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Wyatt Earp (o xerife verdadeiro, não o personagem imortalizado por Burt Lancaster) dizia que Doc Holliday era o atirador mais veloz e mais mortal que jamais conhecera – talvez por isso tenha sido interpretado por Kirk Douglas na versão de John Sturges. Espero que se lembrem de Douglas. No ano em que nasci, ele interpretava o papel de um cowboy (em Fuga sem Rumo, Lonely Are the Brave) cheio de intensidade, melancolia e dramatismo, ao lado de Gena Rowlands, uma das suas grandes companhias no cinema, ao lado de Barbra Stanwick ou da amiga Lauren Bacall. Western? Homem sem Rumo, de King Vidor – reparem no olhar: honra, perdição, um físico invejável. Policial? A História de um Detetive, de William Wyler: traição, drama, perda. Vejam-no em O Grande Ídolo (Champion), em Spartacus (de Kubrick), nos numerosos filmes de guerra – poucos atores sublinham em conjunto a força física, a originalidade, a inteligência e a sobriedade na interpretação como Kirk Douglas. Mais do que uma força da natureza – de quem hoje festejamos o seu centenário – é uma das memórias do próprio cinema. Um atirador veloz e letal.
[Da coluna do CM]
Vai uma grande barulheira em redor dos resultados do inquérito PISA 2015. O essencial é isto: os resultados melhoraram para os estudantes portugueses; tamanha revelação deixa esquerda e direita a batalhar sobre quem tem mais responsabilidade nessa melhoria, e transforma a leitura dos dados numa encenação ideológica sobre o papel da escola, do ensino, dos exames e dos vários ministros que passaram pela Av. 5 de Outubro, onde está instalado o monstro. O monstro é o Ministério da Educação. A ninguém há de passar pela cabeça que melhores resultados se conseguem com menos trabalho, menos autonomia das escolas e dos professores, menos dedicação, menos exigência e menos desperdício no sistema educativo. O monstro – e o complexo de pedagogos, técnicos e pessoas que há muitos anos não põem o pé numa escola e escrevem textos ilegíveis – nunca aceitou como boas nem a experiência nem as recomendações de professores. Como resposta, prepara-se para manejar as estatísticas a fim de acabar com as retenções, em vez de insistir na preparação dos alunos para enfrentar o destino e escolherem o seu caminho.
Passam quatro anos sobre a morte de Joaquim Benite (1943-2012), jornalista, crítico e encenador de teatro, fundador do Grupo de Campolide e, mais tarde, da Companhia de Teatro de Almada – e, como o recordo comovidamente, grande recriador de Shakespeare. A última das suas encenações foi justamente Timão de Atenas, que já tinha encenado em Mérida, em 2008 (dois anos antes de Troilo e Créssida) – e que foi estreada pela Companhia 16 dias depois da sua morte, a 20 de dezembro de 2012, uma homenagem maravilhosa a um homem encantador, uma grande voz (no sentido literal) do nosso teatro, um encenador corajoso de O’Neill, Gogol, Brecht, Raul Brandão ou Mozart (inesquecível, A Clemência de Tito), Marivaux e Molière, Pushkin e Gil Vicente ou António José da Silva, Saramago e Thomas Bernhard. A obra completa da Companhia de Teatro de Almada (as suas encenações, a dos convidados, a do seu grande Festival) continua hoje pela mão de Rodrigo Francisco, mas não cessa de evocar a presença tutelar de um homem generoso e sonhador, capaz de arriscar quase tudo pelo teatro. Com uma voz quase sobrenatural.
[Da coluna do CM]
Em português, gentrificação é a palavra usada para significar gentrification, do inglês (gentry), que vem do francês arcaico (genterise) – significa a ocupação do centro das cidades por gente mais ou menos rica. O seu uso pode irritar-nos; é um pouco como se escrevêssemos roque em vez de rock. Na rádio, sobretudo, ouvem-se coisas desta novilíngua – mas admito que nos gabinetes da burocracia há ainda mais abundância de expressões, que convinha registar. Outro dia ouvi dizer que era preciso fazer um debate sobre a genderificação (do inglês gender, género), uma vez que há cargos que estão muito genderificados. Semanas antes escutei uma senhora exigir mais empoderamento (empowerment) para as mulheres e que ela própria tinha contribuído para empoderar mulheres num país de que já não me recordo da América Latina, e o presidente da Câmara de Valongo publicou um livro sobre política onde insiste na necessidade de empoderar os cidadãos do concelho. Depois, há os cidadãos e as cidadãs que dizem aitem em vez de item (um advérbio latino, igualmente) e que já evito corrigir, embora apeteça chicoteá-los. Pessoas que falam mal o português decidiram falar em portinglês. Mas pensam mal em ambas as línguas.
Conheci Ruy Cinatti (1915-1986) num sábado de verão, em Lisboa – uma figura maravilhosa, palradora, exuberante e triste, com uma cruz ao peito, uma sacola de pano onde viviam papéis amarrotados e poemas que distribuía de vez em quando. A maior parte deles sobre Timor (estávamos já nos anos da ocupação indonésia). E Deus. Falámos de ambas as coisas. E de África, Portugal – e do mar. Mais tarde eu veria esse seu mar, em Baucau, Tutuala, Loré, Díli. Mas também o de São Tomé, outra da suas paixões. Encontrei-o mais vezes, a cruz ao peito, mais triste, e o resumo destas conversas era o título do seu primeiro livro, Nós Não Somos deste Mundo (de 1941). A sua poesia acaba de ser publicada (pela Assírio & Alvim) num livro volume com mais de mil páginas, organizadas pelo minucioso e apaixonado Luís Manuel Gaspar (com Joana Matos Frias e o Padre Peter Stilwell) – a poesia inédita e póstuma sairá depois num segundo volume. Cinatti recorda-nos todas as nossas heranças: cristã, oriental, africana, índica, atlântica, clara e escura, tempestuosa ou comovida, como a manhã imensa de que falam os seus poemas. Bem vindo sejas.
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