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Em 1977, as cumplicidades da vida política portuguesa silenciaram as denúncias sobre o ‘27 de Maio’ porque não se podia atacar o regime de Agostinho Neto. O gulag angolano (e as suas vítimas) foi escondido debaixo do tapete em nome das conveniências, até porque o programa dos envolvidos no ‘golpe de Nito Alves’ levaria a um regime ainda mais duro, totalmente soviético. Mas nada disso explica que, no parlamento, 40 anos depois, dois partidos comprometidos com a democracia liberal (o PSD e o CDS) se tenham recusado a condenar a prisão dos jovens angolanos e a forma como decorreu todo o processo. Entende-se que um governo negoceie, manobre, mantenha canais diplomáticos, se guie pela ‘realpolitik’, seja prudente; mas que deputados eleitos pelo povo invoquem o princípio da “não ingerência” para se transformarem em cúmplices do autoritarismo, é vergonhoso – tanto como o PCP habituar-nos ao seu apoio a ditaduras e regimes autoritários. Defendem coisas patetas, os amigos de Luaty Beirão? É muito provável. Mas os deputados que se recusaram a votar o protesto foram ainda piores. Porque eram livres e escolheram o silêncio.
O Nobel de 2002 serviu para que, pelo nome do húngaro Imre Kertész (1929-2016), falecido anteontem, não esquecêssemos o terror nazi, os campos de concentração, nem a miséria em que a Europa se transformava há oitenta anos. Com o Nobel vieram os seus livros, infelizmente pouco divugados. Sem Destino, A Recusa’ e Aniquilação (todos publicados pela Presença) constituem uma abordagem da vida dos campos de concentração nazi sem a ideia de piedade sentida pela vítima. Durante a guerra, ainda adolescente, o judeu Kertész passou por Auschwitz-Birkenau e Buchenwald; ter sobrevivido trouxe-lhe um sentimento de culpa que o acompanhou durante toda a vida, mas, mesmo sendo tão doloroso, não se transformou numa obsessão. Em Kaddish para uma Criança Que não Vai Nascer as feridas são mais visíveis: valerá a pena viver num mundo que permitiu Auschwitz e que aplaudiu a liquidação em massa dos judeus? Parte essencial da obra de Kertész responde a essa pergunta, mesmo quando o tema se desvia para o totalitarismo enquanto horror – como o comunismo, sob o qual viveu. Às vezes, a recordação é apenas um encontro com o abismo.
A Europa esquece quase tudo – e não aprende quase nada. No dia seguinte ao assassínio de Theo Van Gogh por um fanático muçulmano, o burgomestre de Amesterdão deslocou-se à mesquita frequentada pelo assassino, mas não ao velório do realizador holandês. Na mesma noite dos atentados de Paris, quando ainda se contavam as vítimas, várias vozes se ouviram a rezar pela tolerância e a alertar contra o perigo da xenofobia, como se as vítimas corressem o risco de se transformarem em algozes e transportassem todos os fardos da culpa. Infelizmente, o perigo maior não está na xenofobia nem na falta de tolerância – mas na falta de sentido. Ou seja, onde os europeus vêem a falta de sentido do terror, e erguem altares na rua para queimarem velas e deixarem flores a apodrecer, o terrorismo vê uma lógica que o longo prazo há de satisfazer. Um dia depois dos atentados de Bruxelas, o Estado Islâmico reivindicou a morte de um homem que, no Bangladesh, se converteu ao cristianismo. E uma semana depois a Al-Qaeda dizimava 30 crianças e mulheres cristãs no Paquistão. A culpa impediu os europeus de protestar. O silêncio está a matar-nos
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