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Giovanni Guareschi, ou Giovannino, já não faz parte da educação da adolescência ou da história da televisão, e compreende-se: os seus livros estão esgotados há muito, fazem parte de um mundo que só os mais velhos conheceram – onde, apesar do confronto e do conflito, havia uma ponte de humanidade. Guareschi era católico e anti-comunista, passou parte do pós-guerra italiano a rir dos comunistas e dos democratas-cristãos (fundou uma publicação satírica, Candido, que o levou à prisão porque, honrado, se recusou a ser indultado pelo regime), e criou duas figuras maravilhosas que passaram dos seus livros para o cinema: Don Camilo, um padre anti-comunista de uma vila rural (no cinema representado por Fernandel, de quem daqui a uma semana se assinalam os 115 anos do seu nascimento), e Peppone, o dirigente e presidente da câmara comunista. Entre os dois há briga, guerra, violência – e amizade, respeito. São os dois inimigos da Guerra Fria num microcosmos cómico. Guareschi completaria amanhã 110 anos; morreu aos 60, em 1968. Rindo, certamente. Vejam os filmes, leiam os livros.
[Da coluna no CM]
Numa entrevista recente, Gay Talese (nascido em 1932, é um notável jornalista americano, autor 14 livros de reportagens e memórias) faz uma espécie de ponto da situação sobre o jornalismo de hoje. “A maior parte da gente da minha geração éramos ‘outsiders’ do poder. Agora, os jornalistas vêm da mesma classe social da gente do mundo financeiro ou político; andam nas mesmas universidades e os filhos aprendem a nadar nas mesmas piscinas. Partilham a mesma linguagem e os mesmos valores.” Com poucas diferenças, isto ocorre com a maior parte dos comentadores dos grandes casos judiciais portugueses: ou partilharam as cadeiras do poder, ou serviram no seu exército de lealdades, ou jantaram e dançaram juntos em algum lugar. Haver gente que mexe com tantos milhões, com tantas cumplicidades e com tanto desplante, pode surpreender o leitor – mas não é coisa que os choque, porque esses milhões, essas cumplicidades e esse desplante fazem parte do seu mundo. Não se impressionam. O que os impressiona e choca é que a justiça tivesse chegado aos seus amigos, com quem tanto gostaram de jantar.
[Da coluna no CM]
O Presidente da República não precisava de um grande discurso – mas, como é seu costume, deixou um mistério no ar: a crítica clara e não-velada ao providencialismo e ao populismo, que o primeiro-ministro comparou, com infelicidade, à arte moderna: tal como é difícil compreender a “arte moderna”, também não entende os “discursos modernos”. Estas bandarilhas estão entre a chufa e o burlesco e não passam daí (o dia não servia para acertar contas mas para que a data, que é de todos, voltasse a ter donos). O problema é que Marcelo tocou na ferida ao falar da ameaça populista. Se não fosse a indiferença nacional – o nosso maior pecado – em relação ao poder e às suspeitas que pairam sobre os políticos, podíamos reunir todos os ingredientes favoráveis ao populismo. Vale-nos a indiferença (e a brandura, que desculpa tudo). Só ela permite que o presidente do parlamento continue a confundir críticas aos políticos com ataques de caráter. Ora, no Parlamento havia um grande elefante estacionado no meio da sala: a suspeita sobre os políticos, não sobre o sistema nem sobre a arte moderna.
[Da coluna no CM]
Quando aconteceu o “mensalão” no Brasil, Lula garantiu que não sabia. Os amigos e colaboradores mais diretos no corredor do poder foram presos (exceto Dilma, que abria e fechava portas) – mas Lula, que via os seus ministros serem levados para tribunal, “não sabia”. Santa inocência. O mesmo se passa agora em Portugal: ninguém sabia de nada. Existe, segundo sabemos, um vasto conjunto de casos envolvendo corrupção, tráfico de influências, roubo, favorecimento, falsificação; a lista é conhecida (Marquês, GES, Monte Branco, Vistos, BPN, Face Oculta, EDP, Lex, etc, etc.) e permite cruzar nomes, empresas, partidos, locais e datas. Apesar de todas estas coincidências, um enorme círculo de amigos e coniventes políticos acha que o que mina a confiança dos cidadãos não é a existência de factos e comportamentos, mas sim “a quebra do segredo de justiça”. É por isso que os partidos estão caladinhos. Não estão à espera do veredicto da justiça; isso não lhes interessa para nada, como se vê no Brasil; eles querem é saber se escapam incólumes, “eticamente irrepreensíveis”, como agora se diz.
[Da coluna no CM]
Na edição de ontem do diário Folha de S. Paulo mais de metade da primeira página era ocupada com uma fotografia de uma vendedora de fruta, numa rua em Moçambique – e, de alto a baixo, com uma coluna de “termos curiosos adotados em países que usam a língua portuguesa” (de ‘campa’, imagine-se, a ‘caga-lume’ ou ‘caraolhar” e “querência”). O jornal paulista lançou um projeto intitulado O Tamanho da Língua, destinado a explorar “a história, a diversidade e as curiosidades do idioma português”. Para isso, jornalistas da ‘Folha’ percorrem Portugal, Moçambique e alguns estados brasileiros a fim de recolher expressões e palavras que podem dar conta da diversidade e riqueza da sétima língua mais falada do mundo (a mais usada no hemisfério sul). Nem de propósito, o tema de hoje, terça-feira, é ‘Uma língua, muitos sotaques’, onde se falará das saborosas ou horripilantes diferenças de pronúncia de um idioma sem fronteiras. Os materiais produzidos pela Folha são saborosos, simples e até românticos. Falam do amor à língua – coisa que os portugueses parecem, hoje em dia, desconhecer.
[Da coluna no CM]
Esta é a semana da habitual retórica acerca das “conquistas de Abril” e, sobretudo, da necessidade de “cumprir Abril”. Há também o compreensível ritual de “descer a Avenida”, em Lisboa, que junta os que, hipoteticamente, estão “a favor” de Abril – por oposição aos que não marcham na avenida. Para as pessoas da minha geração, nascidas no início da década de 60, o cerimonial assemelha-se à deposição da coroa de flores no 5 de Outubro e à respetiva romagem, que, apesar de tudo, é mais romântica do que a ideia absurda de que “os ideais de Abril” não estão cumpridos. Para todos os efeitos, estão: democrático, descolonizado, desenvolvido, europeu, o país tem sido obra das nossas escolhas extravagantes e não de ditadores encartados ou de militares a quem já agradecemos por várias vezes. O regime democrático, com avanços e recuos, paródias e tragédias, sobressaltos e longos períodos de estabilidade, tem 44 anos – o que é o pórtico de uma maturidade avançada, sólida e irrequieta, tanto como a da poeira que cobre o Chaimite do bravo e generoso capitão Salgueiro Maia. Entrou na História.
[Da coluna no CM]
Passei anos e anos a ler e estudar literatura policial e de espionagem. São géneros enganadores – onde a “classe educada”, preguiçosa, vê sangue e misérias, o “leitor educado” (coisas diferentes, como de costume) apaixona-se pelas artimanhas, pelos truques, e pelo próprio espírito da investigação. Há espionagem de categoria, bem escrita, com grandes argumentos – e há thrillers para leitura rápida. Mas enganam muito. Ao ler e reler o material publicado em redor das operações Marquês, Lex, Monte Branco, EDP e seguintes, tentei desenhar um organigrama, que rapidamente passou a dois, três, quatro. Há ligações entre todos eles. A cor principal desses laços é a do dinheiro: dinheiro a mais, dinheiro obscuro, dinheiro fácil, dinheiro que muda de mãos e gera mais dinheiro. Depois, a do poder: cargos, cumplicidades, conhecimentos. Nada se faz sem ambas. De Luanda a Miami e ao Panamá, de Zurique a Lisboa e a S. Paulo ou NY, o leitor desse romance que vem nos jornais não dê o seu tempo por mal empregue. Ao contrário da literatura portuguesa, as personagens são de primeira ordem.
[Da coluna no CM]
Na altura em que se aguarda a publicação do segundo volume da História dos Judeus, de Simon Schama (Temas e Debates), e em que o anti-semitismo alastra um pouco por toda a Europa (em Inglaterra, o líder trabalhista, Jeremy Corbyn tem sido alvo de acusações de ‘ódio aos judeus’, inclusive pelo ‘mayor’ londrino, o muçulmano Sadiq Khan), lembremos o dia 19 de abril de 1506, há exatamente 512 anos – o início do chamado ‘massacre de Lisboa’, o primeiro dos grandes ‘progroms’ que tiveram lugar no nosso país. Garcia de Resende, na sua crónica de D. João II, contabiliza cerca de quatro mil vítimas (a descrição mais forte é a de Damião de Góis), mortas durante esses dois dias e meio de loucura que transformaram a cidade num campo de morte, tortura e ódio. 300 anos depois do massacre de Lisboa, do estabelecimento da inquisição e da fuga em massa de judeus, havia ainda ‘progroms’ e destruição de judiarias no nosso país. Esse ódio letal apenas se consegue explicar pela abundância de ressentimento nas nossas sociedades. Há 512 anos explodiu em Lisboa. Ficámos incomensuravelmente mais pobres.
[Da coluna no CM]
Tenho bons fígados mas maus pressentimentos. Segundo li na Sábado parece que muitos investidores já não acham o mercado imobiliário português tão atraente e não estão dispostos a pagar em Lisboa o que pagam em Paris ou Roma; parece que a “bolha” tem mais um ano de vida. Compreendo-os e acho bem (prefiro que venham cá e se alojem em hotéis – estão 115 em construção). A notícia alerta para o hábito não só de malhar no ferro enquanto está quente, mas também o de rapinar enquanto se pode. Rapinar é legal, até certo ponto – e o investimento imobiliário melhorou as cidades e há de melhorar os subúrbios – mas pareceu-me ver um certo tom de aviso. São maus pressentimentos e em tempos de euforia não quero passar por antipático.
P.S. – Continuamos à espera de saber se, tirando o deputado do BE que já queria sair do parlamento e que se demitiu em conformidade, e a deputada madeirense Rubina Berardo, que nunca pediu reembolso por viagens não realizadas (honra lhe seja feita, que foi a única), os outros deputados já tomaram alguma decisão ou esperam que a Subcomissão de Ética os salve.
[Da coluna no CM]
O deputado Paulino Ascensão, do Bloco de Esquerda, é uma espinha cravada na garganta do Parlamento. Enquanto os outros deputados apanhados na teia das “viagens não pagas mas retribuídas” recorrem ao expediente legal dos pedidos de parecer à subcomissão de Ética (uma pessoa escreve Ética, e lembra-se ilegalmente de Espinosa) e outros argumentam que o procedimento é, no fim de contas, absolutamente legítimo, a opinião pública descobre que, afinal, há manigâncias no Parlamento. Pode até acontecer (e acontece, de facto) que o deputado Ascensão já antes tivesse programado abandonar S. Bento e, em conformidade, tenha aproveitado a oportunidade para dar uma lição de ética com aquilo que é, afinal, uma manobra política. Mesmo com essa manobra política (“Eu saio porque pequei.”), Paulino Ascensão não deixa de ter pecado – apenas aproveita a decisão de sair para agitar a bandeira da lisura e da honestidade. Pode ser. Mas, no atual estado de coisas, de desconfiança e de suspeita, é preciso que alguém a agite de qualquer maneira. Nem que seja para tudo ficar na mesma. Mas à mostra.
[Da coluna no CM]
No sábado passado, o auditório da Biblioteca Almeida Garrett, no Porto, encheu-se para ouvir José Rentes de Carvalho – 88 anos de vida, 50 anos de livros publicados (Montedor saiu em 1988 – já agora, Ernestina, um dos seus grandes romances, foi publicado há 20 anos), uma vida distribuída pela Holanda, onde viveu a maior parte do tempo, e pela paixão por Portugal, a que dedicou a sua obra. Romance, ensaio, contos, crónica, diário: J. Rentes de Carvalho transformou as suas personagens em seres reais e perigosos, passou para nós as suas obsessões, devolveu-nos os nossos medos, retratou-nos nos seus livros. Durante anos, essa obra de que fazem parte romances como La Coca, Ernestina, A Sétima Onda, O Rebate, ensaios escritos no fio da navalha como Portugal, a Flor e a Foice, o divertido Com os Holandeses ou o atualíssimo A Ira de Deus Sobre a Europa, foi desprezada e ignorada na nossa terra. Rentes, um dos nossos maiores escritores, não é do nosso mundo nem comunga das nossas vaidades. Mas sabe ler-nos tão bem e tão profundamente, escrevendo sobre a nossa maldição.
[Da coluna no CM]
Podia recordar várias cenas dos seu filmes. Em 8 ½, de Fellini, naquele triângulo com Mastroianni e Anouk Aimée. O seu rosto olhando para Burt Lancaster e Alan Delon em O Leopardo (1963), de Visconti. Em Aconteceu no Oeste (1968), de Sergio Leone, o seu papel de Jill, enfrentando a natureza do mal, um raio de beleza no meio da poeira. No belo Fitzcarraldo, de Werner Herzog (1982) interpretando a figura de Molly, a dona de bordel – um filme com ópera, Amazónia e Klaus Kinskyi. Como sereníssima princesa em A Pele, de Liliana Cavani (1981), com Mastroianni e Lancaster (adaptando, de longe, o livro de Curzio Malaparte). Haverá outros filmes, outras companhias como actores (Henry Fonda, David Niven, Bronson, Jason Robards, Rod Steiger, Michel Picolli) outras recordações – mas a minha memória de Claudia Cardinale tem a ver com a sua beleza discreta, mediterrânica (nasceu na Tunísia, então protetorado francês, filha de dois sicilianos), que nunca desapareceu. Nem em O Gebo e a Sombra, de Manoel de Oliveira (2012). No próximo domingo, Claudia Cardinale festeja 80 anos. Ela e eu.
[Da coluna no CM]
Este verão será publicado um livro inédito de J.R.R. Tolkien, The Fall of Gondollin, que o autor de O Senhor dos Anéis (que nasceu há 126 anos) escreveu depois da batalha do Somme, onde ficou ferido, terá personagens da sua saga mais conhecida – e reproduzirá a batalha mais longa e cinematográfica dos seus livros, com ‘orcs’ e dragões, como se esperava. Os puristas não gostam destes abusos. Eu aprecio muito. Neste caso, o livro existe mesmo, e foi trabalhado com rigor e paciência pelo filho do escritor (que morreu em 1973). Mas, se não existisse, eu gostaria na mesma da ideia de prolongar a magia, o génio, a inventividade de Tolkien. Os grandes livros não terminam, nem as suas personagens. Sempre me apeteceu continuar alguns dos que mais gosto, como Os Maias (a senhora Condessa de Gouvarinho teria um papel de primeira linha), mas também as Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, Tristram Shandy, de Laurece Sterne, ou as aventuras de Philip Marlowe, de Chandler, ou de Smiley, de John Le Carré. Sim, seria um roubo. Mas descarado, como convém.
A ciência produz quase tudo o que nos maravilha e facilita a vida – mas, infelizmente, ainda não conseguiu uma cura para o cancro. É a palavra maldita, a ameaça de uma roleta russa permanente que paira sobre as nossas vidas, o pesadelo de todos os dias. Essa evidência não impede que outros horrores aconteçam diariamente, como o facto de a quimioterapia para crianças, em regime de ambulatório (no Hospital de S. João, Porto), ser realizada num dos corredores do hospital. Isto, estranhamente, apesar de existir um movimento solidário que já garantiu fundos para a construção da ala pediátrica do hospital, conhecida por Joãozinho. Mas essa é outra história, cheia de coisas duvidosas, que é necessário esclarecer. Parece que o que está em causa são 22 milhões de euros – a ala pediátrica é provisória há 7 anos –, finalmente disponíveis e “a aguardar assinatura”. Não bastasse tratar-se de cancro, o maior dos nossos pesadelos, trata-se ainda de uma unidade pediátrica – o que é uma vergonha próxima da indignidade. Crianças e velhos: eleitores relapsos e abandonados no “país da moda”.
[Da coluna no CM]
Não está escrito que o futuro trará mais liberdade. Não estou a pensar apenas nas modernas autocracias, fingidas de ‘constitucionais’ ou apenas de ‘democracias iliberais’. Também menciono o caso Facebook (FB). Mark Zuckerberg está agora escolhido como o inimigo n.º 1, uma espécie de bode expiatório para lamentos sobre populismo, manipulação e invasão da privacidade dos utilizadores da sua plataforma. Durante anos, um grupo de maluquinhos alertou para esses perigos – a manipulação estava à vista, não apenas no FB, mas em muitas outras. Acontece que ninguém obrigava os maluquinhos do outro lado (utilizadores do FB) a ceder os seus dados pessoais a uma máquina que procurava saber tudo sobre nós. O que acontece quando alguém sabe tudo sobre nós, desde a data de aniversário até aos gostos pessoais, hábitos sexuais e relações de amizade? Constrói uma humanidade à parte, controlada e vigiada, cujos dados se vendem a governos e a empresas. Foram os próprios cidadãos que, de livre vontade e com orgulho, cederam a sua identidade. O FB pode ser um monstro, mas foi alimentado por patetas.
[Da coluna no CM]
O pobre Corpo Expedicionário Português foi destroçado há cem anos, em La Lys (onde o meu bisavô, que ainda conheci, ficou surdo e cego de um olho – mas pôde milagrosamente retirar). Foi um preço demasiado alto e teve consequências demasiado amargas. O preço, pagaram-no todos os que ficaram no campo de batalha ou regressaram estropiados, humilhados e marcados para sempre numa guerra que Niall Ferguson trata em ‘O Horror da Guerra’ (Temas e Debates), um livro aterrador e que recomendo. Ontem, o primeiro-ministro defendeu a tese de que a nossa participação desastrosa na I Guerra foi um momento precursor da entrada na União Europeia – nada mais errado. Os dirigentes da I República, que conheciam as nossas fragilidades militares, as suas deficiências e falta de treino, forçaram cinicamente a entrada na guerra (apesar das reticências aliadas) para verem reconhecido o regime; sabiam que se tratava de um suicídio para o qual foram sucessivamente alertados. A velha República nunca pôde sarar essa ferida. Reescrever a história para a colorir nem sempre é a melhor solução nestas efemérides.
[Da coluna no CM]
Mais companhias e mais projetos foram apoiados depois do reforço avulso de verbas anunciado ontem. E mais serão, entretanto. O que significa que o susto político há de passar – até ao próximo. No entanto, o problema continuará sem ser atacado enquanto não existir, da parte da escola sobretudo, uma preocupação central em fomentar a educação artística e a educação para a cultura. É certo que alguma coisa já ela faz, graças a alguns professores (visitas ao teatro e aos museus, por exemplo) e apesar da indiferença da chamada “política educativa”, que não vê necessidade de introduzir a música clássica ou a história da arte e dos movimentos culturais nos seus currículos. Isso permitiria aproximar os nossos adolescentes da fruição da arte, ou da música, ou do cinema (o nascente Plano Nacional do Cinema foi desmantelado), e ajudá-los a prevenir as “fraudes culturais” na idade adulta. E, ao mesmo tempo, mostrar-lhes que “a cultura” não se faz com as pessoas “da cultura”, mas com “um certo olhar”, construído ao longo dos séculos, sobre as coisas do quotidiano. Isso leva anos.
O primeiro-ministro chamou a S. Bento o ministro e o secretário de Estado para lhes dizer que estava “surpreendido” com os protestos “da cultura” e que era preciso resolver esse problema e impedir a morte das “companhias de bandeira”. Este é o resumo, e é funesto, porque mostra como o governo pensou que tinha domesticado “a cultura” – que participou na esparrela dos banquetes pré-eleitorais, com genuflexões, embevecida com a promessa de “um novo ciclo”. Ora, como se resolve este problema? Com o aumento das dotações do Orçamento de Estado (mais 900 mil?, mais 1,5 milhão, mais 2 milhões?, mais 7, como pede o PCP?, subiram mais 37%, como diz Centeno?, ou mais 59%, como diz o SEC?), porque o problema, ao contrário do que se diz, parece não ter nada a ver com “o modelo de financiamento” – e sim com o dinheiro do “modelo de 2008”, que é hoje impraticável. Parte dos protestos apresentados fazem algum sentido. Mas não é isso que está em causa, como compreendeu o PM. O problema é que “a cultura” pensava que o mundo já tinha mudado e havia dinheiro a rodos. Quem pagou almoços grátis a quem?
[Da coluna no CM]
Martin Luther King (1929-1968) foi assassinado há cinquenta anos, no dia do 40.º aniversário de Maya Angelou (1928-2014). A coincidência não é feliz: a morte de Luther King é uma nódoa que perseguirá a vergonha do racismo americano; Maya Angelou, de quem estão publicados dois livros em Portugal (Sei Porque Canta o Pássaro na Gaiola, na Antígona, e Carta à Minha Filha, na Estrela Polar), foi uma poetisa delicada, uma memorialista de eleição, combatente dos direitos civis ao lado de King (e a primeira motorista negra em S. Francisco). A década ficou marcada, logo a abrir, em 1961, pela vitória de James Meredith, o primeiro negro a ser admitido pela universidade do Mississípi, o que exigiu uma intervenção militar (depois do caso de Dorothy Counts no colégio de Harding, em 1957). As marchas de Selma e Montgomery foram em 1965, um ano depois do Nobel da Paz para Luther King, e quatro anos depois de Katherine Johnson, Dorothy Vaughan e Mary Jackson (vejam o filme Elementos Secretos) terem sido admitidas como matemáticas pela NASA. 50 anos depois da morte de Martin Luther King, esta homenagem é importante.
[Da coluna no CM]
Admito que os militantes anti-touradas rejubilem quando um toureiro é morto pelo touro; no fundo, é um dos resultados possíveis da luta entre duas forças da natureza, o homem e o touro – na qual é permitido tomar partido. Mas vale a pena analisar o que ocorreu em França, na semana passada: uma militante vegana declarou-se satisfeita por um terrorista ter executado o funcionário do talho de Trèbes; não por concordar com a ação de Radouan Lakdim, autor do atentado reivindicado pelo Estado Islâmico, mas porque ela via o homem da charcutaria como “um assassino que vende carne de animais”; portanto, a sua execução – como escreveu na net – era um acto de justiça. Este raciocínio é absurdo, sim, mas foi lido por muita gente que, intimamente, concorda com este nível de justiça. Não quero maçá-los, ó leitores, com a conversa sobre como o número de chalados aumentou nos últimos tempos. Mas gostava muito de lembrar-lhes que, se o excesso de legumes e de tofu não prejudica os neurónios, a verdade é que há causas que começam a ser excessivas no seu nível de ressentimento contra a humanidade.
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