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A Europa inventou o “bom selvagem” depois das primeiras notícias sobre os ameríndios – e regozijou. Pois se no Velho Continente éramos todos pérfidos e perversos, a América tinha guardado ainda espécimes humanos em bom estado de conservação, bondosos e doces como no paraíso (não era verdade). Mais tarde, no século XX, inventou o “bom revolucionário” – e regozijou ainda mais. Pois se no Velho Continente éramos todos burgueses e submetidos ao capitalismo, os povos da América do Sul podiam resistir e fazer, lá (isto é importante: lá), a revolução que não se podia fazer na Europa. Hugo Chávez, por exemplo, foi uma das derradeiras invenções dos teóricos da “revolução permanente”, entre trotskistas ingleses, populistas espanhóis, várias correntes comunistas, agora com vénias iranianas. Está bem: irritou os americanos. E conduziu um país à ruína, à repressão, à censura, à demência (o líder reencarna sob a forma de um passarinho) e à escassez. Nada disto comove os seus criadores. A Venezuela (leia-se o Avante!) continua a ser o exemplo revolucionário de um manicómio de primeira linha.
Dar à luz sem epidural, ir ao dentista sem anestesia – há um mundo de coisas magníficas e saudáveis na “vida natural”, sem medicamentos nem químicos, vivendo como recoletores, apanhando a fruta do chão e recusando-se a usar champô. Uma delas é o risco, em sentido lato, que parece não incomodar os pais que se recusam a vacinar os seus filhos e que preferem (li isto numa reportagem) que o filho “tenha a doença mas não a vacina”. Sarampo, poliomielite, tosse convulsa, a lista de vacinas é vasta, o nosso terror durante a infância há quarenta, cinquenta, sessenta anos. Compreendo que pais comprometidos com a “vida natural” e a recusa em usar químicos de qualquer ordem – sobretudo ligados à indústria farmacêutica – sujeitem a sua família a este risco. Dá um trabalho considerável, mas compreendo a dedicação integral de certas pessoas empenhadas em regressar a um paraíso que já não existe há muito, onde se pode ser vegetariano, detestando a anestesia, a aspirina e a proteção contra o sarampo. Compreendo; mas parece-me idiota viver no meio do perigo.
Os polícias e moralistas da literatura não ficarão muito satisfeitos com o Grande Prémio de Poesia para Helder Moura Pereira; tanto melhor. Trata-se de um dos nossos grandes poetas (e tradutor notável, de grande mérito). Não só, evidentemente, por este livro, Golpe de Teatro (Assírio & Alvim) – mas por uma das obras mais consistentes da poesia portuguesa do último quartel do século XX e estas duas primeiras décadas do atual. Nada nos pode dar mais alegria do que ver este prémio da APE distinguir um autor como Helder Moura Pereira (n. 1949), a mão que assina livros tão importantes como Carta de Rumos, Nem por Sombras, Mútuo Consentimento, Lágrima, o mínimo Eu Depois Inventei o Resto, sem deixar de mencionar a sua participação no histórico Cartucho (de 1976, com três grande poetas: Joaquim Manuel Magalhães, João Miguel Fernandes Jorge e A. Franco Alexandre), inesquecível. Leiam os seus poemas, um relâmpago de harmonia: “Mantêm-se as causas iguais /das pequenas alegrias, longe da alegria, a rotina /dos sorrisos vem de nenhum vício. Este abandono / custa.”
Jesus, que era judeu, festejava a Páscoa, ‘Pessach’, ‘a passagem’. O simbolismo da palavra está hoje ligado a outras ‘passagens’, como a da travessia do deserto em busca da libertação (preferível à original – a passagem do anjo da morte no Egito), de redenção e de dignidade. Explicar isto, e também o sentido da Páscoa cristã (a ressurreição e o triunfo sobre a morte), é hoje em dia um trabalho inglório e destinado ao fracasso, no meio de coelhos, ovos de chocolate, viagens de finalistas a Torremolinos e passeios merecidos ao Algarve. Seja como for, devemos preparar-nos constantemente para abandonar o Egito e atravessar o deserto. O simbolismo da Páscoa, por ser mais profundo que o do Natal (transformado em “festa da família” e jornada de consumo – muito conveniente), desapareceu mais depressa nas sociedades que temem os “símbolos” e acham os “rituais” um momento desprezível, e é hoje assinalado como uma memória histórica da morte de Jesus e da sua condenação, mais do que uma renovação nos nossos votos de liberdade. Mas alguma coisa deve restar no fundo do nosso coração. Boa Páscoa.
Como todos os anos há incidentes com adolescentes em Torremolinos, desvalorizei um pouco as notícias dos festejos desta primavera. Isto levou a que só tardiamente tivesse reparado nas declarações do presidente (que pedia que nem só matemática e português se ensinasse às crianças – mas também a ter maneiras em público) e da vice-presidente (que lamentava que as trapalhadas das crianças fossem olhadas com tanta severidade) de uma coisa chamada Confap, confederação das associações de pais e encarregados de educação. Ambos apareceram nos jornais e nas televisões a defender os responsáveis pelas selvajarias cometidas em Torremolinos. Os argumentos eram tão estapafúrdios que a Confap devia deixar de ser considerada “parceiro social” na área da educação. Em vez de cumprir as suas obrigações como agremiação de pais encarregados de educação (neste caso, dar um puxão de orelhas à rapaziada), defenderam os meninos, ai deles, que já não podem portar-se mal nas “viagens de finalistas”. Não é o mundo, apenas, que está parvinho. São estas pessoas que (também) o fazem ser assim.
Na recente cerimónia de entrega do Prémio Pessoa, ao fazer o elogio dos Estudos Clássicos, Frederico Lourenço resumiu tudo em quatro palavras: Maria Helena da Rocha Pereira. Duas semanas depois a morte levou consigo a grande inovadora, divulgadora, tradutora e historiadora da cultura clássica. Fui à estante buscar os seus Estudos de História da Cultura Clássica (publicado pela Gulbenkian, uma pérola), as suas traduções de Platão e de uma antologia, Hélade (Guimarães Editores), onde se revisitam Safo, Homero, Heraclito, Sófocles ou Eurípides (traduziu Medeia). Maria Helena da Rocha Pereira (1925-2017) foi a mãe de todos nós – os que alguma vez se apaixonaram pelas culturas grega e latina. Guiou-nos por entre ruínas, iluminando-as e protegendo-as – e isso é o maior elogio que lhe podemos fazer, porque tudo o resto (“um vulto da cultura”, “uma perda irreparável”, etc.) soa a nada. Mostrou-nos a beleza dessas ruínas que conhecia como ninguém; mostrou-nos a passagem do tempo sobre o legado dos Antigos. Mestre dedicada e incansável, os deuses recebem-na com amizade.
[Foto © Paulo Ricca, Público]
Londres, Madrid, depois Paris, Bruxelas, Nice, Londres outra vez, Berlim, Estocolmo. A cada ataque, “os europeus” vestem t-shirts alusivas exprimindo uma solidariedade acossada e que é já meio pateta. ‘Je suis Paris.’ ‘Jag är Stockholm.’ ‘Ich bin Dortmund.’ Somos todos e de todo o lado. Podíamos acrescentar Mar Gigis e Alexandria, no Egito. Podíamos acrescentar Síria e Sudão. A Crimeia e a fronteira ucraniana. A Europa vive uma crise invisível a que fecha os olhos sob o manto agradável da linguagem: “não ceder ao medo”, fazer a vida de todos os dias, contar os mortos – os nossos, aqui; os nossos, noutro lado. 100 mil cristãos perseguidos são mortos por ano em todo o mundo (sem que o Papa, enfraquecido, seja realmente severo em relação ao assunto) e os judeus começam a abandonar de novo a Europa com receio do fundamentalismo, instalado sobretudo em França e na Bélgica. A Europa do bem-estar absoluto acreditou que estava a salvo, cultivando o laicismo e a ilusão de superioridade e de arrogância sobre os territórios bárbaros, que só teriam de aceitar “o nosso modo de vida”. Tempos incertos.
O QUE NOS SEPARA DA LITERATURA
Enquanto falam de literatura, a grande puta,
os professores falam uma língua invisível,
cerrada em versos que os antepassados
deviam ter escrito – e não escreveram.
Labirintos, aquários, metáforas, ventanias,
varandas nas colinas, tudo roubam como
assaltantes sem método, nem glória, nem
música, nem conhecimento da beleza que
incendeia os bosques e ilumina os caminhos.
Enquanto falam de literatura, a grande puta,
a luz negra tudo apaga, tudo esconde e suja.
Mata-nos muito, a literatura – de tédio
ou de medo, ou de um horror que aprofunda
o que nos separa: isto e a vida, sempre.
Tal como o PCP não condenou a invasão da Checoslováquia em 1968, com o argumento de que os tanques da URSS se tinham deslocado a Praga para defender o socialismo contra hordas de estudantes reacionários, também aquele extravagante grupo espanhol, o Podemos, se recusou a condenar o “golpe constitucional” venezuelano que deu em bronca. Lembram-se os leitores? O Supremo Tribunal decidiu revogar as competências do parlamento eleito e chamá-las a si; o mundo inteiro protestou; o Podemos não (aliás, pulou de contente). Mas não é bem isso que interessa, e sim a falta absoluta e notória de indignados nacionais para protestarem contra os sucessivos atropelos da ditadura venezuelana, que promete despedir funcionários que se saiba serem “da oposição”, que ordena prisões arbitrárias e que multiplica a pobreza do país a cada dia que passa. O chavismo – “o socialismo do século XXI” – foi fabricado, armado e caucionado por ideólogos europeus, namoradinhos da “revolução permanente”. Agora, transformou-se numa seita tresloucada e estapafúrdia que a esquerda desculpa com brandura, encolhendo os ombros.
As viagens de finalistas a Espanha são sempre um acontecimento. A extraordinária mistura de duas palavras, ‘Torremolinos’ e ‘estudantes’ evoca as coisas do costume: cinco ou seis dias de álcool (‘bar aberto’), adolescentes a praticarem coisas de adolescentes, grandes farras na piscina – paremos por aqui. Proponho mesmo que, na Páscoa, a imprensa reserve um espaço para excessos cometidos em Torremolinos; e que os pais assistam de bancada a esses excessos. Duas observações: primeira, os cavalheiros de Torremolinos, quando alugam quartos a estudantes portugueses em férias, não podem esperar o comportamento de peregrinos à Terra Santa. Mas a segunda observação sempre quis fazê-la: as viagens de “finalistas” não deveriam fazer-se depois de os adolescentes “finalizarem” as aulas e concluírem os exames, “finalizando” o curso? Sim, todos nós sabemos o que significam ‘spring break’ e “hormonas aos saltos”, mas esta invasão regular de Espanha e os correspondentes relatos de vandalismo são um péssimo bilhete de identidade para “finalistas” da “geração mais bem preparada de sempre”.
[Da coluna do CM]
Para entender o mundo (Europa incluído) é necessário sair da Europa. Não é o que fazem os europeus, encarcerados pelos seus problemas do euro, do “estado social” e das crises parlamentares. Em Alexandria, no Egito, por exemplo, fez-se a primeira das grandes traduções da Bíblia, há dois mil anos. Foi aí que ontem um bombista suicida se fez explodir matando 11 pessoas na igreja de São Marcos. Horas antes, um atentado na igreja de Mar Gigis, a menos de 100 quilómetros do Cairo, provocava 25 mortos. Ao todo, cerca de 120 feridos. Dizimar cristãos, no Egito ou no Quénia e na Somália, na Síria ou na Índia, parece ser um novo objetivo do terrorismo, em nome do Islão radical. Nesses lugares, os cristãos são minoria; a Europa cristã, que dizimou judeus no passado e entretanto já deixou de ser cristã para agora não ser nada, não pode responder aos apelos dessas minorias. É a mesma Europa que chora os seus mortos em Estocolmo, em Paris, em Londres, em Bruxelas, é certo – mas sem entender que chegou o tempo de agir para que valha alguma coisa ser vivo na Terra, o lugar a que merecemos pertencer.
[Da coluna do CM]
A meio da crítica a uma nova biografia de Raymond Chandler, o autor escandaliza-se porque o livro não menciona a “fastidiosa misoginia bem como a tendência sexista” de Chandler e do detetive Philip Marlowe, a sua grande criação (interpretada no cinema por Bogart ou Mitchum). Há semanas deparei, na imprensa americana, com uma polémica sobre se Jane Austen, a de Orgulho e Preconceito, teria ou não sido sexista e racista (por causa de uns tarados da alt-right que elegeram Austen como a madrinha dos “casamentos conservadores”). Já não falo do racismo imputado a Mark Twain ou da acusação de “inimigo do planeta e dos animais” a Herman Melville por causa da baleia de Moby Dick. Camille Paglia contou uma vez a história de um aluno que se recusava a ler autores como Homero, Eurípedes e Virgílio com o argumento de que se tratava de uma mesma classe de autores – brancos, machistas, sexistas e racistas –, apesar de ser estudante de... letras clássicas. Uma classe extravagante de críticos e patetas tomou conta das velhas humanidades e está a passar a pente fino toda a história da cultura ocidental, olhando-a através das lentes de hoje. O grão da censura moral está a germinar como uma ameaça.
[Da coluna do CM]
Na década de 80, a canadiana Louise Poissant publicou ‘O Medo do Grande Amor’, um ensaio sobre aquilo que o título diz – num mundo cercado pelo efémero, o receio de perder o grande amor levava as pessoas a não quererem viver nenhum. Não foi sempre assim, pelo menos na literatura. Tomás Gonzaga (1744-1810), um dos grandes poetas da nossa língua dedicou parte da sua obra a Marília de Dirceu, mulher inventada e ideal, que teria vivido em Ouro Preto (onde ele, que nasceu no Porto, viveu antes de ser exilado para a Ilha de Moçambique, onde morreria). Francesco Petrarca (1304-1374), o grande criador da arte do soneto (a obra está traduzida por Vasco Graça Moura) inspirou-se em Laura, uma jovem idealizada a quem dedicou o seu cancioneiro (as Rimas), alguns dos mais belos sonetos nas línguas latinas. Não apenas idealizada e irreal: ela existiu mesmo. Segundo os biógrafos de Petrarca, o poeta viu-a pela primeira vez (raras vezes se encontraram) na manhã de 6 de abril de 1327, na catedral de Avinhão. Há exatamente 690 anos. Ainda hoje festejamos a sua existência irreal na poesia.
[Da coluna do CM]
Fernando Campos (1924-2017) apaixonou-se pelo ‘Itinerário de Terra Santa’, de Frei Pantaleão de Aveiro – essa foi a base de ‘A Casa do Pó’ (1986), um romance monumental que reabilitou o romance histórico entre nós – ou o reinventou, se quisermos dar crédito a novelas do século XIX português. Mas o mais misterioso de tudo era o nome do autor: um desconhecido professor de Grego, Latim e Português no ensino secundário que, aos 62 anos, publicava o seu primeiro romance. Foi este homem que, em poucos anos, escreveria sobre mitos, figuras e períodos da história portuguesa, como D. João II (‘A Esmeralda Partida’), Damião de Góis (‘A Sala das Perguntas’), D. Francisco Manuel de Melo (‘O Prisioneiro da Torre Velha’) ou Gonçalo Mendes da Maia (o belo e magnífico ‘O Cavaleiro da Águia’). Ninguém conseguiu escrever romance histórico como ele, unindo Língua, História e curiosidade, sem querer coincidir as opiniões contemporâneas com a época que tratava. Campos, que morreu este fim de semana, era um homem humilde e curioso – e um amabilíssimo cavalheiro. A sua voz suave era um sinal de grandeza.
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