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1. Vai uma grande agitação pela direita – com uma pequena nódoa de escândalo – com um dos últimos discursos de António Costa. Do género: «Vejam, vejam, ele citou Marx.» De facto, Costa, ou alguém por ele, enfiou duas frases da Crítica ao Programa de Gotha numa intervenção parlamentar. Não compreendo a agitação – Costa foi sempre marxista (Marx é um saco de gatos quando o descobrimos nos discursos mais inflamados), citar Marx é talvez uma inevitabilidade. Esperar o contrário seria como pedir a Jeremy Corbyn que cantasse o «God Save the Queen» depois de passar uma vida inteira a declarar-se republicano.
Escândalo é ninguém se recordar de um dirigente político à direita (ministro, deputado, mestre de obras) ter alguma vez citado uma ideia fundadora, um autor conservador, um princípio ideológico – e ter fugido sempre da «discussão ideológica», com medinho de ser apanhado, desde os tempos em que até o CDS era socialista.
Aprendam. À esquerda, a ideologia é boa; à direita é uma excrescência, e fundamentalmente por culpa dos analfabetos que lá andam.
2. Grave, grave mesmo, é na direita partidária ninguém se ter insurgido com algum pingo de dignidade quando o primeiro-ministro diz que «quem cumprir as suas obrigações nada tem a temer ou a recear», para justificar a vigilância, extra-judicial e determinada pelo mais completo sistema de vigilância de que entre nós há memória, das contas bancárias com mais de 50 mil euros. Ninguém cita Brecht (vale tudo, hélas!) ou introduz um módico de ideologia nesta questão. Pelo contrário, vão ter medinho de dizer que o combate à evasão fiscal não pode abrir portas a uma devassa extraordinária e total da vida de cidadãos sobre os quais não há suspeita.
3. A paixão doentia pelo Estado é um caso patológico da politologia portuguesa, para quem os direitos civis são um óbice, um obstáculo e – crescentemente – uma ninharia que põe em causa os interesses absolutos e intocáveis do Estado. Uma sociedade civil fraca, sem opinião, invejosa, ressentida, pateta, rendida ao argumento de «quem não deve não teme», aceita tudo – o poder discricionário do Estado, a inversão do ónus da prova, a violação da privacidade, sucessivos e injustificados agravamentos fiscais, a má gestão da coisa pública, o assalto aos rendimentos em nome dos interesses de um Estado mal gerido e gastador, investimentos mal estudados e mal realizados, tudo. E vota em conformidade, vota por simpatia, porque é mais fácil, porque é mais facilmente convencida e ludibriada – e porque quer ser convencida e ludibriada. Para esta sociedade civil delapidada e privada de si mesma, ressentida e silenciosa, é normal que os constitucionalistas forneçam pareceres à medida do Estado. Nada a prende à Constituição, que é uma espécie de disco voador.
4. Em Janeiro de 2010, algumas almas vastamente iluminadas do PS queriam avançar com uma lei para divulgar os rendimentos brutos de todos os contribuintes – «sem o imposto final pago, sem as despesas reembolsáveis (despesas de saúde, educação, etc.), mas com o rendimento bruto anual declarado». E, «evidentemente, com a identificação do contribuinte». Isto aconteceu depois de, em 2009, a «violação de dados pessoais pelo Estado ter produzido 745 processos».
Segundo o então deputado Strecht Ribeiro, a medida teria um efeito pedagógico (a lei «levanta [o sigilo fiscal] o suficiente para que cada um de nós possa ter consciência que a comunidade nos olha»). Ou seja, a ideia era mesmo a de que cada um saiba que está a ser vigiado pelo vizinho, que procederia as denúncias da ordem. Tudo segundo o manual. Esta mania de nos ensinar boas maneiras a toda a hora tem consequências dramáticas no estilo e na gramática; repesco as suas declarações da época (2 de Fevereiro de 2010): «Parece-nos razoável que, sendo nós um imenso condomínio de 10 milhões, cada um de nós saiba a 'permilagem' de cada um dos outros para sabermos se há um efectivo contributo que corresponda àquilo que é o bocado que temos neste imenso latifúndio.» Esta ideia de que somos um condomínio de dez milhões é, senão verdadeiramente peregrina, pelo menos desenhada à imagem da classe parvenue na política; um condomínio, estão a ver? E «permilagem»; nada de quilometragem.
Não é novo. Em Junho de 2007, o presidente Jorge Sampaio (em nome da «justiça e moralidade», vem nos jornais da época) fez uma campanha nacional pela inversão do ónus da prova em matéria fiscal, sem se saber se os cidadãos que tinham de «passar a fazer prova da proveniência lícita dos seus bens» eram aqueles que já estavam sob investigação da máquina judicial ou aqueles que o Estado não consegue investigar, transformando todos os cidadãos em personagens do Big Brother televisivo.
5. Faz falta a presença de pessoas como José Medeiros Ferreira. Na altura, no blog Córtex, Medeiros escrevia contra essa ideia de «quem não deve não teme»: «O Google não terá tido problemas com as autoridades portuguesas para colocar em funcionamento o serviço Street View que mostra com detalhe ruas, quintais carros e matrículas. Mas já na Alemanha, e no Japão, a coisa não tem sido fácil. Aconteceu-lhes alguma coisa desagradável no passado? Vejam lá se aprendem connosco, cidade aberta, que também queremos ver as vossas caras e casas mesmo desfocadas! Quem não deve não teme, etc..»
Há, naturalmente, quem pense que não estamos «diante da ameaça de um novo tipo de vigilância», uma vez que se trata apenas de agilizar procedimentos por parte do Estado, «o que permite acesso a uma série de dados» que, «naturalmente» [espaço para gargalhadas] «não serão cruzados». E tudo para benefício do Estado e da sua máquina, pessoas que não elegemos mas que sabem tudo sobre nós, velando pela nossa instrução, pela nossa moralidade e pelos nossos proventos.
Este debate é oportuno; os sinais que ele fornece são letais, mesmo que – num caso ou noutro – possam ser injustos para alguns sectores da Administração, ou mesmo que as pessoas dêem pouco valor à sua liberdade e à sua «reserva individual»; encantados com a «modernização», os portugueses desinteressam-se por todo o tipo de quebras de privacidade, da videovigilância nas auto-estradas à monitorização da vida familiar. O argumento mais imbecil de todos: quem não deve, não teme – a «reserva individual» é um assunto menor diante da necessidade de «reforçar o colectivo» ou de «melhorar a máquina do Estado».
Num longínquo texto dos anos oitenta, António Barreto chamava a atenção para o ambiente de liberdade em que vivíamos – liberdade de imprensa, de reunião, de associação, mobilidade, etc. Mas lamentava o facto de não existirem «liberais» (esqueçam a denominação, que a mim me parece justa), no sentido em que a liberdade não existe sem pessoas que se interessem por ela.
6. Não temam. Um dia seremos, todos, problemas a serem solucionados. Com acesso aos dados em bruto, que maravilha para vizinhos com gosto pela calhandrice, para padrecas e estalinezinhos, para processos de divórcio e famílias «transparentes», para a chantagem política e para a canalhice, para a malandragem e para os invejosos — está aqui a sua pátria. Legislem, mesmo contra a Constituição, a vida dos cidadãos e o bom-senso. Avante.
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