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Um dos seus livros menos conhecidos é A Batalha dos Livros, a antecipação, entre “antigos” e “modernos”, do que viria a ser a guerra de inteletuais de esquerda e direita – e o mais conhecido é As Viagens de Gulliver, uma sátira (como quase tudo o que escreveu), quer das realidades políticas da época (o início do século XVIII), quer da literatura de viagens – e que nos envia a Liliput, uma ilha perdida no Índico, habitada por seres minúsculos, ou a Laputa, e outras paragens exóticas, habitadas por gente absurda ou de costumes amotinados contra o bom senso. O irlandês Jonathan Swift (Dublin, 1667-1745), homem da igreja e da universidade, também desconfiava do bom senso e preferia a sátira: leiam a Modesta Proposta que leva o subtítulo Para impedir que os filhos das pessoas pobres da Irlanda sejam um fardo para os seus progenitores ou para o país, e para torná-los úteis ao interesse público, em que Swift recomenda que, fustigados pela fome, os cidadãos se entreguem ao canibalismo (cozinhando as crianças pobres). Swift nasceu há 350 anos: ensinou a Europa a rir e a pensar.
[Da coluna no CM]
A 29 de Novembro de 1807, há 210 anos, a esquadra portuguesa, acompanhada de quatro navios britânicos, levantou ferros e partiu para o Brasil – deixando em Lisboa uma Junta Governativa do Reino encarregada de manter a paz possível em Portugal, invadido pelos franceses. Para mim, é matéria de ficção: 10 a 15 mil pessoas chegariam ao Brasil logo na primeira viagem, em janeiro (a Salvador) e em março de 1808 (ao Rio). Não fosse isso, a antiga colónia seria o deserto desleixado em que se encontrava, e não teria ocorrido a revolução de 1820. Durante aqueles 13 anos que mudaram a face do Brasil podia ter florescido uma mundividência política mais vasta, mas não estávamos preparados para isso. Seria uma exceção naquele universo que concebia o mapa a sul do equador como um mar de dragões e uma bolsa de matérias-primas e de riquezas a extirpar. Na minha ficção pessoal, foi uma pena: teria sido uma oportunidade para criar um país. Nem na memória somos capazes de o fazer, vilipendiando D. João VI em roda livre, e não percebendo a tristeza daquele regresso. Mas é só ficção, notem bem.
[Da coluna no CM]
Um dos livros da minha adolescência foi O Desprezo, do italiano Alberto Moravia, e ainda hoje não consigo explicar como o livro (uma belíssima edição da Ulisseia) me foi parar às mãos. Depois, A Atenção, A Romana e, claro, La Ciociara, além dos contos de O Autómato e de O Amor Conjugal. Bom, era uma adolescência atípica, confesso, porque Moravia pertencia à anterior – não era um brilhantíssimo escritor, mas as suas histórias, adaptadas ao cinema (La Ciociara por Vittorio De Sica, O Conformista por Bertolucci, por exemplo, histórias do pós-guerra), resultavam bem nos tempos do compromisso histórico e sintetizavam o seu alinhamento político (foi toda a vida militante do PC italiano). Moravia, de quem hoje se assinala o 110.º aniversário do nascimento, acompanhou todo o século italiano – o seu primeiro romance, Os Indiferentes antecipava essa ligação entre o seu realismo socialista e um certo existencialismo, aliança sedutora que foi moda europeia. Ao recordá-lo, sinto uma certa nostalgia por aqueles livros – e pela sua imagem de homem compreensivo.
[Da coluna no CM]
1. Mau como as cobras — era e continua a ser assim, e é isso que o faz ser o eleito dos jogadores (uma irmandade que o defendeu de si mesmo em pleno relvado, no fim do jogo) e dos adeptos. Mesmo assim, vale a pena querer que mude parte do registo; ser mau como as cobras, mas nunca gastar as munições (o penálti sobre Danilo) na primeira frase.
2. Há muitos anos que isto não acontecia no FC Porto (desde Robson, Mourinho e Villas-Boas, o que é injusto para Jesualdo e Vítor Pereira): pode empatar com um jogo fraco, mas Sérgio é o general e na próxima semana estaremos lá. Isto é adolescente, mas é assim.
3. Os jogadores a rodearem Sérgio Conceição no final, impedindo-o de fazer a asneira prevista: a irmandade a funcionar. Foi isso que também o travou na flash, mas não o suficiente que o impedisse de mencionar os festejos do Aves.
4. O penálti sobre Danilo: evidente. Ponto final. Mas veja-se a falta assinalada ao primeiro minuto (uma carga sobre Ricardo, falta contra o FCP, a promessa do absurdo).
5. O FC Porto na Vila das Aves: muito fraco. Ponto final.
Amsterdam, 1975.
«Cena corrente, mostra apenas que algo mudou, muito irá mudar, e eles vão perder. Nada adianta alertá-los, porque fariam de surdos, ou talvez me acusassem de pessimismo. Certo é que quando olho para os rapazes de hoje entristeço e digo para comigo: já nada vos salva.» Hoje, J. Rentes de Carvalho, na coluna de domingo do CM.
Morreu o Pedro Rolo Duarte. Isto é tão absurdo. Passou este dia, mas não passou a ideia de que se trata de um absurdo. Ruy Belo dizia que “somos a grande ilha do silêncio de Deus”, e às vezes só silêncio pode responder a este absurdo, o de o Pedro ter sido levado para outro lado, onde não podemos escutá-lo. Ouço-o ainda, na Rádio Comercial, há muitos anos (Só Com Gelo), leio-o aqui e ali, conversamos de passagem, rimos de passagem. A vida passa depressa. Ao balcão do Hotel D. Carlos, em whiskies de fim de dia. Nas redacções onde nos cruzámos, nas entrevistas que me fez, na coragem que teve em quebrar tantos lugares-comuns, dizendo o que pensava, o Pedro ficará para sempre como um certo tipo que tinha bom gosto, imaginação, delicadeza, tudo o que agora está a mais nesta frase. É um absurdo o Pedro morrer. Resta-nos “a grande ilha do silêncio de Deus”, que é o que somos nestas alturas.
A insistência no “politicamente incorreto” pode, claro, resvalar para o “politicamente abjeto” – esta evidência assusta a maior parte dos gramáticos que policiam a nossa linguagem. Ricardo Araújo Pereira está entre os alvos mais fáceis; nos últimos dias, foi acusado de quase tudo nas chamadas redes sociais, e não me custa acreditar que, em breve, seja acusado de homofóbico, racista, xenófobo – a lista habitual é uma argamassa, nunca se é acusado de uma só coisa e há de acabar como fascista, e assediador sexual. O debate não é sobre a liberdade dos humoristas mas sobre a liberdade em sentido lato (onde eles estão incluídos, porque caminham no fio da navalha). Nem sobre a ameaça à criatividade. Tem a ver com o desejo de silenciar os outros e de substituir a realidade por uma língua infantilizada e hipervigiada, sem pecado nem dúvida. Os filhos dos anos 60 e 70 não admitem contrariedades; quando estas existem, querem “zonas seguras”. Não têm sentido de humor nem lhes interessa o passado (a História). Antigamente, queríamos debater; as novas polícias do pensamento querem exterminar.
[Da coluna no CM]
Entre a chuvosa primavera de 1816 em que Mary Shelley, nas margens do Lago Genebra (numa casa partilhada com Byron), escreve o esboço de Frankenstein, o Moderno Prometeu (o livro foi publicado em 1818, assinado por autor anónimo), e o outono de 1931, quando se estreia Frankenstein, o filme de James Whale, passam 113 anos de sucesso do livro. A interpretar a figura do monstro, Boris Karloff, um ator inglês nascido em 1887 (em Londres) e cuja carreira começou, de facto, ao entrar na companhia de Jane Russell em 1911. Antes de Frankenstein, Karloff (cujo verdadeiro nome era William Henry Pratt) deixa pouca coisa para trás. Mas no ano seguinte entre no Scarface de Howard Hawks, e embora venha a trabalhar com cineastas como King Vidor, Michael Curtiz (em The Walking Dead), John Ford, Douglas Sirk, Peter Bogdanovich ou Cecil B. DeMille, é ao monstro que fica ligado para sempre, tanto no filme inicial como em A Noiva de Frankenstein ou O Filho de Frankenstein, ou em filmes onde se nota o seu rosto triste, severo e excelente para papéis ‘negros’. Faria hoje 130 anos.
[Da coluna no CM]
Lembro-me de Fernando Relvas (1954-2017) nos corredores do Se7e, um jornal onde quase tudo era possível – e, portanto, lembro-me do seu grande sentido de humor, da sua desorganização, da sua capacidade de improviso, da sua tristeza e dos seus desenhos (os de Nunca Beijes a Sombra do Teu Destino, O Atraente Estranho, ou Soviet Sex). Estávamos em plenos anos oitenta, o que significa que também quase tudo era possível. Hoje, passados trinta e tal anos (nessa altura Relvas andava pelos 30), a sua ‘banda desenhada’ continua tão atual, atraente e decisiva como nos tempos da Tintim ou de O Estripador; as suas histórias de espionagem e de mulheres noctívagas, de bairros destruídos pelo desleixo, bem como de homens que gostavam de matar e de morrer, inspiram uma grande nostalgia dessa travessia que construiu a sua biografia como um dos mais importantes autores portugueses de BD. Eu gostava especialmente do seu traço, das suas sombras, da melancolia suburbana que ele nunca conseguia disfarçar em nenhum dos seus herois. Morreu ontem perto dos seus cenários. À queima-roupa.
O prémio Goncourt des Lycéens (digamos, o Goncourt dos liceus) é um prémio literário organizado em França por uma cadeia de livrarias e pelo ministério da Educação, criado em 1988 pelo liceu de Rennes e com o selo da Academia Goncourt. O que significa que, desde essa data, cerca de 18 mil estudantes do secundário, entre os 15 e os 18 anos, apoiados por uma associação de professores (a Bruit de Lire, ‘ruído de ler’, belo nome) leram (e votaram) 220 romances (já agora, isso corresponde a cerca de 40 mil exemplares distribuídos). O primeiro laureado, em 1988, foi A Exposição Colonial, de Erik Orsenna, a que também foi atribuído, coincidência pura, o maior prémio literário francês, o Goncourt propriamente dito (o que aconteceu mais vezes). Outros autores premiados pelos estudante de liceu? Laurent Gaudé, Delphine de Vigan, Philippe Claudel, Mathias Énard, entre outros – todos de primeira linha. Portanto, eu perguntava-me: quantos livros leem os jovens das escolas secundárias portuguesas por ano? Quantos livros leem os professores de Português por ano? Pronto, isto passa.
[Da coluna no CM]
É provavelmente o melhor romance de Camilo José Cela, Mazurca para Dois Mortos. Nele, gosto especialmente do primeiro capítulo e dos primeiros parágrafos: uma invocação da chuva, uma descrição da paisagem envolvida no cinzento turvo da chuva. Era o tempo em que chovia – semanas seguidas de chuva, dois meses de chuva. Não apenas a ‘morriña’, que os galegos, transmontanos e minhotos percebem como a grande melancolia que desce sobre a terra e mantém a humidade e o verde das colinas. Sob a ameaça da seca, muda a ideia do que é o bom e o mau tempo. Pela primeira vez há muito tempo os citadinos apercebem-se de que o “bom tempo” é um conceito relativo e que a sua indiferença em relação ao “interior” é pecaminosa. Não se trata apenas de “poupar um minuto de água” (um esforço de Facebook) – mas de pertencer à própria terra e de sofrer com ela a falta de “bom tempo”, ou seja, de chuva. Talvez agora passemos a dar mais valor aos rios, aos lagos, açudes, barragens, cursos de água que caem das serras onde havia árvores – e a olhar a seca da ficção científica como uma ameaça real.
[Da coluna no CM]
Bons tempos – a frase soa a velharia, eu sei – em que um livro era um livro e tudo o que despertava das suas páginas. Veja-se o que se passou em Frankfurt, no anúncio do país convidado para a grande feira do livro de 2021, que calha ser Espanha. Uma imensa galeria de autores passou pela minha cabeça, de Cervantes a Javier Marías, passando por Clarín ou Ballester, Montalbán ou Unamuno, Galdós ou Campoamor, Alberti ou Gimferrer, Quevedo ou Machado, Mendoza ou Marsé, Lorca ou Vila-Matas. Imaginei-me a passar pelos vários quilómetros de livros dos pavilhões de Frankfurt a deliciar-me com as belas edições espanholas, a vitalidade da sua ficção, mesmo os campeões de vendas (como Reverte) – e a tomar um xerez ou um ‘viño de Ribeiro’, parlapiando aqui e ali com um editor ou um autor. Mas o ministro da cultura espanhol chamou-me à realidade, segundo o que leio na imprensa. Eles não vão apresentar “apenas livros” mas também “a indústria criativa”, “videojogos”, gastronomia e “direitos mediáticos”, cinema e provavelmente apps para o uso de especiarias andaluzas. Admirável mundo novo.
[Da coluna no CM]
Um dos meus restaurantes preferidos em Portugal é o Solar Bragançano. Fica defronte do Largo da Sé, mesmo no centro da cidade num edifício do século XVIII que depois sofreu reformas nos dois séculos posteriores – e que mantém a estrutura de antiga casa familiar, loiças e mobílias antigas, dividido por salas (uma delas é um bar repleto de livros que as “autoridades” mandaram retirar, numa atitude selvagem), com escadas de granito e um jardim maravilhoso, discreto, com árvores frondosas. É possível ir a Bragança sem uma visita ao Solar – mas não é a mesma coisa. Pois um visitante do restaurante escreveu um comentário no Trip Advisor sentenciando tratar-se de “instalações muito clássicas a precisar de uns toques de modernidade”. O grande Desidério, proprietário da casa, respondeu-lhe no mesmo lugar, com serenidade de sábio: “Toques de modernidade? Vá até ao Louvre e pinte uns bigodes à Gioconda.” Num mundo que se moderniza a pontapé, que se “gourmetiza” e que quer parecer “jovem” e “ousado” custe o que custar, o meu amigo Desidério foi absolutamente letal. Aprendam. Viva o Solar!
[Da coluna no CM]
Na vida dos grandes autores, há sempre presenças tutelares, em segunda linha, movendo-se na penumbra – mas que foram essenciais na história da literatura ou, pelo menos, na obra desses autores. Alberto de Oliveira Luís ou, como nós (jornalistas, escritores, visitantes) o tratávamos, “o Doutor Alberto Luís”, era uma pessoa discreta, acolhedora e simpática que nos habituámos a ver na companhia da sua mulher, Agustina Bessa-Luís, com quem casou em 1945 – o episódio é contado por várias vezes, e respira literatura, como se fosse arrancado a uma página de ‘Memórias Laurentinas’: conheceram-se através de um anúncio de jornal. A cumplicidade entre os dois era enorme; tal como a admiração de um pelo outro e a dedicação de Alberto Luís a uma obra tão complexa e, por vezes, tão cruel para as “relações amorosas”. A sua mão invisível está lá: numa aguarela, num trabalho de investigação, na fixação do texto, na dactilografia do livro, na leitura, na intimidade de uma das nossas vozes mais poderosas e avassaladoras. Uma parte grande de Agustina partiu neste domingo passado.
Vale a pena ler a nova série de livros de Arturo Pérez-Reverte dedicada ao espião e mercenário Lorenzo Falcó, um operacional que trabalha para os nacionalistas (sem ser falangista) durante os anos 30, ou seja, a guerra civil espanhola. Falcó é um desiludido e um homem sem fé que reconhece o ódio que assalta as duas trincheiras. Nessa Espanha onde é fácil morrer, Falcó (que trafica armas, que tem vícios caros e se aloja num hotel de Salamanca onde hão-de chegar alemães e italianos) é um personagem que enfrenta os seus demónios e cria os dos outros: mata, fere, é surpreendido pela proximidade da morte, negoceia com o risco e a moral. É no campo de batalha que conhece Eva Rengel, que há de acompanhá-lo noutras aventuras (a do segundo livro, Eva) – mas não como amiga ou amante, apenas como outro rosto no espelho da vida. Numa Espanha minada pelo ressentimento (uma armadilha estendida pelo irresponsável Zapatero), a coragem de Reverte é enorme: a guerra não é um combate entre bons e maus, só a aventura, o amor e a História servem de consolo. Falcó é publicado pela Asa.
Houriaa Bouteldja é uma das “figuras famosas” da esquerda francesa e do partido Indigènes de la Republique (PIR), com laços difusos ao grupo da França Insubmissa de Jean-Luc Mélenchon (através de Danièle Obono). Houria defende a “lutte des races sociales” (porque a raça é uma construção social) e denuncia a repressão do anti-semitismo (a Charlie Hebdo, por exemplo, é “sioniste et ami des puissants”) e tem uma paixão duradoura por Jean Genet, com um interessante argumento: “Ce que j’aime chez Genet, c’est qu’il s’en fout d’Hitler.” Bonito. Ao saber que Genet saúda a invasão nazi da França, Houria não se contém: “Il y a comme une esthétique dans cette indifférence à Hitler. Elle est vision. Fallait-il être poète pour atteindre cette grâce?”
Publicou um livro intitulado Les Blancs, les Juifs et nous. Vers une politique de l’amour révolutionnaire, onde propõe um amor revolucionário aos seus inimigos (brancos e judeus), exceto a Finkielkraut, um dos grandes “récits racistes” da França de hoje – o livro fez algum sucesso nos EUA (em Berkeley sobretudo), não se sabe se pelo ódio de Houria a Sartre (“Fusillez Sartre!”), visto como um sionista, se por considerar Frantz Fanon um profeta. Esta aparente contradição (Fanon tinha uma grande admiração por Sartre) explica-se: a viúva de Fanon odiava tanto Sartre (justamente, com o argumento de se tratar de um sionista) que mandou retirar o célebre prefácio à edição de Les Damnés de la Terre.
Outras ideias de Houriaa Bouteldja: a Europa tem uma ideologia oficial, a do Holocausto; a homossexualidade não existe nos bairros populares e é uma criação da burguesia esquerdista e dos brancos em geral; é contra os casamentos mistos; e abater um israelita é “faire d'une pierre deux coups, supprimer en même temps un oppresseur et un opprimé: reste un homme mort est un homme libre”. Bravo. Ainda sobre o judaísmo, uma tirada: “Reconhece-se um judeu não porque ele diga que é judeu, mas pela sua sede em se fundir na raça branca.” Sobre violência sexual: “Se uma mulher é violada por um negro, é compreensível que não apresente queixa, a fim de proteger a comunidade negra.” É uma figura.
Edição colombiana de Longe de Manaus – esta semana nas livrarias.
Simplesmente maravilhoso, isto, no Malomil.
O secretário-geral do PCP é uma pessoa que me inspira simpatia – mas não condescendência. E a simpatia que Jerónimo de Sousa inspira não serve de contrapeso para condescender com o secretário-geral do PCP quando, inspirado pela fé e, certamente, pelo hábito, fala sobre a Revolução Soviética – e, embalado numa homilia sem fim nem começo, redonda como a cúpula do Kremlin, mistura o seu sermão com propaganda rebuscada de O Militante de há quarenta anos. Explico: uma coisa é defender aquilo que Jerónimo defende na vida portuguesa; outra coisa é, pisando sobre a verdade (o seu texto sobre a revolução no DN é um exemplo), os factos e as evidências, tecer loas ao totalitarismo, esquecer os milhões de mortos dos regimes socialistas (que deve tratar como um ligeiro desvio) e, por extensão, festejar o pacto Estaline-Hitler, o terror de Lenine ou os campos da morte no Camboja – precisamos de saber o que pensa sobre o assunto. De qualquer modo, assinalou-se ontem a queda do Muro de Berlim e muitos ocidentais, extasiados, puderam finalmente pedir asilo político na ex-RDA ou na URSS.
[Da coluna no CM]
Morrer de amor. Já não se usa, já não acontece – e não se recomenda. Camilo Castelo Branco, ele próprio (que tantas histórias de amor de perdição escreveu), desconfiava da nossa capacidade para morrer de amor. A própria palavra, “amor”, tem os seus dias contados: curte-se bastante; combinam-se vidas; acontecem encontros – mas as histórias de amor são secretas, castas e desconhecidas (Nelson Rodrigues, um dos maiores génios brasileiros, dizia que o pudor é o melhor dos afrodisíacos). O CM de ontem, no entanto, conta em breves linhas uma das mais tristes histórias de amor deste tempo de banalidade: o casamento da guineense Celeste Biagué com o seu namorado Rui. Celeste, 42 anos, morreu de ataque cardíaco na altura em que se preparava para atirar o buquê de flores às suas convidadas, e, portanto, passar aos outros a sua história de amor. Vendo as fotos desse casamento – o vestido de noiva, o riso de Celeste e Rui – não celebro senão a tristeza das vidas interrompidas. Só nos damos conta da necessidade de histórias de amor quando alguém vive a tragédia dessa interrupção.
[Da coluna no CM]
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