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Domingo vai estar bom tempo, prometem os meteorologistas. E passam quarenta anos sobre a morte de Vladimir Nabokov (1899-1977). Ele aproveitaria o dia para um passeio nos bosques em busca de borboletas – o autor de Lolita era entomólogo e lepidopterólogo, o que dá uma ideia de como via os personagens dos seus livros, contos e romances: seres para observação. Nascido em S. Petersburgo, foi um exilado toda a sua vida: primeiro na Alemanha (o pai foi membro do primeiro governo russo de 1917, mas foi depois corrido pelos bolcheviques – para o exílio), depois nos EUA, finalmente na Suíça (viveu de 1961 a 1977 no Palace de Montreux). O sucesso de Lolita (1955), adaptado ao cinema (por Stanley Kubrick, com James Mason), foi também o seu trauma, mas não pode fazer-nos esquecer Fogo Pálido, Convite para uma Decapitação ou Riso na Escuridão – ou o admirável Fala, Memória, uma vaga autobiografia sobre xadrez, borboletas e tudo o que vem na literatura. Hoje, nos tempos do “politicamente correto”, Nabokov seria crucificado. É um dos grandes pilares do cânone ocidental, se existe.
Para que servem então as corporações policiais? «A Associação Humanitária de Bombeiros Voluntários de Pedrógão Grande alerta a população para a vaga de assaltos nas aldeias evacuadas, devido ao incêndio que lavrou no concelho, e pede atenção ao surgimento de falsos técnicos de apoio.» Repare-se que o aviso é dos bombeiros. Em situações de infortúnio, insegurança, incerteza e sofrimento, «os pilares da sociedade», como gostam de chamar-se, não funcionam? Era a este «controle da situação» que estava a referir-se a ministra da Administração Interna?
A entrevista de Celso Paiva (Rádio Renascença) e Ana Fernandes (Público) a António Salgueiro é um documento importante demais para podermos passar por cima sem reflectir.
«Não sabemos efectivamente se houve trovoadas ou não. Há coisas muito estranhas nestas informações, ou na falta delas. Quando há aproximação de frentes destas, de trovoadas, aquilo que sabemos é que as condições são muito instáveis e normalmente a teoria e alguma experiência aconselha-nos a nem sequer fazer combate. A primeira intervenção tem de ser feita da melhor forma possível mas, não conseguindo resolver, a situação vai exponencialmente aumentando de perigo para os combatentes e para as pessoas que estão próximas e, portanto, muitas vezes o conselho é que nem sequer se faça. Os processos são conhecidos e não há aqui nada de misterioso: Hoje de manhã já ouvi algumas intervenções em que se fala de mistérios e há aqui muitos mistérios, há mistérios no site do Instituto da Atmosfera e do Mar em que aparecem e desaparecem coisas: Há quem fale em mistério no local. Isto não tem mistérios: tem de facto situações extremamente complicadas, extremamente difíceis, mas consegue-se determinar com alguma antecedência aquilo que pode vir a acontecer.»
Helena Garrido no Observador: «A tragédia de Pedrógão Grande, o enorme número de vítimas mortais num incêndio, expõe de forma dramática o abandono a que está votado Portugal. Vimos no fogo e nas mortes o fosso entre um país urbano, pendurado nos direitos e desabituado a ter deveres, e um país que vive entregue a si próprio, esquecido. Foi-nos mostrado, de forma terrível, como são ocas são as palavras e os discursos contra a desigualdade. Desigualdade é isto, é um Estado não ser capaz de proteger aldeias de um incêndio.»
Henrique Pereira dos Santos no Delito de Opinião: clareza, inteligência, simplicidade de explicações – uma voz notável.
Nesta notícia (sobre a descoberta da maior coleção de artefactos nazis da história do país) há uma parte extremamente cómica: «A polícia encontra-se agora a tentar apurar de que forma é que os artefactos entraram na Argentina.» No país onde viveram Josef Mengele e Adolf Eichmann, e onde se albergam igualmente representantes do Hezbollah que organizam manifestações e colocam bombas, não estou a ver como é que isso foi possível.
O Ouriquense contra a múmia paralítica.
As faculdades de Letras são um albergue simpático. Por isso, o PCP organizou na de Lisboa um seminário intitulado “Socialismo, exigência da atualidade e do futuro”, dedicada a comemorar as alegrias da Revolução Russa de há 100 anos, e no qual o secretário-geral do PCP defendeu “uma democracia avançada” e a atualidade do bolchevismo. As novas gerações, escutando a linguagem épica de Jerónimo de Sousa, não conhecem a peregrinação dos horrores ligados à ideia de uma “sociedade avançada”, conceito leninista a que Estaline emprestou a eficácia que se sabe. A deputada Rita Rato, por exemplo, que faz parte desse jardim de infância, recusou-se um dia a comentar o Gulag e as mortes do estalinismo, porque não tinha dado isso na faculdade. Como passam hoje 80 anos sobre o nascimento de André Glucksmann recomendo aos seminaristas do PCP a leitura de A Cozinheira e a Devoradora de Homens, que leva o subtítulo Ensaio sobre o Estado, o marxismo e os campos de concentração. Do Gulag ao Vietname passando pela decoração de interiores da Lubianka e do KGB, é um mundo avançadíssimo.
A doutrina do crescimento infinito ensina que, se este ano se venderam 10 milhões de telemóveis, no próximo ano é necessário chegar aos 11, apesar de já haver cerca de 17 milhões de aparelhos. Há coisas mais palermas, mas essa é uma delas – razão porque os telemóveis servem inclusive para, em certas ocasiões, telefonar. As indústrias do século XX pensam no “crescimento” como um algoritmo, inclusive quando se trata do turismo. É assustadora a quantidade de artigos, entrevistas, sessões espíritas, reportagens e disparates sobre a matéria. Antigamente fumavam erva de má qualidade, agora discutem Airbnb, regulamentação e startups de tuk-tuks e hostels onde se dorme no meio de mosquitada e móveis do Ikea. Portugal é atraente por causa do património histórico que é preciso cuidar (e que a indústria turística devia pagar a dobrar e com língua de palmo); o resto arranja-se. Sim, também na cozinha, mas (já perceberam, certamente) come-se cada vez pior nos “restaurantes da moda”, todos iguais, onde deixou de se comer em pratos e se usam ardósias. Adoro os sinais de perigo.
A “arte contemporânea” é um instrumento interessante para lavagem de dinheiro. Oligarcas russos, potentados privados do Oriente, multimilionários e estados do Golfo, burgueses enriquecidos pela construção civil ou “antigos jovens” protegidos por alguns negócios bem remunerados – os poderosos investem generosamente em “arte contemporânea” e transformam-se em “patronos da cultura”, o que é hoje melhor do que ter o Euromilhões. Todos ganham: ‘marchands’ que conhecem bem demais as fraudes do seu ofício, pacóvios que apreciam “arte decorativa” para a sala de estar, artistas que têm de fazer pela vida, “curadores” que teorizam sobre a herança de Duchamp e a esperteza de Damien Hirst, colecionadores fantasiados de misantropos. Em matéria de “arte contemporânea”, por isso, a cultura lava muito mais branco. O sistema de retribuições da “arte contemporânea” baseia-se no receio de parecer iletrado diante de tão notáveis obras, como uma barragem da EDP pintada de amarelo. Quem se atreve a rir do assunto? No fundo, a “arte contemporânea” ainda é mais barata do que as facturas da eletricidade.
Um a um, os casos acumulam-se como uma espécie de galeria de personagens num retrato de família – podia escrever-se um romance acerca do assunto, um Balzac contemporâneo cheio de gestores, notívagos endinheirados, madrugadores flibusteiros, gente com prosápia, sem vícios conhecidos, sem mácula no registo. O país moderno da era Sócrates, como da era Cavaco, oásis de investimento e de dinheiro a rodos produz agora os seus efeitos e danos colaterais: afinal, os melhores gestores da Europa – e subúrbios brasileiros – tinham mácula, capturavam políticos que se deixavam capturar com prazer e proveito futuro. Cada gaveta que se abre revela tesourinhos escondidos, negócios de influência provinciana, rendimentos injustificados – uma geração inteira, aliás, como aconteceu em Espanha com as malhas do ‘beautiful people’ dos anos dourados do PSOE ou com a grosseira corrupção dos anos do PP. Daqui a alguns anos, é provável que a literatura lhes preste atenção, a esses personagens de eleição. Mas desconfio que os próprios escritores, tão comprometidos, já desistiram de falar de falar do seu país.
A ONU demorou 16 anos (de 1975 a 1991) a revogar a vergonhosa declaração – patrocinada pelos países árabes “da linha da frente” – que associava sionismo e racismo. Portugal votou favoravelmente essa glória do antissemitismo (Melo Antunes era ministro dos Estrangeiros, e teve a oposição do seu secretário de Estado, José Medeiros Ferreira), a 15 dias do 25 de Novembro. Menciono este episódio porque ele é marcante na história do judaísmo moderno, ao qual Esther Mucznik acaba de dedicar um livro, A Grande Epopeia dos Judeus no Século XX (Esfera dos Livros). São mais de 300 páginas onde se cruzam factos e datas fundamentais nessa história de incompreensão e perseguição – e também de grandes realizações. Do Holocausto nazi ao antissemitismo contemporâneo, passando pela fundação do estado de Israel, em maio de 1948, e pelas guerras israelo-árabes, Esther Mucznik trata também de estabelecer as pontes com Portugal e com a sua própria família (Esther viveu em Israel, onde o seu avô morreu em 1933). É uma história de heróis e de silêncios, de segredos e de grandes momentos.
As “redes sociais” apreciaram que a infanta Leonor, 12 anos, filha do rei de Espanha, tivesse uma cadelinha chamada Sara. Os animais valem tudo. Posso ser um mau caráter desprezível, mas se gostar da companhia de galinhas, cágados, gatinhos ruivos ou cãezinhos incontinentes, consigo logo likes no Facebook. Portanto, as “redes sociais” apreciaram o gosto da infanta, mas acharam desprezível que ela se declarasse leitora de Stevenson ou de Lewis Carroll – a malfadada elitista que, ainda por cima, gosta de filmes de Akira Kurosawa, o maravilhoso realizador de Ran, Dersu Uzala (A Águia das Estepes) ou Os Sete Samurais. Qualquer um destes filmes pode e deve ser visto por miúdos de 12 anos, mas as “redes sociais” castigaram Leonor – em primeiro lugar, por imperativo “republicano”; em segundo lugar, porque além de elitistas, os gostos (Robert Louis Stevenson! Lewis Carroll!) são “incomuns”. Ela devia gostar de Miley Cyrus ou Selena Gomez para ser republicana, e ler, digamos, os tweets da canalha. Qualquer dia é apanhada a ler Jane Austen ou, pior, o Quixote.
À hora a que escrevo nenhum grupo organizado tinha ainda reivindicado a nova onda de terror em Londres – mas o Estado Islâmico tinha assassinado 170 civis em Mossul durante o final da semana, logo a seguir a uma onda de atentados brutais e mortíferos no Paquistão e no Afeganistão. Não vale a pena ouvir os comentários logo a seguir aos acontecimentos. Os que outrora tentavam “compreender” os terroristas (designação substituída por “jihadistas”) estão um pouco cansados de explicações, e falam em público da necessidade de vigiar as redes caseiras de “combatentes do Estado Islâmico” – e, em privado, da conveniência de os esmagar. Não é assim tão simples. A pregação islâmica (‘radical’, para não chocar as almas sensíveis) foi semeada em bolsas multiculturais onde o veneno circulou livremente durante anos. Londres, Paris, Birmigham, Berlim, Barcelona, Copenhaga conhecem-nas. Mas a explicação tem duzentos anos, com o pacto wahabista assinado no Iémen para a recuperação do Califado, e alimentado pelos sauditas e emiratos. Escusam de falar da troika, da má índole ocidental e da crise dos refugiados, fica o aviso.
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Duas histórias pérfidas no reino da dissimulação em tempos pós-verdade: o corte de relações com o Qatar por parte da Arábia Saudita, Bahrein, Egito e Emirados Árabes, sob o pretexto de que aquele país financia o terrorismo. Qualquer história do Médio Oriente explica com detalhe este nó górdio – o terrorismo pré-Estado Islâmico foi financiado por estados ou organizações daqueles países; o problema é o apoio iraniano à ‘jihad’ (que entra pela Síria e pelo Iraque) e as presuntivas ligações entre Teerão e Doha, além da luta pelo Iémen (território da aliança wahabita), em que os sauditas e o Catar estão em campos distintos. Vão aos livros. Segunda história: depois de passar três décadas a bradar contra o “estado policial britânico”, a pedir o desarmamento das polícias e do país, a dar abraços ao IRA, ao Hamas, à Jihad e a Khadafi, a defender os loucos da mesquita radical de Finsbury Park, Jeremy Corbyn pede a demissão de Theresa May por esta ter cortado o número de polícias na rua. Se somarmos a Europa e os EUA a negociar armas com a Arábia Saudita, temos uma linda festa. Vão aos livros.
Para minha grande surpresa, houve comentadores que descobriram agora a vocação dos países do Golfo para financiar o terrorismo – uma galáxia que vai do Hamas à Irmandade Muçulmana, da Jihad Islâmica à Al-Qaeda e às Brigadas dos Mártires de al-Aqsa. Foi com esta gente que a esquerda europeia e as suas ONG andaram aos beijinhos durante décadas, misturando-se com o IRA e a ETA nos campos de treino da Líbia, do Iraque e da Síria. Ao mesmo tempo, as “organizações de caridade islâmica” dos sauditas e dos emiratos tanto financiavam a mesquita de Finsbury Park como as famílias dos suicidas que se faziam explodir um pouco por toda a parte. A Europa assistiu, comovida, a cerimónias em que Cherie Blair (a mulher de Tony Blair) e Ken Livingstone (o então mayor de Londres) se solidarizavam com os jovens jihadistas que atacavam os mercados de Jerusalém e se transformavam em heróis da causa, recebendo virgens às catadupas. Os emires rejubilavam e os seus primos do noroeste iam armando o Estado Islâmico para ver se lhes sobrava alguma coisa do Iraque. Festejai o califado.
Vamos pela efeméride a meio: anteontem passaram 50 anos sobre o fim da impressão dos primeiros exemplares de Cem Anos de Solidão (em Buenos Aires, Editorial Sudamericana); no dia 5 de junho de 1967, o livro era finalmente posto à venda. Cinquenta anos depois, a saga dos Buendía (os Arcádios, os Aurelianos, Úrsula, Remédios), a cidade mítica de Macondo, as histórias de Melquíades, Rebeca (que comia terra), Pilar ou Maurício Babilónia (com as suas borboletas amarelas), além das recordações de todas as personagens, fazem parte da nossa memória da literatura. Gabriel García Márquez (1927-2014) escreveu outros romances e novelas (Crónica de uma Morte Anunciada, um prodígio de construção, O General no Seu Labirinto, sobre a loucura caudilhista, ou O Amor em Tempos de Cólera) – mas Cem Anos de Solidão há de permanecer como uma reinvenção da maneira de contar e de escrever na literatura do seu século. Tão influente que o livro se tornou fonte de obsessão para escritores – tanto quanto maravilhosa para milhões de leitores que hoje podem reler esse romance avassalador.
A novela do treinador é ridícula. Mas não é mais ridícula do que as anteriores – a escolha de Lopetegui (& as escolhas de Lopetegui), a escolha de Nuno, as «fugas de informação», a «aliança» com o Sporting, etc. Se Sérgio Conceição for o escolhido, é pena que – infelizmente – o seja pelas más razões, que se resumem numa: a necessidade de alguém que faça regressar ao FC Porto «o espírito do FC Porto». Acontece que esse espírito se perdeu há muito, com a avalancha de contratações estapafúrdias, o despautério financeiro, a falta de coragem para alguém dizer que os líderes têm prazo – de facto – de validade (e para que alguém lho diga), a mistura de assuntos privados com assuntos do clube, a promiscuidade entre família e famiglia. Portanto, chegados a esta altura, e como teremos de esperar que se chegue ao fim de mais um ciclo de liderança, o FC Porto precisa de um treinador. Precisaria de um treinador e de um cavalheiro ao mesmo tempo, figura em que encaixariam Bobby Robson ou André Villas-Boas (a coisa está tão pelas ruas da baixeza que até me lembro de Jesualdo), não apenas de um animador das hostes. E de um cavalheiro que perceba como o nosso futebol dançava nesses anos em que jogadores de segunda linha se transformavam em jogadores de primeira ordem. Alguma vez Paulo Ferreira e Nuno Valente deixavam cair a cabeça, para já não falar de Alenitchev, Derlei, Benny (aquele golo contra o Manchester, obra de arte), Capucho – ao lado de tipos que sempre foram naturalmente bons? E vai ser preciso. Que seja Sérgio Conceição não me assusta nem me indigna. Mas será um duplo trabalho – terá de ser ele a pôr na linha aquela gente e a dar mais velocidade à capacidade de reação do FC Porto frente à máquina demolidora e bem organizada dos adversários – e frente ao seu futebol.
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