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Há muitos anos que alimento um sonho a propósito das eleições autárquicas: que as pessoas votem num candidato que se recuse a fazer promessas. Ou, então, em quem prometa não fazer grande coisa; nada de betão, “acessibilidades” desnecessárias, rotundas, requalificações, auditórios, alterações de arruamentos e do sentido do trânsito, centros interpretativos e parques de incubadoras empresariais construídos de raiz. Eu votaria em quem prometesse recolher o lixo, manter as rua, as escolas e as paredes dos bairros em boas condições, bem como os arvoredos, os jardins, as paragens de autocarros e o apoio social aos velhos – e se recusasse a fazer obras de vulto e a produzir lixo. Ao fim de um ano, a autarquia confirmaria, orgulhosa, que não tinha “feito nada”; que a água da rede pública era excelente, que a escola de música estava num edifício recuperado e que a biblioteca funciona num casarão antes abandonado; que os velhos (sim, os idosos) do concelho passaram a ter transportes todo o dia e apoio médico domiciliário. O resto são tretas de mau gosto que só nos têm custado dinheiro.
[Da coluna do CM]
Em 1999, Alain Finkielkraut publicou um belo livro, L’Ingratitude (A Ingratidão); nele lamentava que, por vários motivos, o homem contemporâneo já não se considerava um “herdeiro” mas um ser superior que considerava o passado um lugar de exclusão, de crimes, de preconceitos e de inutilidades. De certa maneira, tratava-se do caminho da indiferença, que anda de braço dado com a ingratidão. A indiferença é o nosso mal-estar de hoje. Ela faz equivaler quase tudo: na vida política, mentira e verdade; na vida académica, o conhecimento e a fraude; na relação com os outros, o bem e o mal. Na vida portuguesa (as eleições são um exemplo), a indiferença tomou conta do eleitorado, ao ponto de ninguém desatar a rir de promessas mirabolantes e impossíveis, de candidatos estapafúrdios, ou da subtil deslocação do assunto das próprias eleições, que são autárquicas e dizem respeito ao chamado poder local. Daqui a alguns anos pagaremos – e bem – o preço dessa indiferença e do excessivo gosto pela superficialidade. O espírito do tempo tomou conta de nós todos, ignorando as lições do passado.
[Da coluna do CM]
Cem anos depois não podemos reagir às eleições alemãs como Kafka (a frase é de 1914) o fez nos seus diários, naquela doce indiferença que hoje nos faz rir: “A Alemanha declarou guerra à Rússia; à tarde, piscina.” A chegada súbita da AfD (Alternativa para a Alemanha) ao parlamento já era esperada – ou seríamos marcianos – mas enfrentar as suas consequências eé diferente. Acontece que o funcionamento do xadrez mental (e não apenas político) da Europa mudou amargamente, o que contraria aquela espécie de contentamento oficial que reina a partir de Bruxelas. Onde há uns anos se esperava que os europeus votassem em função do grau de prosperidade visível, das políticas fiscais, da baixa taxa de desemprego, assistimos hoje ao renascer de “questões identitárias” e da “raiva silenciosa” que mobilizaram o eleitorado alemão em torno da AfD revisionista e xenófoba e de outros partidos no limite do sistema. Merkel, como de costume, tem razão: é necessário ouvir esse rumor para melhor o diluir (porque o Mal nunca desaparece). Frauke Petry, a líder arrependida da AfD, vai ter outros seguidores.
[Da coluna do CM]
Calhou este fim de semana ter tropeçado numa “arruada” eleitoral. Sentado numa esplanada, escondido entre a folhagem, contei ao todo 12 participantes entusiastas que fingiam estar possuídos por um espírito brincalhão e alcoolizado, saltando, pulando, avançando ou às arrecuas, expelindo o que me pareceram palavras de ordem. Atrás, ao lado, à frente e misturando-se com os 12 arruadeiros, entre os quais figurava uma alma discreta fazendo de candidato, seguiam exatos 14 jornalistas, gravando uma frase solta, captando uma imagem disparatada, o costume. Três minutos e meio durou a festança, após o que todos desmobilizaram. À noite, enquanto procurava um canal que me informasse sobre dado jogo de futebol (ai, se a CNE sabe...), tropecei de novo na mesmíssima arruada, mas já montada para televisão: uma multidão, um tropel, um sufoco de gente, uma jornalista já sem fôlego, nenhum espaço vazio – parecia uma praça cheia de gente a festejar o São João, engolindo a alma candidata. Tamanho esforço das televisões merece, certamente, o aplauso dos cinéfilos e – sem ofensa – um beijinho da CNE.
[Da coluna do CM]
No dia 28, às 18, na Universidade Nova (FCSH) — a última aula de Diogo Pires Aurélio, «Imagens sem modelo. Figurações do povo na democracia representativa». E uma homenagem ao leitor de Maquiavel e Espinosa; e ao poeta na senda de Hölderlin.
“What is the dream? To write something fine, that would be better than I am, and that would justify my trials and indiscretions. To offer proof, through a scramble of words, that God exists.”
Passei parte inútil dos meus dois últimos dias em repartições públicas onde alguns dos meus semelhantes passaram também parte inútil dos seus dois últimos dias. Levei dois livros, dos quais li um (mau) e meio (bom) – e um telefone que usei para enviar sms e jogar ‘Pudding Pop’. Pelo meio ouvi talvez uma centena de conversas mantidas por pessoas que não receiam ser escutadas ao telemóvel. Questões familiares (desavenças, na maior parte); negócios (alguns fraudulentos) a fazer; apartamentos a vender ou a arrendar; arranjos de natureza íntima ou, vá lá, mesmo sexual, com dois adultérios às claras (as senhoras estão ousadas, felizmente); as aulas dos miúdos; receitas testadas ou a testar (tomei nota de um truque para fazer molho de tomate); uma jura de amor (pareceu-me falsa); uma senhora zangada que falava russo; várias tragédias familiares muito penosas; uma jovem que, tipo, se queixava de, tipo, uns pais, tipo, chatos – uma alegre convivência telefónica em alto e bom som. Somos uma sociedade aberta – e incómoda, muito incómoda. E que fala alto. Não se lhe pode baixar o som?
[Da coluna do CM]
Qual o verdadeiro tamanho do pénis de Romelu Lukaku, o futebolista belga contratado pelo Manchester United por 100 milhões de euros? Segundo um grupo de adeptos das bancadas de Old Trafford (quase todos branquelos, se me permitem o abuso), rondaria os 61 centímetros (ou seja, 24 polegadas, medida inglesa). Pelo menos é isso que garantem num cântico que celebra os sete golos que Lukaku marcou em sete jogos (se tirarmos o que marcou na seleção belga): “Ele tem um pénis de 61 centímetros [He’s got a 24inch penis]”, ouve-se a certa altura. Num verso, mesmo mau, é preciso ter em conta a métrica. No entanto, o grupo de luta anti-discriminação racial Kick It Out considera que o cântico dos fãs é ofensivo e discriminatório para Lukaku, uma vez que assenta no estereotipo racista de que os negros têm um pénis maior – e, além de preparar denúncias à polícia contra quem entoar o “cântico discriminatório”, pretende que o assunto seja discutido numa reunião do grupo com a federação de futebol e o Manchester United, a fim de interditar o verso racista e, quem sabe, aparar um pouco do próprio Lukaku.
[Da coluna do CM]
Ontem, o Parlamento discutiu leis sobre “identidade sexual”, o que prometia ser um não-debate sobre natureza e cultura – e sobre engenharia social. A ideia base é a de que “o género” é uma orientação que deriva da cultura e não da biologia (feministas como Camille Paglia e Germaine Greer contestam-na violentamente); trata-se de um “sentimento” de pertença, que até pode (como “sentimento”, portanto) mudar mais tarde e, creio eu, reverter depois, de acordo com a “sensação” dominante. Independentemente de qualquer apreciação médica (e da opinião dos “encarregados de educação”, que hão de ser processados pela rapaziada), mas com bênção política, os maiores de 16 anos – que não podem comprar cigarros nem álcool – podem, assim, escolher o seu “género” e, um dia (admirável mundo novo, como prometia Huxley), mesmo o seu não-sexo. Já em Espanha, o Podemos apresentou também ontem uma proposta para que se possa escolher o tal “género” aos 12 anos. A frase é de Martin Amis e diz o essencial: “Pessoas que querem mudar a natureza humana – é isso o totalitarismo.” A pouco e pouco chegamos lá.
[Da coluna do CM]
Pode-se odiar a poesia? Pode. Ben Lerner, um dos mais jovens poetas americanos (nasceu em 1979, no Kansas) escreveu um livro com esse título, Ódio à Poesia (Elsinore, magnífica tradução de Daniel Jonas); uma das ideias que sobrevoa o livro é a de que o “ataque à poesia” chega, grande parte das vezes, dos próprios poetas e dos críticos de poesia, como “uma lógica amarga” – a que muitos “críticos culturais” (uma amálgama heteróclita e palavrosa) emprestam o seu “contentamento macabro”. Ben Lerner inventaria algumas das “mais recentes e notáveis choradeiras”, geralmente embrulhadas na exigência de uma “poesia para os outros”, destinada “a ser comunicada” e “percebida”. Esse desejo de comunicação aniquila a poesia em si mesma, transformando-a em letrismo (por exemplo, na voga da slam poetry, uma das várias fraudes muito populares hoje em dia); Lerner advoga uma espécie de silêncio contra a “universalidade” da poesia e a influência da “cultura popular” – isso faz deste livro uma pérola. A poesia vale também pela sua resistência ao ruído. Pelo seu silêncio.
Quantos descobriram a ‘Canción Mixteca’ (de José López Alavez, no início do século XX) através da versão de Ry Cooder, em Paris, Texas (1984), o filme de Wim Wenders? Bastantes. E do rosto de Harry Dean Stanton, a estrela discreta e, em simultâneo, poderosa, interpretando aquele papel abandonado de Travis ? Quase todos. A sua carreira foi toda ela feita de papéis secundários – os grandes pilares do cinema, os coadjuvantes indispensáveis, as estrelas distantes sem as quais não brilham as outras. Mas Stanton nunca teve razões de queixa: ele era assim: secundário, coadjuvante, de poucas palavras, escolhido por realizadores como Coppola, Ridley Scott, John Carpenter, David Lynch, Sean Penn ou Scorsese. Não há rosto “americano” tão pouco “americano” no cinema. Recomendo que o vejam também num western improvável, Duelo no Missouri (de 1976), ao lado de Marlon Brando e Jack Nicholson – e escutem a Harry Dean Stanton Band, para perceber essa mistura de blues, rock e música texana. Morreu na sexta-feira aos 91 anos (nasceu em 1926), um fumador inveterado e um rosto como não há mais.
[Da coluna do CM]
A Comissão Nacional de Eleições zela por nós com um desvelo de jardim-escola, definindo o que devemos e não devemos fazer no dia das eleições. Nada de futebol nesse dia; nem sexo, nem carnes vermelhas, nem saltar ao eixo – só eleições. Qualquer outra atividade pode “potenciar a abstenção”. Como somos gente que se distrai por tudo e por nada, o governo prepara-se para “proibir espetáculos desportivos em dia de eleições” – o que se aceita desde que, no resto do ano, se proíbam políticos de se ameijoar na tribuna dos estádios a dar abracinhos aos dirigentes do futebol. Peço humildemente ao governo que na sua lei não se esqueça de mandar encerrar os cinemas e os teatros, bem como livrarias, cervejarias de bairro, restaurantes tailandeses e bares de strip-tease. Em caso de eleições durante o estio, vede-se o acesso às praias ou expulsem-se os banhistas a partir do meio-dia; durante a invernia, as autoridades podem perfeitamente proibir a chuva e os passeios à Serra da Estrela (para onde, já agora, serão desterrados os que faltarem a sessões no parlamento para ir ver jogos de futebol).
[Da coluna do CM]
Passam 27 anos de ausência sobre George Smiley, o espião e prestidigitador criado pelo grande talento de John Le Carré – a sua última aparição foi em Peregrino Secreto, um livro de celebração da literatura de espionagem e dos seus heróis. Ontem, em Inglaterra, com A Legacy of Spies (no próximo ano em Portugal, pela mão da D. Quixote), George Smiley regressou ao convívio dos seus leitores. A expressão não dá conta da beleza do momento; Smiley não é apenas um equilibrista no mundo da espionagem britânica, um homem discreto e sábio, atormentado e vulnerável, que acreditava numa Europa capaz de justificar o confronto da Guerra Fria (e, pessoalmente, com Karla, o chefe do KGB) – ele é um personagem literário marcante. A trilogia composta por A Toupeira, O Colegial Ilustre e A Gente de Smiley é um legado maravilhoso – que começou em 1961, na sua primeira aparição em Chamada para o Morto – que aguardámos durante estes anos em que Le Carré, tal como nós, não conseguiu esquecer esse personagem tão poderoso. A sua biografia é um elogio à tremenda beleza da conspiração.
Em determinada passagem de O Fantasma de Harlot, um maravilhoso romance de Norman Mailer sobre a CIA, os Kennedy e os falhanços da América, há um encontro entre dois espiões – um russo e um americano (Harry Hubbard, o protagonista). O soviético está convencido de que a URSS é um tormento, mas não desertará para a América (ao contrário de Hubbard, que se refugiará em Moscovo) que, diz ele, profeticamente, já não é a casa do sonho, dos inventores, do barroco criativo, da arquitectura humanista. Ele quererá dizer que já não é a América de John Hay ou Henry Adams, por exemplo. Por isso, a decisão da administração Trump em acabar com a “lei dos sonhadores” (ou seja, os 800 mil jovens chegaram ao país indocumentados quando eram crianças) não é apenas o incumprimento da promessa de nacionalidade; é a perversão da “grande ética americana”. Os republicanos, esquecendo que foram eles a imaginar essa América, entregaram-se a um bando de ignorantes e a uma casta de obtusos. Ao assinar este decreto, o governo envergonha os republicanos de há um século e a América de sempre. Trump acabará mal.
Assim dá gosto. Jerónimo de Sousa não desilude quando é preciso pôr os pontos nos is. A ideia de que o líder comunista poderia, ai de nós, “suavizar” o discurso ou reconhecer alguns dos “excessos” estalinistas, é absurda. O grande mundo do socialismo não o abandona, como se vê pelo discurso na festa do Avante: dele participam os fantasmas reunidos antes do “degelo” de Krushev e depois da subida ao poder de Brejnev. É bom saber com o que contamos: Jerónimo de Sousa de braço dado com Lysenko e Beria, com Lenine e (ah, que sonho) Dzerjinsky, o fundador da Cheka, evocando a dinastia de heróis da Coreia do Norte ou no Camboja (Pol Pot e o regime Khmer merecem uma moldura), como um marxista-leninista tão ortodoxo como um pijama às riscas, dançando uma cumbia na Venezuela ou nadando no Yangtsé ao lado de Mao. Nada de graçolas: Jerónimo de Sousa não vê necessidade de encontrar exceções ou adversativas; isso é admirável na sua figura. Num mundo de falsos “modernos” e hipócritas, Jerónimo não é politicamente correto: ele sonha com o soviete de Petrogrado e com as purgas de Estaline.
[Da coluna do CM]
Há um fenómeno curioso na direita portuguesa – a sua cruel indigência inteletual. Vemos na televisão alguns dos “grandes comentadores” terçarem armas pela sua donzela e respetivos territórios: “a economia”, o défice, as exportações, as empresas, as operações financeiras, ocasionalmente a política. Matérias que nos interessam (há vinte anos que os telejornais são um prodigioso instrumento de manipulação através dos números). Negócios em primeiro lugar – e “colaboração” com o Estado, uma espécie de elefante da Índia que se maneja a espaços, e que é preciso defender com solenidade e sem asma, de tal maneira que conhecem bem a expressão “dormir com o inimigo”. Mas, tirando isso, os “senadores” ajeitam o nó da gravata e acham que tudo o resto são tropelias das quais estão defendidos e um terreno ao qual não querem “descer”. Acontece que “o mundo dos negócios” (leiam Balzac) dorme com quem lhe ajeita os lençóis e lhe promete tropelias. A liberdade, por exemplo, não é um assunto popular entre nós. A maior parte dos “senadores da democracia” atravessou o último século sem uma ideia na testa.
[Da coluna do CM]
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