Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Lançamento a 17 de Fevereiro, 18h30, na Fnac do Chiado, em Lisboa. Apresentação de Ferreira Fernandes. À venda nas livrarias com bom gosto.
O patriotismo é uma febre periódica. Samuel Johnson (1709-1784) chamava-lhe “o último refúgio de um canalha”, e a história relembra as patifarias que se fizeram em nome do patriotismo e as palhaçadas de quem o invoca a propósito de quase tudo e, na maior parte das vezes, a despropósito. Assemelha-se um pouco à “Lei de Goodwin”, que determina que uma discussão se encerra quando alguém compara o seu adversário a Hitler (a selvajaria da net conhece bem esta prática). A semana foi fértil em patriotismo: uma legião de crentes (legítima) nos êxitos do governo acusou os descrentes da doença contrária, o anti-patriotismo, peste das pestes. Pior: de traidores, sabotadores, lacaios, vendidos ao capital estrangeiro. Os patriotas absolutos de agora, impantes de fé, são os descrentes do patriotismo há um ano, quando estavam do outro lado da barreira. Pobre pátria. José Augusto-França resumiu a coisa de outro modo: a nossa maldição – a dos portugueses que vivem entre portugueses – não é a de que “quem tem um olho é rei”; é a de haver gente, espertinha e manhosa, que tira um olho para ser rei.
Na coluna do Correio da Manhã.
Almoço com um amigo que não via há um, dois anos (somos amigos há muito e, portanto, é como se nos víssemos no futebol na semana passada). Festejos e lamentos, vidas passadas e futuras, a saúde (agora preocupamo-nos, claro), os livros. Acabou de ler uma tese de doutoramento escrita com erros de ortografia, sem sintaxe mas com muitos lugares comuns. Lamentos, portanto. Já ninguém sabe latim. Grego, impossível – ao contrário da Alemanha, nos EUA e de Inglaterra, onde os estudos clássicos, resistentes, regressaram à universidade. A inglesa Mary Beard é uma estrela da história antiga, com emissões de televisão e best-seller em livrarias; em Portugal, Maria Helena da Rocha Pereira, Frederico Lourenço, Rosado Fernandes, Ascenso André – são excentricidades; veneradas, mas excentricidades. Será da idade, ou de assistir a uma certa decadência da curiosidade, do conhecimento, do debate, substituídos pela matraca pós-moderna? Outro amigo queixa-se: os seus alunos – literatura, filosofia – leram uma média de meio livro por ano. Somos uma velharia. Ainda acreditamos no mistério. Juntamo-nos para festejos e lamentos.
Aos tropeções, o século XIX aparece-nos como uma revelação sobre as discussões que hoje deveríamos ter – e, miseravelmente, não temos. A menção ao Fontismo e a Fontes Pereira de Melo tem contribuído para esquecer um país profundamente iliberal que teme desafios e que, ao enfrentá-los, procura desculpas e ilusões de grandeza. O anátema contra Fontes (1819-1887) pretende que o fontismo se limitou a espalhar caminhos de ferro, estradas, portos e uma reforma da administração pública ou do sistema de pesos e medidas; Fontes seria uma figura de tragédia, “sem ideias” (tese muito grata a Oliveira Martins) e que no seu projeto para o país ignorava a “dimensão moral” do progresso. Num livro notável (Fontismo. Liberalismo numa Sociedade Iliberal, Dom Quixote), David Justino relê o Portugal de oitocentos e mostra o esqueleto da retórica protecionista, iliberal, corporativista, moralista, que vem até aos nossos dias. Por detrás do horror à liberdade, uma multiplicação de castas, oligarquias e privilégios (à esquerda e à direita) – como hoje, portanto. Belíssima leitura para os nossos tempos.
A idade, o infortúnio, o desaparecimento dos que nos são queridos, o desejo de conforto e de sabedoria, a serenidade – Harold Bloom diz que são alguns dos motivos que explicam o nosso prazer em ler e reler os clássicos (no seu caso, Shakespeare acima de qualquer outro). No meu caso, Camilo Castelo Branco, Eça de Queiroz, Cesário Verde, a lista alarga-se aqui e ali, mas entesoura livros que nunca me abandonaram. A editora Guerra e Paz tem vindo a publicar alguns deles (Eça e Camilo, Os Maias e O Que Fazem Mulheres) em volumes modernos e com a nossa grafia, com revisão de Hélder Guégués. Agora, é a vez de A Cidade e as Serras, o romance da serenidade de Eça, elegia do seu século, confronto com a “civilização” e a sua infelicidade. Nunca me canso de reler a passagem da chegada a Tormes de Jacinto e de Zé Fernandes, um prodígio de melancolia e de riso, nem de recordar o palacete burlesco dos Campos Elísios ou a ligeira conversão de Eça à alegria da natureza. O livro foi publicado há 115 anos, um ano depois da morte do autor. É um monumento que sobreviveu ao tempo que devora tudo, exceto a eternidade.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.