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Outro dia, um texto publicado num blogue feminista chique (Capazes) defendia que, em nome do equilíbrio democrático, o direito de voto fosse retirado aos ‘homens brancos’ durante, digamos, vinte anos. Isso serviria para impor um módico de justiça ao nosso mundo, dominado pelos ‘homens brancos’, período após o qual os direitos políticos lhes seriam suavemente restituídos. Ou não. Aí está um tema para discussão. Entretanto, em Paris realizar-se-á um festival “afro feminista europeu”, o Nyansapo, em que só 5% do recinto estará “aberto a todos”. 80% do espaço será “não misto para mulheres negras” além de 15% “não misto para pessoas negras”. Esta distribuição do espaço do festival (que a presidente da câmara de Paris pediu para proibir) também não me comove por aí além. Poderíamos falar da “idade do ressentimento”, da parolice, da vida sexual das doninhas, dos “estudos culturais” das universidades e da abundância de pólen na atmosfera. Não é caso para guerra civil. Há certos momentos em que não vale a pena discutir com pessoas malucas. Elas ganham.
Com ironia, Eça de Queirós achava que a visita dos estrangeiros era um incómodo: estamos nós em camisa, de chinelos, a palitar os dentes – e vem esta gente obrigar-nos a recolher o lixo e a ter maneiras à mesa. Os deputados que se preparam para agravar as condições de existência do “alojamento local” fazem-no por disciplina partidária, porque o Estado precisa de fazer o seu saque e de elaborar regulamentos. Mas, lá no fundo, servem a pequena xenofobia, a ideologia da treta, o atavismo e os interesses pessoais – e não esqueceram o que disse um responsável pelo setor nos tempos da pós-revolução (que o turismo é “a prostituição de um povo”, lembram-se?). O ataque ao “alojamento local” é ótimo para o lóbi hoteleiro, que quer ser absolutamente dominador (quem sabe, um dia poderá financiar campanhas eleitorais). Para os burocratas, os turistas são um incómodo e um perigo, mesmo que 90% dos residentes na capital se declarem satisfeitos com o turismo – e a sentir mais orgulho na sua cidade. Por detrás de um destes burocratas está sempre um perigoso provinciano encartado. E maldoso.
Uma certa pessoa recomenda livros portugueses em inglês. E tal.
Nestes dias tenho receio das notícias sobre treinadores que se despedem do seu emprego, seja ele onde for. Claro que acho benigna a ideia de há treinadores que se recusam a trabalhar no FC Porto por motivos financeiros para lá do razoável – significa que algum bom senso entrou naquelas cabeças e que pode haver esperança – mas acho pior a mania de apresentar-nos um treinador-surpresa (a lista vai de Jorge Simão e regressa a Rui Barros e passa por meia dúzia de nomes espanholizantes, sem mencionar Vítor Oliveira). Como não acredito, sinceramente, que tivesse havido uma proposta séria e conforme a Marco Silva, Carvalhal ou Sérgio Conceição, o facto de não contratarem a Madonna já me parece um sinal de sorte.
Duas notas ainda: 1) depois de Lopetegui ter arrasado o balneário e deixado sementes aqui e ali, e de Nuno Espírito Santo ter querido dançar o funaná em câmara lenta, até acho plausível que os treinadores com dois dedos de testa hesitem várias vezes antes de atender um telefonema. Já vão longe os tempos em que treinar o FC Porto era ser bafejado pela sorte. Isto devia dar uma ideia, aos vários directores em exercício, da merda que fizeram. 2) também dá ideia da pouca coragem desses treinadores, que preferem trabalhar para ficar em 11.º em vez de começar por jogar na Champions – mas eles lá devem reconhecer as suas limitações.
Está a ser, vai ser, há de ser um folhetim bonito de se ver.
Ontem, depois de ter vencido o Génova (o 3-2 foi de Diego Perotti aos 90 minutos), parecia que o clube romano estava a festejar o segundo lugar no campeonato – mas não: era a despedida de Francesco Totti, o número 10 da AS Roma. Melhor: o eterno 10 da AS Roma. Em futebol, 25 anos na equipa principal são uma eternidade – quase toda a vida de Totti, ‘Il Re di Roma’ ou ‘Il Capitano’. O homem que podia ter jogado noutros clubes – e ganho muito mais dinheiro – e nunca saiu “do clube do seu coração”. Hoje, “clube do coração” não quer dizer nada a não ser que se esconda a “cor do coração” e Totti nunca o fez: onde ele estava, estava a AS Roma, no lugar de campeão, no de segundo (a Roma é campeã de segundos lugares), no de sexto, no de antepenúltimo. Ontem, Totti encheu de lágrimas o Estádio Olímpico. Aos 40 anos Totti já não “fazia a diferença”, nem a Roma está na primeira linha. Mas ao vê-lo, ali, reunindo milhares de adeptos para a sua despedida, só podíamos ter inveja daquela glória hoje tão rara. Não no futebol (“É um mundo que não me agrada, cheio de gente que não gosta de futebol, que só gosta de dinheiro”, diz Totti). No mundo dos homens que ainda são humanos.
Parece que há cerca de quatro anos a editora inglesa Constable & Robinson recebeu um manuscrito, The Cuckoo’s Calling, Quando o Cuco Chama, de um autor desconhecido, Robert Galbraith. Na resposta, o editor dizia que se tratava de um livro comercialmente inviável e recomendava mesmo que Galbraith, ai dele, tivesse aulas de “escrita criativa”. Erro crasso: Galbraith era o pseudónimo que J.K. Rowlling (criadora de Harry Potter) usava para as histórias policiais do detetive Cormoran Strike, e o livro foi um sucesso comercial. Coisa diferente ocorreu há 121 anos, quando a mesma casa editora aceitou publicar um “romance de horror” de um vago jornalista irlandês que trabalhava em Londres no Telegraph, Bram Stoker. O livro não foi um best-seller imediato, mas Conan Doyle (o criador de Sherlock Holmes) achou-o magnífico e a crítica, em geral, comparava-o a Frankenstein, de Mary Shelley, às obras de Stevenson ou Poe, ou a O Monte dos Vendavais. O personagem principal era um conde que vivia entre a Transilvânia (na atual Roménia) e a Moldávia – e o livro era Drácula, publicado a 26 de maio de 1897, há 120 anos. Passado todo este tempo, Drácula ainda povoa os nossos pesadelos.
O essencial sobre a tudologia acerca do terrorismo, pelo Pedro Correia. Era fundamental acertarmos nisto.
Como Simon Templar e como James Bond, ao lado de Jane Seymour
Roger Moore (1927-2017) sabia que era “apenas Roger Moore” – isso não o incomodava. Ou seja, sabia que ia passar à história do cinema como Simon Templar (‘O Santo’) ou como James Bond, os dois personagens que interpretou com humor e desprendimento. Era “o inglesinho elegante” em quem o ‘smoking’ branco assentava bem, que sabia levantar a sobrancelha direita nos momentos certos, e que fingia – adoravelmente – correr risco de vida ao lado de Britt Ekland, Barbara Bach, Lois Chiles, Maud Adams ou Grace Jones, atrizes de quem hoje poucos se lembram (são sete filmes como Bond). O seu génio está todo em Simon Templar, ‘o Santo’, com a sua roupa e penteado imaculados, além de cenas mirabolantes mas de reduzida ação. Hoje, quando vemos os filmes de 007 com Moore, recuamos mais do que um século; aquela sofisticação vem tocar-nos de leve, e rimo-nos: quase tudo é graciosamente obsoleto, até o sentido de humor, o donjuanismo com aquela banda sonora (Carly Simon, Duran Duran, Sirley Bassey ou Sheena Easton, lembram-se?). Roger Moore era mestre numa grande escola de cavalheiros.
Há exactamente 16 anos, a 1 de Junho, estava bem perto da discoteca Dolphinarium, em Telavive – onde um bombista suicida se fez explodir matando 21 adolescentes. Na altura, o Guardian publicou as declarações do pai do jihadista, Saeed Hotari: «I am very happy and proud of what my son did and I hope all the men of Palestine and Jordan would do the same.» À ABC News, as declarações foram ligeiramente diferentes: «I am proud and I will never forget it until the last day of my life. This kind of death is better than any other kind of death. Thanks to God.»
Dois anos depois, a foto de Saeed Hotari estava presente na sessão onde o mayor de Londres, Ken Livingstone, e Cherie Blair, mulher do primeiro-ministro britânico, prestavam homenagem aos heróis do Hamas e da então Jihad Islâmica, que reivindicaram o atentado na Dolphinarium e que, menos de dois meses depois, faziam explodir a pizaria Sbarro, no centro de Jerusalém, à hora de almoço.
O que é uma hipérbole? Uma figura de estilo que assenta na expressão exagerada de uma imagem, uma ideia, uma comparação. Se quiserem mais, perguntem ao Presidente da República que, chegado aos Açores, tratou de classificar como uma “grande terra com grande gente”. Que problema isto levanta? Aparentemente nenhum, e sou açoriano honorário – mas, conhecendo os portugueses, não haverá concelho que não tenha já montado o seu vigilante “elogiómetro” (um dispositivo para medir a intensidade dos elogios patrióticos). Minhotos, alentejanos, beirões do mar e da serra, raianos e ilhéus: não conheço terra que não esteja pronta para o seu elogio – e a compará-lo com os precedentes. Se o presidente é tão elogioso para com (imaginemos) as ameixas de Elvas, o que dirá (imaginemos) do presunto de Chaves? A uruguaia Cristina Peri Rossi tem um belo romance intitulado O Amor É uma Droga Dura. Também o otimismo patriótico é uma droga dura. Obriga-nos a subir a dose do elogio; chegará um dia em que o dicionário não bastará para satisfazer a fome de amor presidencial. Será, ai de nós, um dia terrível.
Daqui a uma semana, o Teatro de S. João, no Porto, vai estrear Macbeth, de Shakespeare (encenação de Nuno Carinhas, tradução de Daniel Jonas). Refiro-o também porque passaram ontem 110 anos sobre o nascimento de Lawrence Olivier (1907-1989), a quem devemos a grande trilogia de Shakespeare no cinema: Henrique V (1944), Hamlet (1948, vários triunfos nos Oscares) e Ricardo III (1955) – um clássico na representação de Shakespeare, e na história dos seus rostos inesquecíveis (há ainda Otelo, Henrique V, Rei Lear e O Mercador de Veneza). Foi durante um Hamlet que conheceu (em 1937, o mesmo ano em que representa Macbeth) uma das mulheres da sua vida, Vivien Leight (a Scarlett O’Hara de E Tudo o Vento Levou e a Blanche Du Bois de Um Elétrico Chamado Desejo). Reduzir Olivier a Shakespeare é ridículo: ele é o grande rosto de Heathcliff no Monte dos Vendavais de 1939, ou o de Rebecca, de Hitchcock, ao lado de Joan Fontaine, ou Mr. Darcy no Orgulho e Preconceito com argumento de Aldous Huxley (de 1940). A sua representação devolve-nos o prazer dos clássicos.
Diz-se que há uma “maldição de Stefan Zweig”, o escritor austríaco que fugiu da Europa e do nazismo para se fixar no Brasil, em Petrópolis, onde se suicidou em 1942. Em 1941 publicou Brasil, País do Futuro – título que constituiu, em simultâneo, uma promessa e uma maldição. O Brasil, hoje, é uma equação incerta. É um país que já não tem desculpa. Não pode desculpar-se com a “herança colonial portuguesa” (sua desculpa fácil de sempre, sobretudo entre os intelectuais) nem com a agressão do capitalismo. Minado (verdadeiramente minado) pela corrupção, raros são os políticos a salvo da suspeita. Depois do consulado equívoco de Lula e da tragédia de Dilma (um pesadelo de incompetência e desleixo), o Brasil ouviu, incrédulo, o depoimento do antigo presidente petista, culpando a sua falecida mulher por eventual corrupção. Uma vergonha. Anteontem, o país soube que Michel Temer não tem apenas falta de legitimidade eleitoral – mas também de probidade. Nada de novo. Do PSDB ao PT, passando pela desgraça que é (e sempre foi) o PMDB, poucos se salvam. O país do futuro é de novo um enigma. E um escândalo.
Sob o efeito da guerra que ocupara a Europa no início da segunda metade do século XVIII e ainda vivendo o horror do terramoto de Lisboa, o de 1755, Voltaire termina Cândido, ou o Otimismo de uma forma enigmática, mas deliciosa – sim, o otimismo é bom; mas “devemos cultivar o nosso jardim”. Foi essa a escolha dos eleitores franceses (como está a ser a dos alemães, aliás, voltando as costas ao populismo de Schultz): um certo regresso a casa, cuidar da França, recentrar a política para que ela tenha espaço para a imaginação. Por alguma razão isso não alegra nem seduz os nossos tribunos, certamente porque têm dificuldade em ler a língua de Voltaire (e, assim, de compreender como a França voltou a estar no centro da Europa). É possível que este “novo centro” francês, bem expresso no governo anunciado ontem, ao afastar os cavernícolas da velha esquerda (a balela dos “insubmissos profissionais”) tanto como os herdeiros da gerontocracia da direita (e da sua pose) consiga despenalizar a política. E que os europeus possam cumprir o desígnio de Voltaire: cultivar o seu jardim.
Várias almas dedicaram os últimos dias a proclamações patrióticas a propósito da vitória de Salvador Sobral lá em Kiev. Que isto é um prémio para todos nós, o reconhecimento de que somos geniais, de que o talento para a música nasceu aqui, e de que não há um único desafinado de Valença à ilha do Corvo. Esta apropriação dos prémios pela pátria inteira é meio esquisita. Claro que ficamos felizes, claro que exultamos – Salvador é dos nossos. Mas, quando se trata de generalizar, alto lá. Foi assim com o Nobel de Saramago; a partir daí, éramos todos grandes escritores. Foi assim com Ronaldo; passámos a ser todos bons de bola. Lá por Maria João Pires ser genial, o país não deixa de ter pianistas desafinadas. Os políticos em funções usam muito essa artimanha: somos os melhores do mundo, não há ninguém assim. Acontece que cada um desses prémios recebidos é fruto de muito trabalho, dedicação, abnegação muitas vezes, e sofrimento, insistência. Silêncio. Incompreensão. Injustiça. Alegria também. Mas não gastem tudo com trivialidades patetas. O prémio é deles.
Agora que o Papa regressou a casa, que os políticos guardaram as selfies na coleção (passaram ao futebol logo a seguir), e que grandes figuras da igreja já declararam não acreditar em Fátima – voltemos nós, pessoas comuns, ao assunto. Em primeiro lugar porque falar de religião é pouco popular, está fora de moda. Falei com várias «pessoas comuns» que foram a Fátima e que não debatem a diferença entre «visões» e «aparições», nem estão ocupadas com «as provas da existência de Deus». A experiência de Q., que todos os dias me serve o primeiro café ao balcão da cafetaria, é a mais forte, a mais profunda, aquela que nos deveria fazer pensar. Diz-me Q. que o mais comovente de tudo foi o silêncio. E, depois, a contemplação da luz das velas no meio da escuridão. Deus é isso: um grande silêncio que não tem a ver com os palradores. Há muita gente da igreja que só olha para o céu para ver se chove, porque já não sabe falar de Deus. E há pessoas como Q., que falam do essencial com uma pontaria divina: o silêncio, a escuridão que mostra a luz, os outros, a serenidade que não se explica.
Salvador Sobral: não vale a pena dizer mais nada. A sua canção (e de Luísa, a extraordinária e belíssima Luísa) comoveu a Europa mas, antes disso, comoveu os portugueses de todas as condições – e ele cantou-a em nosso nome, e em nome da melancolia portuguesa, perto do sublime, do arrojo e do despojamento. A vitória na Eurovisão nem é o mais importante, porque será submergida pelo folclore e pela contagem dos anos de humilhação sofridos por Portugal. O que é realmente importante é a simplicidade da vitória: no meio do plástico e da imundície, Salvador não teve de fazer grande esforço. Limitou-se a cantar uma canção que há de perdurar. Vejam-se os textos do Guardian, do Figaro e do Telegraph, que não são propriamente fanáticos do festival da Eurovisão – e que assinalaram a trapaça montada por Salvador (a melancolia, tão cativante, tão prometedora), aproveitando uma brecha e levando ao palco de Kiev uma canção que comoveu toda a gente. Nós, que fomos preparados para a derrota em todas as circunstâncias, nem acreditámos que era tão fácil. Que bastava ser mortal.
Quem é, no seu entender, a primeira figura do tetra do Benfica? [A pergunta do CM hoje]
Tenho dificuldade em eleger uma única figura. Se fosse o caso, seria Rui Vitória. O presidente do Benfica, igualmente, porque não se meteu no futebol. Os jogadores mais decisivos, como Jonas, Pizzi, Mitroglou, Cervi ou Salvio. Mas gostaria também de mencionar Julen Lopetegui e Nuno Espírito Santo.
Cara Assunção: absolutamente genial. Recordo, para quem não viu, a declaração de Assunção Cristas no Parlamento, defendendo “rasgo, horizonte e ambição”: “A nossa proposta são 20 novas estações para o metro de Lisboa e espero que possam ser estudadas, planeadas, financiadas e tratadas.” Pois Fernando Medina que trema – diante de 20 novas estações de metro, ele perderá Lisboa. No Porto, Rui Moreira estremece. 20 estações? É obra, é arrojo e, como diz Assunção, é “rasgo, horizonte e ambição”. Rima. Algures em Lisboa, Sócrates exulta: “Estão a dar-me razão! E eu só queria um aeroporto em Beja e meia dúzia de auto-estradas no Gerês.” Proposta leviana? Não. As estações serão “estudadas, planeadas, financiadas e tratadas”. É irrealista? Não. Serão “planeadas e financiadas”. É impossível? Não. Serão “tratadas”. Melhor do que isto só o conde Gouvarinho, de Eça, que gostaria de ser ministro da marinha para instalar um teatro em Luanda. Da Vinci também teve “rasgo, horizonte e ambição” há 600 anos, quando desenhou máquinas voadoras – e, hoje em dia, ninguém deixa o de o convidar para jantar.
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