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Em 1924 a Europa vivia um período de desgaste e de astenia – entre a Guerra que terminara e a ameaça entorpecente de uma vida sem alegria. Isso explica, talvez, as palavras de André Breton, que nesse ano publica o ‘Manifesto Surrealista’ (houve um segundo, em 1930): uma homenagem à imaginação, ao maravilhamento e à dissolução “do conflito entre sonho e realidade”. Talvez o mundo não pudesse ser o mesmo depois desse reconhecimento – o de que a civilização estava a destruir a capacidade de imaginação e de sonho de gerações inteiras, e que era preciso deixar uma parte de nós à solta. Não interessa aquilo em que o surrealismo se tornou depois (uma espécie de saco de gatos em que a vaidade se misturava com a busca pelo poder do ‘movimento surrealista’), mas aquilo que libertou, na literatura e nas artes (Artaud, Mário Cesariny, Buñuel, Dali, Magritte, Cruzeiro Seixas, António Maria Lisboa, O’Neill) – e o seu apelo ao delírio, à invenção e à beleza. Quando a vida está ausente (“la vie est ailleurs’), como dizia Breton, resta-nos o amor louco (L’Amour Fou, o seu livro de 1937). Passam hoje 50 anos sobre a sua morte.
Da coluna no CM.
Em 2010, provavelmente sob o efeito de drogas, alguns deputados do PS elaboraram uma lei para divulgar os rendimentos e a identificação de todos os contribuintes. Isto aconteceu depois de, em 2009, a violação de dados pessoais pelo Estado ter suscitado 745 processos.
A lei, que era absurda e imoral, levantava o sigilo fiscal “para que cada um possa ter consciência que a comunidade nos olha”, ou seja, abrir a porta à coscuvilhice alheia, à calhandrice dos vizinhos, à quebra da privacidade. A lei não foi aprovada na altura, mas hoje vai ser possível que o Estado (onde há gente capaz de tudo), sem mandato judicial, sem ter de invocar qualquer suspeita, tenha acesso a contas bancárias com mais de 50 mil euros.
O argumento, dado pelo primeiro-ministro, é o de ‘quem não deve não teme’ (em vez de ‘quem deve, que tema’), princípio que já serviu no passado para justificar os piores regimes e abusos, e hoje serve a escalada da chantagem e da arbitrariedade. Dizem o governo e o Bloco de Esquerda que isto é um remédio para a evasão fiscal. Perguntava o Padre António Vieira: “E quem remedeia os remédios?”
Da coluna no CM.
Em primeiro lugar, as boas intenções: povoar o deserto do interior. Quem não quer fazê-lo, remediando décadas – século e meio – de despovoamento acelerado das províncias? Por isso, durante a tarde de sábado, as rádios rejubilaram com o anúncio de mais uma medida anunciada – o governo subsidia, através do IRC e da Segurança Social, o emprego no interior. Empresa de Mirandela, Moncorvo ou de Elvas que contrate pessoas que saem de Lisboa, Setúbal ou de Aveiro, tem um prémio (a medida foi anunciada no encontro do PS de Lisboa). De quanto é a redução de imposto ou de contribuição para a previdência? Ninguém cuidou de saber, porque o jornalismo não está preparado para perguntar. Basta a intenção – sobretudo a boa intenção, e especialmente quando as empresas de Mirandela, Moncorvo ou Elvas podem querer contratar pessoas de lá, uma vez que as taxas de desemprego não são apenas elevadas em Lisboa. [A medida foi já ensaiada na altura em que Elisa Ferreira era ministra do Planeamento, no início do século, prometendo uma redução do IRC às empresas que se fixassem no interior.] Por exemplo, este Verão, as auctoridades mandaram para o Algarve os médicos que estavam a fazer falta em Bragança. Aliás, podiam começar por perguntar por que razão, depois de abertos vários concursos, os hospitais e centros de saúde do interior fenecem de médicos, para citar Severim de Faria, um clássico.
1. Vai uma grande agitação pela direita – com uma pequena nódoa de escândalo – com um dos últimos discursos de António Costa. Do género: «Vejam, vejam, ele citou Marx.» De facto, Costa, ou alguém por ele, enfiou duas frases da Crítica ao Programa de Gotha numa intervenção parlamentar. Não compreendo a agitação – Costa foi sempre marxista (Marx é um saco de gatos quando o descobrimos nos discursos mais inflamados), citar Marx é talvez uma inevitabilidade. Esperar o contrário seria como pedir a Jeremy Corbyn que cantasse o «God Save the Queen» depois de passar uma vida inteira a declarar-se republicano.
Escândalo é ninguém se recordar de um dirigente político à direita (ministro, deputado, mestre de obras) ter alguma vez citado uma ideia fundadora, um autor conservador, um princípio ideológico – e ter fugido sempre da «discussão ideológica», com medinho de ser apanhado, desde os tempos em que até o CDS era socialista.
Aprendam. À esquerda, a ideologia é boa; à direita é uma excrescência, e fundamentalmente por culpa dos analfabetos que lá andam.
2. Grave, grave mesmo, é na direita partidária ninguém se ter insurgido com algum pingo de dignidade quando o primeiro-ministro diz que «quem cumprir as suas obrigações nada tem a temer ou a recear», para justificar a vigilância, extra-judicial e determinada pelo mais completo sistema de vigilância de que entre nós há memória, das contas bancárias com mais de 50 mil euros. Ninguém cita Brecht (vale tudo, hélas!) ou introduz um módico de ideologia nesta questão. Pelo contrário, vão ter medinho de dizer que o combate à evasão fiscal não pode abrir portas a uma devassa extraordinária e total da vida de cidadãos sobre os quais não há suspeita.
3. A paixão doentia pelo Estado é um caso patológico da politologia portuguesa, para quem os direitos civis são um óbice, um obstáculo e – crescentemente – uma ninharia que põe em causa os interesses absolutos e intocáveis do Estado. Uma sociedade civil fraca, sem opinião, invejosa, ressentida, pateta, rendida ao argumento de «quem não deve não teme», aceita tudo – o poder discricionário do Estado, a inversão do ónus da prova, a violação da privacidade, sucessivos e injustificados agravamentos fiscais, a má gestão da coisa pública, o assalto aos rendimentos em nome dos interesses de um Estado mal gerido e gastador, investimentos mal estudados e mal realizados, tudo. E vota em conformidade, vota por simpatia, porque é mais fácil, porque é mais facilmente convencida e ludibriada – e porque quer ser convencida e ludibriada. Para esta sociedade civil delapidada e privada de si mesma, ressentida e silenciosa, é normal que os constitucionalistas forneçam pareceres à medida do Estado. Nada a prende à Constituição, que é uma espécie de disco voador.
4. Em Janeiro de 2010, algumas almas vastamente iluminadas do PS queriam avançar com uma lei para divulgar os rendimentos brutos de todos os contribuintes – «sem o imposto final pago, sem as despesas reembolsáveis (despesas de saúde, educação, etc.), mas com o rendimento bruto anual declarado». E, «evidentemente, com a identificação do contribuinte». Isto aconteceu depois de, em 2009, a «violação de dados pessoais pelo Estado ter produzido 745 processos».
Segundo o então deputado Strecht Ribeiro, a medida teria um efeito pedagógico (a lei «levanta [o sigilo fiscal] o suficiente para que cada um de nós possa ter consciência que a comunidade nos olha»). Ou seja, a ideia era mesmo a de que cada um saiba que está a ser vigiado pelo vizinho, que procederia as denúncias da ordem. Tudo segundo o manual. Esta mania de nos ensinar boas maneiras a toda a hora tem consequências dramáticas no estilo e na gramática; repesco as suas declarações da época (2 de Fevereiro de 2010): «Parece-nos razoável que, sendo nós um imenso condomínio de 10 milhões, cada um de nós saiba a 'permilagem' de cada um dos outros para sabermos se há um efectivo contributo que corresponda àquilo que é o bocado que temos neste imenso latifúndio.» Esta ideia de que somos um condomínio de dez milhões é, senão verdadeiramente peregrina, pelo menos desenhada à imagem da classe parvenue na política; um condomínio, estão a ver? E «permilagem»; nada de quilometragem.
Não é novo. Em Junho de 2007, o presidente Jorge Sampaio (em nome da «justiça e moralidade», vem nos jornais da época) fez uma campanha nacional pela inversão do ónus da prova em matéria fiscal, sem se saber se os cidadãos que tinham de «passar a fazer prova da proveniência lícita dos seus bens» eram aqueles que já estavam sob investigação da máquina judicial ou aqueles que o Estado não consegue investigar, transformando todos os cidadãos em personagens do Big Brother televisivo.
5. Faz falta a presença de pessoas como José Medeiros Ferreira. Na altura, no blog Córtex, Medeiros escrevia contra essa ideia de «quem não deve não teme»: «O Google não terá tido problemas com as autoridades portuguesas para colocar em funcionamento o serviço Street View que mostra com detalhe ruas, quintais carros e matrículas. Mas já na Alemanha, e no Japão, a coisa não tem sido fácil. Aconteceu-lhes alguma coisa desagradável no passado? Vejam lá se aprendem connosco, cidade aberta, que também queremos ver as vossas caras e casas mesmo desfocadas! Quem não deve não teme, etc..»
Há, naturalmente, quem pense que não estamos «diante da ameaça de um novo tipo de vigilância», uma vez que se trata apenas de agilizar procedimentos por parte do Estado, «o que permite acesso a uma série de dados» que, «naturalmente» [espaço para gargalhadas] «não serão cruzados». E tudo para benefício do Estado e da sua máquina, pessoas que não elegemos mas que sabem tudo sobre nós, velando pela nossa instrução, pela nossa moralidade e pelos nossos proventos.
Este debate é oportuno; os sinais que ele fornece são letais, mesmo que – num caso ou noutro – possam ser injustos para alguns sectores da Administração, ou mesmo que as pessoas dêem pouco valor à sua liberdade e à sua «reserva individual»; encantados com a «modernização», os portugueses desinteressam-se por todo o tipo de quebras de privacidade, da videovigilância nas auto-estradas à monitorização da vida familiar. O argumento mais imbecil de todos: quem não deve, não teme – a «reserva individual» é um assunto menor diante da necessidade de «reforçar o colectivo» ou de «melhorar a máquina do Estado».
Num longínquo texto dos anos oitenta, António Barreto chamava a atenção para o ambiente de liberdade em que vivíamos – liberdade de imprensa, de reunião, de associação, mobilidade, etc. Mas lamentava o facto de não existirem «liberais» (esqueçam a denominação, que a mim me parece justa), no sentido em que a liberdade não existe sem pessoas que se interessem por ela.
6. Não temam. Um dia seremos, todos, problemas a serem solucionados. Com acesso aos dados em bruto, que maravilha para vizinhos com gosto pela calhandrice, para padrecas e estalinezinhos, para processos de divórcio e famílias «transparentes», para a chantagem política e para a canalhice, para a malandragem e para os invejosos — está aqui a sua pátria. Legislem, mesmo contra a Constituição, a vida dos cidadãos e o bom-senso. Avante.
Ponto por ponto, concordância com todos os parágrafos da crónica de Luís Aguiar-Conraria: «Desculpem a pergunta, mas está tudo doido?»
Na próxima quinta-feira, 22, às 18h30, no Centro Cultural de Belém (Sala Sophia de Mello Breyner) — estão todos convidados — lançamento do primeiro volume (Os Quatro Evangelhos) da nova tradução da Bíblia, por Frederico Lourenço.
Apresentação de Tolentino Mendonça, Miguel Tamen e Pedro Mexia.
Com a publicação do presente livro – contendo os Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João – dá-se início a uma coleção em seis volumes que disponibilizará, pela primeira vez em língua portuguesa, a tradução integral da Bíblia Grega (Antigo e Novo Testamentos). Antes de descrever sinteticamente no que consiste a Bíblia Grega e quais são as diferenças que, no Antigo Testamento, ela apresenta relativamente à Bíblia Hebraica, convém desde já esclarecer de forma muito clara as línguas em que os livros da Bíblia foram originalmente escritos.
Em grego foram originalmente escritos todos os 27 livros que integram o Novo Testamento, assim como sete livros do Antigo Testamento que encontramos nas Bíblias organizadas segundo o cânone católico: Tobite, Judite, Sabedoria de Salomão, Eclesiástico (Ben Sira), Baruc, 1º Livro dos Macabeus, 2º Livro dos Macabeus. Os restantes 39 livros do Antigo Testamento do cânone católico foram originalmente escritos em hebraico (com algumas frases desgarradas em aramaico nos livros de Génesis, Jeremias e Esdras, assim como uma secção mais relevante nesta língua no livro de Daniel).
O aspeto em que as diferentes versões da Bíblia mais divergem é no número de livros que compõem o Antigo Testamento. A Bíblia Hebraica propriamente dita (que, por razões óbvias, não tem Novo Testamento) contém 24 livros. Divididos e subdivididos de outra maneira, estes mesmos 24 livros em hebraico constituem os 39 livros do Antigo Testamento segundo o cânone protestante. Por outro lado, o Antigo Testamento segundo o cânone católico conta 46 livros (juntando aos 39 livros, originalmente escritos em hebraico, sete livros, originalmente escritos em grego). No entanto, a Bíblia Grega é ainda mais extensa do que a católica, uma vez que conta, no total, 53 livros: aos 46 livros do cânone católico juntam-se mais sete livros.
Em suma: a presente tradução dará a ler os 27 livros do Novo Testamento e os 53 livros do Antigo Testamento grego. Será, assim, a Bíblia mais completa que existe em português.
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A Bíblia Grega terá nascido em Alexandria (Egipto), no século III antes de Cristo, com a adaptação para grego do Pentateuco (Torah). Segundo uma epístola helenística, preservada em vários manuscritos e alegadamente escrita por um tal de Arísteas a seu irmão, Filócrates (carta depois citada por Fílon de Alexandria, Flávio Josefo, Santo Agostinho, entre outros), a autoria da primeira redação grega do Pentateuco deve ser atribuída a 72 estudiosos judeus (daí a tradicional denominação Septuaginta ou Bíblia dos Setenta), reunidos no Egito para esse fim pelo rei Ptolemeu Filadelfo. Na verdade, este primeiro passo na constituição da Bíblia Grega reflete sobretudo a crescente helenização da cultura judaica da Diáspora no período helenístico (quando um número cada vez maior de judeus helenizados começou a precisar de ler as suas Escrituras naquela que era, para todos os efeitos, a sua língua – o grego).
Durante os séculos seguintes, a escritura judaica em versão helénica foi crescendo: aos Livros da Lei (Génesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronómio) juntaram-se os restantes 34 livros que são comuns à Bíblia Hebraica (onde esses livros se encontram organizados de outra maneira, como já referimos, já que a Bíblia Hebraica só tem 24 livros), complementados, em fase posterior, por livros que nos chegaram em língua grega por uma de duas razões: ou porque nela foram originalmente redigidos; ou porque desses escritos se perderam as versões hebraicas, pelo que, hoje, só os podemos conhecer em grego. Note-se, ainda, que livros que fazem parte da Bíblia Hebraica – como Ester e Daniel – existem na Bíblia Grega em versões bem mais completas, com material suplementar de que não conhecemos qualquer versão em hebraico.
[Da “Introdução”, de Frederico Lourenço]
O futebol não é bem um desporto – é um jogo de guerra interpretado (preferencialmente) por artistas capazes de nos comover com uma jogada, um golo, um drible, uma defesa ou um “posicionamento” (escrevo “posicionamento” porque há no relvado uma certa relação com o tabuleiro de xadrez). Por isso tem os seus deuses, como na tragédia grega – e eles podem ser ao mesmo tempo justos e cruéis. Veja-se o caso de Jorge Jesus. Depois de um bom jogo em Madrid, o treinador não resistiu ao apelo da vaidade humana, sempre tão fácil: os seus batalhões são os melhores, sim, porque ele é um bom general – e um bom general é que conta; os soldados apenas executam as instruções do general. No domingo, os deuses vingaram-se; são muito ciosos: na batalha diante de um exército comandado por um homem humilde, tímido (até ligeiramente tristonho, como é o caso de Nuno Capucho) e discreto, impuseram-lhe uma derrota amarga como castigo. O futebol dá lições de vida quando menos se espera, como reconhecia Albert Camus: “Tudo o que aprendi sobre a natureza humana, aprendi-o com o futebol.” A natureza humana, precisamente.
V.S. Naipaul, prémio Nobel em 2001, inglês nascido em Trinidad e Tobago (1932), de família indiana, vem esta semana e Portugal (ao Folio, festival literário de Óbidos); é uma personagem a ter em conta. Durante anos foi vituperado (palavra que abrange todos os insultos que teve de suportar) por antecipar, em livros e entrevistas, o planisfério do terror islamita e as ameaças que ele representava para a liberdade, passo a passo, degrau a degrau, cedência a cedência. As bandas do ‘politicamente correto’, que em Inglaterra dominam o espaço público de uma forma totalitária e (como sempre) agressiva, reagiram contra V.S. Naipaul – primeiro, acusam-no de ter “mau feitio” (um belo crime); depois, de ser racista e de, apesar do seu gene “multicultural” (ou de ter sofrido na pele o racismo), defender o colonialismo. Faltou pouco para lhe chamarem “perigoso sionista”, mas a cada livro seu nas montras seguia-se uma campanha negra para sublinhar o seu “preconceito anti-islâmico” num país onde as mesquitas radicais pregavam o ódio mais absoluto com a proteção das autoridades. Sim, ele merece ser ouvido (e lido) – é um homem de ‘mau feitio’.
O melhor é não entrar em pormenores (nem há lugar a queixinhas). Foi um resultado excelente para quem contemporiza com talento desperdiçado e oportunidades perdidas. Felizmente que toda a minha família tem o mesmo segundo clube, que está na perseguição ao quarto lugar.
Comparando o léxico de Mau Tempo no Canal, de 1944, com o romance de um autor contemporâneo, percebe-se que desapareceu cerca de 20% do léxico. A língua portuguesa está confinada ao seu ersatz, uma espécie de substituto ligeiro, uma língua de anúncios de aeroporto, de fala de supermercado. A escola é muito responsável por esse desastre, preferindo a pobreza do léxico, desculpabilizando os erros, parlapatando – esquecendo que quem fala e escreve mal, pensa mal. Mas o mais grave no comportamento da escola é o seu desejo de agradar à vulgaridade, tanto à da televisão como à da agenda dos políticos e estrelas de rádio e televisão. Desvalorizando o ensino da história, deprimindo o estudo da filosofia, procurando – em nome da leitura de autores contemporâneos – fazer esquecer os tesouros da língua. Esta visão é catastrofista? Provavelmente, porque estamos diante de uma catástrofe comandada por empresários ignorantes, políticos sem rectidão, líderes carregados de ódio ao passado, ‘pedagogistas’ que repetem erros sobre erros na televisão e na internet. Hoje começa um novo ano escolar, se vos escapou a coisa.
Vi o jogo de sábado no Porto e, apesar dos deslizes habituais (da arbitragem à «falta de eficácia do ataque»), um jogo que termina com 3-0 vale sempre a pena, sobretudo quando A Bola diz que o 2-1 do Benfica é quase goleada. Mas não fiquei convencido. Hoje, frente ao Copenhaga, tentei várias vezes perceber o que andavam pessoas como Layún e Corona a fazer «no miolo do terreno» quando os dinamarqueses estava a jogar com dez e com as alas desprotegidas. Como Brahimi entrou (e depois Jota), ainda pensei num retrocesso para o jogo com extremos (no futebol pode-se ser extremista), mas de repente apareceram-me Layún, Brahimi, Diogo Jota, André Silva e Depoître no meio, diante do autocarro nórdico, a amontoarem-se – até que de repente terminou o jogo. Foi esta a história do jogo, aliás.
Podemos nós confiar num ministro das Finanças? Estive a ver a lista, desde o Sr. Visconde de Sá da Bandeira até Mário Centeno, passando por Afonso Costa ou Salazar – e tenho dúvidas. Entretanto conheci a biografia, a fotografia e os feitos da atual ministra das Finanças da Letónia (teve a pasta da Economia entre 2014 e 2016), Dana Reizniece-Ozola, 35 anos (nascida em 1981, tremam de inveja). Pois o que é muito importante na biografia de Dana (tratemo-la assim) é a sua paixão pelo xadrez, a que atribui inúmeras virtudes, como evitar “perder o sentido da realidade” ou “flutuar contra a lei da gravidade” (Dana também se especializou em gestão aeroespacial na NASA ) coisas que – aqui para nós – foram e são características da maior parte dos nossos ministros das Finanças. A surpresa foi quando, na semana passada, nas Olimpíadas de Xadrez, em Baku, no Azerbaijão, Dana derrotou a campeã do mundo, a chinesa Hou Yifan. Dizem-me que a taxa de crescimento da Letónia é de 4%. Acredito. Quando olho para os nossos financistas e fiscalistas não estou a vê-los a ombrear com esta mulher. Um tabuleiro para Centeno, já.
Pode o juiz Carlos Alexandre dar uma entrevista? Nada o impede. Fez bem em ter dado essa entrevista? Não creio. Abriu um caminho cheio de precipícios, de onde sairá com dificuldade. No entanto, há outro aspecto importante em torno da entrevista que ainda ontem agitava colunistas, comentadores e putativos alvos de Carlos Alexandre: a onda de virgens (também elas putativas, evidentemente) que apareceram a defender o silêncio absoluto dos agentes da Justiça, que devem cumprir as suas obrigações de vestais e, ao mesmo tempo, prestar-se a ser o alvo imóvel onde todos os bertoldinhos podem praticar o seu campeonato de tiro. Figuras muito militantes da arte da indignação julgam ter engolido um garfo e defendem agora que a honra da justiça está perdida. Onde anteontem ouvíamos ditirambos a juízes palradores e excêntricos que decidiam “em certo sentido” e exerciam o seu “direito à palavra”, ontem passámos a escutar apelos à decência e ao silêncio total, forrado a chumbo. Moral de uma tia velha que, lá fundo, aprecia a oligarquia com os seus forra-gaitas e porta-estandartes, desde que seja conveniente e nos faça jeito.
Em 2009, como editor, publiquei um livro intitulado As Vantagens do Pessimismo, de Roger Scruton. Alguns amigos não ficaram agradados com a ideia (as teses de Scruton foram confirmadas pelo tempo – parte delas eram dedicadas à UE, uma das construções do optimismo contemporâneo); fui acusado de fomentar, através desse livro, a falta de auto-estima nacional. Ora, antes e depois do campeonato europeu de futebol, nenhuma palavra esteve tão na ordem do dia como essa: optimismo. Devemos ser optimistas. O presidente da República usou a palavra várias vezes e, ao longo destes seis meses, apelou à nossa auto-estima, acrescentando que devemos unir-nos. Isso levanta um problema: o que significa “estarmos unidos”? Pensarmos todos o mesmo? Rirmos todos das mesmas piadas? Pensarmos que todos temos direito ao Euromilhões? Abdicarmos de dizermos o que pensamos, apenas para pensarmos o que os “otimistas” pensam? Fingirmos de patetas alegres? Sim, o PR faz o seu papel: o horizonte é luminoso, nunca mais haverá trovoadas. Mas, caro Presidente, e quando a euforia se esgotar? Enforcamos os pessimistas, claro.
Na noite de anteontem o meu coração estava em Buenos Aires, no Luna Park (a sala onde atuaram Sinatra, Ray Charles, B.B. King, ou os Deep Purple) – era a finalíssima do Festival Mundial de Tango (vinte países, milhares de dançarinos). Vi as imagens logo de manhã, com a diferença horária: que beleza, a dos heróis do baile, o casal Cristian Palomo e Melisa Sacchi, milongueiros fanáticos a dançar ‘Quejas de Bandonéon’, um tango de Juan de Diós Filiberto (o autor de ‘Caminito’), de 1918 (tenho a versão maravilhosa da Orquesta Aníbal Troilo, de 1952, com arranjo de Piazzola), improvisando como o faziam em Banfield, arredores da capital para o sul. Ontem foi a final na categoria de “salão”, cheia de acrobacias e encenações: Hugo Mastrolorenzo e Agustina Vignau dançaram ao som de ‘Balada para un loco’, de Astor Piazzolla y Horacio Ferrer. Preferi o primeiro par: improvisação e deliquescência, quer dizer, Cristian e Melisa desafiavam-se num duelo de paixão e vaidade, ele sem dobrar a espinha, ela sem ceder o olhar, num combate sem regresso. Desculpem esta interrupção, mas foi um fragmento de beleza.
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