemplo da guilhotina, sua feroz mana mais velha.»
Um casal preparando o seu retiro.
Crónica de costumes, vamos lá. O líder do Podemos espanhol, que é pessoa da minha predileção, muito pespineta e arrivista, decidiu comprar um casarão nos arredores de Madrid por cerca de 600 mil euros. Não me choca; quem tem dinheiro que o use em casas, Maserattis ou chinelos de praia. Neste caso, um empréstimo bancário serve (desde que os eleitores espanhóis continuem a mantê-lo deputado para pagar a hipoteca). Acontece que Pablo Iglésias tem razões ponderosas: quer constituir família com a sua namorada Irene Montero, número dois do partido – e precisam de uma casa ajardinada e apiscinada para que os filhos cresçam como merecem. Esta história de amor reaccionária, ao contrário da de Lenine e Krupskaia, foi submetida à votação do partido: os militantes autorizam ou não? Autorizam, claro; quem não fica sensibilizado com uma história de amor? Querem que eles se demitam, ou não? Claro que não; quem não gosta de ver uma família feliz? Tudo isto é justo e decente. Sem ironia. Os dirigentes da classe operária não hão de querer viver como a classe operária. Em caso de dúvida, faça-se um referendo à vida amorosa dos líderes revolucionários.
Um arguido, entretanto vituperado pelo seu próprio partido, e que deixou de ser arguido. Um presidente de um clube de futebol – escuso de me alongar em explicações. Uma invasão de um centro de treinos de um clube de futebol – não preciso de dizer do que se trata. Uma invasão de baratas na Assembleia da República. Uma manifestação de duas pessoas noticiada nas televisões como um grande acontecimento. Uma coligação de banqueiros, financistas, gravatas, moralistas e candidatos a arcebispos, salvo seja – falando sobre futebol, e escuso de explicar mais. Um domingo de grandes transmissões televisivas cinco horas antes do jogo da “festa da taça” – e duas após ele. Políticos e governantes exarando opiniões sobre segurança, violência e conforto no futebol – estou a repetir-me um pouco, eu sei –, enquanto deixam escapar, por entre as pernas (como um guarda-redes de terceira divisão), casos de corrupção e malformação desportiva. Peço desculpa aos leitores, mas a ‘silly season’ que toma conta do verão, todos os anos, começou mais cedo este ano. Eu queria escrever sobre ópera, mas é isto.
[Da coluna no CM]
Já ninguém se lembrava de que, há quatro anos, a Rússia tinha anexado a Crimeia – a Europa desinteressou-se do assunto –, quando Vladimir Putin, há dois dias, inagurou a ponte que vai de Taman, no sul da Rússia, até Kertch, na Crimeia que já foi ucraniana. Com os problemas de Alcochete nós também nos desinteressámos do assunto; mas não devíamos, porque temos especiais responsabilidades no tema: em 1788, durante a guerra entre a Rússia e o império Otomano, o primeiro oficial do exército russo comandado pelo marechal Potemkin a entrar na praça militar de Ochákiv, de onde se dominava o Mar Negro, chamava-se Gomes Freire de Andrade. Feito coronel mais tarde, Gomes Freire, também recebeu a ordem russa de S. Jorge numa ocasião em que se suspeita que Catarina II o pôde preferir a Potemkin; o seu destino foi de altos e baixos, curvas e contracurvas, general de vários exércitos e países, maçon ao lado dos franceses contra a regência inglesa e o absolutismo – acusado de traição e enforcado em Portugal em 1817. Com o seu sentido de oportunidade, estaria ao lado de Putin na anexação.
[Da coluna no CM]
Sobre Alcochete, devo dizer que gosto muito de gente escandalizada. Sobretudo dos que se acocoraram a pregar sobre o mal que o futebol faz à sociedade em geral, sem falar das vestais que, de beicinho, apareceram a pedir a proibição disto e daquilo, como costuma acontecer sempre que têm rédea solta. Esta generosa abundância de moralistas e de energúmenos é coisa muito comum entre nós (acontece que foi essa abundância que elegeu um presidente do Sporting), e costuma substituir o que, em tempos de penúria, chamamos “a normalidade”. Ora, em “normalidade” (não a nossa, entenda-se) os tribunais já tinham julgado e punido o que havia a julgar e a punir; e este vago ambiente de criminalidade organizada já teria sido despenteado há muito, como merece. É isso que é necessário fazer, em vez de criar mais “autoridades” e dar voz aos moralistas ou ser compreensivo para com os energúmenos. Eu bem que vos entendo, moralistas do meu país; gostais de vos escutar e de serdes aplaudidos. Mas o tempo é de chamar a polícia e de cuidar dos energúmenos; a seguir, vós, que já cá tenho munição.
Esta é a crónica desta quinta-feira no CM. Infelizmente, durante dois ou três anos, as auctoridades foram avisadas, alertadas, esclarecidas sobre o mal que andava à solta no futebol, e o resultado foi sempre o mesmo: lá estavam elas, as auctoridades, muito aprumadas, ao pé dos presidentes, pedinchando bilhetes e comparecendo nos momentos solenes. No universo do provincianismo português, todos gostam muito de ser bem tratados pelos senhores presidentes, de mostrar que são convidados para a tribuna e de fazer gala de andarem de braço dado com gente suspeita. Porque se trata, mesmo, de gente suspeita que gosta de meter políticos no bolso do casaco; o poder de que dispõem é excessivo e amoral. De resto, causa impressão como tanta gente amável e apreciável cedeu e comprometeu parte da sua dignidade apoiando um tipo de quem se envergonhariam mais tarde ou mais cedo.
Dois livros seus, Radical Chic (1970) e The Purple Decades (1980), poderiam enfurecer boa parte da classe jornalística de hoje. Contam histórias, apresentam factos, mostram como o ridículo tomou conta dos combates culturais, raciais e sociais da América antes de serem exportados para o resto do mundo. A elite liberal novaiorquina, os comentadores de esquerda e os meios universitários desconfiavam bastante de Tom Wolfe (1930-2018), mas não puderam fazer nada contra livros como A Fogueira das Vaidades (1987), mistura de sexo, banca, dinheiro, política, jornalismo e confrontos raciais, ou Eu Sou Charlotte Simmons (2004), um retrato impiedoso da universidade, do poder do corpo e do sexo – e um anúncio da morte da alma americana. A sua obra está cheia de ironia; com ela, desacreditou os poderes da sociedade e das elites culturais (“os marxistas rococó”). Com Gay Talese, Mailer ou Joan Didion, marcou o ‘novo jornalismo’; sobre a literatura, disse que ela só se salvaria se os escritores se empenhassem em viver a realidade – e as suas histórias. Era um dos grandes. Morreu como um grande, elegante, rindo.
[Da coluna no CM]
O livro de Régis Debray, Maio de 68. Uma Contrarrevolução Conseguida (D. Quixote), é uma releitura dos acontecimentos de há 50 anos em Paris. Tanto podia ser assinado por um herdeiro de um partido comunista tradicional, como por um conservador desiludido, sem ilusões sobre o sentido da história e das suas vitórias. Sobretudo, contraria o discurso oficial e comemorativo em vigor (o texto original, de 1978, intitulava-se sugestivamente Modesto Contributo para os Discursos e Cerimónias Oficiais do Décimo Aniversário, prevendo a banalização e apropriação da data), que assinala a “dimensão festiva” dos acontecimentos de 1968. A tese é exposta de forma clara, mas está cheia de contracurvas: longe de ter contribuído para a libertação dos indivíduos e da sociedade, o Maio de 68 levou à glorificação do “instante”, das pulsões individuais, do consumismo e da “euforia da opinião”. Segundo Debray (que palmilhou ao lado de Guevara e agora ensina teoria da comunicação), transformou a Europa numa delegação da América. Há um certo exagero nisto, mas vale a pena não descartar a ideia.
Era no tempo em que uma equipa de remo da Faculdade de Letras de Lisboa, imagine-se, se sagrou campeã nacional. Raul Miguel Rosado Fernandes (1934-2018) era membro dessa equipa. Quando se doutorou, em 1962 (sobre Plauto, autor do séc. III a.C., que não consta que tivesse sido bem comportado), apareceu de descapotável vermelho na faculdade, o que não foi bem visto para quem achava que um lente de latim e grego se devia vestir como um viúvo. Rosado Fernandes era um homem jovial, de uma alegria maravilhosa e atrevida, pouco convencional. Professor em Nova Iorque, reitor em Lisboa, traduziu Horácio e Aristóteles, estudou o nosso renascimento, escreveu sobre Píndaro ou Plínio, especializou-se em estudos gregos e em retórica, traduziu a História da Guerra do Peloponeso, de Tucídides (com Gabriela Granwehr). Foi agricultor e dirigente político – mas o que eu recordarei deste homem incómodo e polémico, além do sorriso, será a inquietação que o levava a procurar nos antigos, nos clássicos, uma espécie de janela sobre a nossa vida. Com a sua morte, ontem, desaparece um clássico.
[Da coluna no CM]
A plataforma Priberam lançou uma iniciativa curiosa, de mãos dadas com um canal de televisão: a “revisão” da palavra ‘mulher’ e a forma como aparece transcrita no seu dicionário online. A ideia, segundo percebi, e feitas bem as contas, é a de que, por “sugestão dos cidadãos” desapareçam conotações negativas de ‘mulher’ e que estas sejam substituídas por outras moralmente mais adequadas. As palavras, como sabemos, têm uma história, um passado e uma genealogia; submetê-las a votação tem graça e supõe até um interessante aparelho publicitário (como neste caso). Para todos os efeitos, ‘mulher’ há de ser sempre ‘ser humano do sexo feminino’ e ‘mulheraça’ há de ser sempre ‘mulheraça’, a menos que deixemos de usar a palavra, tal como ‘rapaziada’ e ‘mulherio’. Mulherzinhas há de ser sempre conotada com o livro de Louisa May Alcott, e não tem significado “negativo”. Acontece que – por muito que se engrace com a iniciativa da Priberam – há gente a pensar em alterar, por decreto ou televoto, o significado das palavras, o que prova que há tontos e tontas para tudo. Nos dois géneros.
[Da coluna no CM]
Há cinquenta anos, a velha França – reacionária, gaullista, de faixa republicana a tiracolo, empertigada, herdeira do pós-guerra e do trauma da Argélia – foi abalada pelo “Maio de 68”, sobre quem este mês se preparam celebrações incessantes, uma espécie de visita guiada de revolucionários aos lugares onde levantaram as pedras da calçada e dormiram ao relento. Compreende-se a celebração da festa, das frases surrealistas, da euforia anarca desse mês, da greve geral, das barricadas e das assembleias universitárias; é um belo repositório de imagens televisivas, a que se acrescenta o folclore tradicional. E de algumas heranças de que beneficiamos todos (ao contrário do que se esperava, o individualismo, por exemplo); parte delas são anunciadas desde o início da década, da minissaia ao rock, da lei do desejo à falência do estalinismo, e explodem durante esse mês. A verdade é que 1968 – uma ventania de recusas e revoltas – não foi apenas em Paris e começou antes das frases de grande impacto. O efeito libertador também trouxe mandarins pataratas, o que não foi grande resultado.
[Da coluna no CM]
A conta de Carlos Eduardo da Maia tem 4.617 seguidores no Twitter. A de Afonso da Maia, o seu avô, anda pelos 1.800, um pouco menos do que a de Maria Eduarda; a de João da Ega parou nos 1.622 – mas há ainda as contas de Twitter do Reverendo Bonifácio, de Tomás de Alencar ou de Raquel Cohen, Dâmaso de Salcede, do Eusebiozinho ou do Conde de Gouvarinho e até de Rosicler – e três da Condessa de Gouvarinho (ela merece mais). A maior parte das mensagens destas contas não são, confesso, as ideais para ler numa sala de aula – mas admiro a coerência e a imaginação dos participantes que faz de ‘Os Maias’ um trapézio malcriado e iconoclasta. Muitas das coisas que se escrevem lá são parvoíces, como acontece nas “redes sociais” mas não danificam o cérebro. A ideia de criar estas identidades no Twitter é invejável; ao ver tantos pataratas a falar da “emergência das redes sociais na escola”, com aquela linguagem de burocrata que tem como principal mérito afastar toda a gente, estas contas de Twitter podem ser uma ideia para desenvolver e multiplicar. Sejam quem forem os autores, obrigado.
[Da coluna no CM]
Há personagens assim em Stendhal, que passa por ter uma alma sensível. Porém, o espectáculo dos últimos dias é tão sabujo como o da ‘Comédia Humana’ (Balzac conhece os fígados de um traidor): velhos companheiros, antigos comparsas de mesa e pucarinho, amantes desoladas (o tempo passa depressa, afinal), serviçais que agora se vingam de humilhações, oligarcas que já não acham graça à picardia, rivais que finalmente desembainham a navalha. Os que eram surdos, os que eram mudos ou nunca tinham visto nada, os que juravam fidelidade – canina, claro, sempre canina, ontem como hoje. Em breve serão os banqueiros, depois os ordenanças, os intriguistas que passam de um dono a outro, os distraídos que nunca deram por nada, os que lucraram com o derriço e passaram bem. Todos querem salvar a pele, se possível aparentando escândalo; Sócrates já não lhes interessa e estão dispostos a abandoná-lo. Uns, por motivos de classe; outros, porque nunca fizeram outra coisa senão trair para permanecer à tona; outros, ainda, por conveniência sensual. Ou porque finalmente viram a luz. É a vida, portanto.
[Da coluna no CM]
Amanhã, 5 de maio, assinalam-se os 200 anos do nascimento de Karl Marx. Não houve, no século XX, filósofo tão citado, plagiado, estropiado ou banalizado – uma espécie de saco sem fundo onde os movimentos comunistas encontraram, não uma teoria da história ou uma teoria do valor económico, além de um exemplo de militância política, mas uma religião laica e acima de toda a suspeita, que sabe tudo sobre tudo. Marx na economia e na teoria da história – mas também na psicanálise, na literatura, em todos os meandros por onde se caminhasse ao longo de um século e meio. Um inquérito realizado agora nos EUA diz que 200 mil estudantes universitários (de filosofia como de economia ou história da arte, mas suponho que também psicanálise) se declaram marxistas. Li o essencial de Marx para o que me interessava; sobrevivi sem grande esforço, porque havia nele o esplendor de um otimismo histórico que a realidade não confirmou, mas que não deixou de alimentar tanto pensadores sérios como trafulhas encartados. 200 anos depois Marx está no seu lugar, apesar dos seus seguidores religiosos.
Primeiro, foi o anúncio de um Museu das Descobertas a criar em Lisboa. O nome parece-me apropriado – do século XV em diante, Portugal foi o que foi, entre a aventura e a rapina, a violência e a invenção do mundo; nesse período coube de tudo, e de nem tudo nos orgulharemos. É a vida dos que partem pelo mundo fora. Depois do anúncio, no entanto, historiadores e sociólogos de proveniências diversas (mais de cem, uma amálgama poderosa) contestaram a ideia como juízes cheios de um grande rigor e conhecido puritanismo, próximo da severidade policial. Compreende-se a perspetiva: a palavra ‘descoberta’ está a mais, porque do ponto do vista dos outros continentes, a ‘descoberta’ estava feita. Contra tal evidência, o único caminho é mudar o nome, desdramatizando a coisa e driblando o provincianismo. Museu das Viagens não parece mal: é o que sempre fomos, até do ponto de vista dos outros, em vários continentes – gente em viagem, Oliveira da Figueira, capatazes e descobridores, capazes do melhor e do pior conforme as circunstâncias. Desistir do museu é que seria uma atitude de grande patetice.
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