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Uma crónica de José Ferreira Fernandes sobre «os Van Dunen». Muito boa, como sempre.
Michel Houellebecq escreveu Submissão, um romance que trata da ascensão turbulenta de um muçulmano à presidência francesa, e consequente estabelecimento de uma ordem islâmica. Depois de ter ganho o Prémio da Academia Francesa com 2084, o argelino Boualem Sansal viu-o ontem consagrado como o melhor livro do ano em França, segundo a revista Lire. E de que trata 2084? De uma ditadura global muçulmana (o Abistão, inspirado no império de Orwell), fundada sobre dois pilares: a amnésia e a submissão a um deus único e cheio de interditos, onde não há história e a linguagem é rigorosamente vigiada e codificada. Sansal é argelino, sabe do que fala: assistiu aos horrores dos fundamentalistas no seu país, não é um “ocidental atrevido”. Para os radicais, é muito pior: um apóstata condenado à morte.
A bela encenação de Macbeth que Carlos Avillez e o Teatro Experimental de Cascais apresentam neste final de ano relembra a grande atualidade de Shakespeare. As azougadas e os estouvados podem ser muito espertos politicamente – mas são analfabetos em todas as outras matérias, como relembra a sorte do infantil, ambicioso e atormentado Macbeth, usurpador e vítima ao mesmo tempo. O hábito do ressentimento (e da traição) apodera-se de todos, revelando a tensão e o terror permanentes: num mundo em que ninguém se salva (“O bom é mau e o mau é bom”, como diz, insuspeito, o coro das três bruxas), cada um é devorado pelos seus fantasmas e pelo desejo de tragédia. Não é por acaso que Freud se apaixonou por esta peça; os comentadores políticos sérios (não os que tocam as trombetas de ocasião) também deviam vê-la.
Em várias zonas de Birmingham e de Londres há lojas que, diante da permissividade das autoridades, vetam a entrada ou o serviço a clientes não muçulmanos, gente haraam. No sábado passado, a inglesa April Major, 43 anos, proprietária de um salão de beleza, foi em sentido contrário: decidiu por sua conta e risco “não aceitar marcações de gente da fé islâmica” (“anyone from the Islamic faith”), como escreveu no Facebook, essa fábrica de coisas estapafúrdias. A polícia de Thames Valley, no Oxfordshire, prendeu-a no dia seguinte, domingo – sob a acusação de ter cometido um crime de natureza racial; não por se ter recusado a aceitar muçulmanos (a loja estava fechada), mas por ter publicado um post que provocou “alarme social”. Muito bem. Pena que, antes dos atentados, as autoridades tenham protegido muçulmanos racistas que fizeram bem pior.
[Coluna do CM.]
Um exemplo de tolerância em Marselha, já depois dos atentados.
Os corpos dos cinco terroristas do Setembro Negro (mortos em Munique), recebidos em festa em Trípoli, na Líbia. 1972 – depois de terem assassinado os atletas israelitas.
Os três terroristas do Setembro Negro, sobreviventes em Munique, recebidos em festa em Trípoli, Líbia. Foram libertados pela Alemanha na sequência do sequestro de um avião da Lufthansa (Beirute-Frankfurt) — onde só viajavam 12 pessoas, numa operação encenada pela Alemanha e pela OLP.
Texto publicado a 11 de novembro, dois dias antes dos atentados de Paris: A larguíssima maioria dos portugueses pensa que o Estado Islâmico é obra de malucos vestidos de negro que entoam as graças do Profeta e se divertem a retalhar a Síria e o Iraque. Não apenas ali – escondem-se na Europa, atuam às claras em África e veladamente noutros países do Oriente Médio. Como a maior parte dos seus crimes e violências são cometidos sobre africanos e deserdados da Síria e do Levante, os europeus pensam que é uma coisa distante (a imprensa portuguesa transformou alguns dos celerados em estrelas e aventureiros); por isso discutem a questão dos refugiados como se se tratasse apenas de matéria de segurança social. Um vídeo agora divulgado mostra-nos uns desses homicidas de Alá a chacinar 200 crianças sírias. Pelas costas. Os do califado prometeram estes crimes há dois séculos. Não podemos tratá-los apenas como malucos.
Em Torre de Moncorvo (9 mil habitantes, números redondos), os verões são inclementes, abafados, bonitos – e trabalhosos (vindimas e apanha da amêndoa decorrem em setembro); os invernos são gelados (há a azeitona), mas não há primavera igual, explodindo de cor e cheiro da terra. Outros dados: a população é metade da de 1900 e de 2001 a 2011 decaiu em redor de 13%, de modo que 34,4% dos habitantes tem mais de 65 anos (só 9% entre os 15 e os 24). O que faz o Estado por Moncorvo? Entre outras generosas benesses, dá-lhe 5 médicos para o centro de saúde, uma fartura – mas há apenas 3 (com o inverno ficará apenas com dois, um vai de férias, noticia o CM). De certa maneira, os moncorvenses são refugiados no interior do país; a sua solidão, génio e malandrice vêm nos livros de J. Rentes de Carvalho, mas custa ver como o país os abandona.
Não faltou quem pedisse, nessa longa noite de sexta para sábado, ainda as vítimas não estavam contadas, que não tivéssemos medo e que não cedêssemos à xenofobia e à islamofobia. Sobre o medo: a Europa não será a mesma, salvo nos discursos de políticos que salvam a pele, ou nos que vivem na Gronelândia; sim, temos medo, mas viveremos de pé. Acerca da islamofobia, o seguinte: o jihadismo islâmico espalhou, nas duas últimas semanas, atentados no Sinai, na Turquia e no Líbano, antes de regressar a Paris. Um total de 400 mortos, louvados nas mesquitas salafitas e nas redes radicais e acompanhado de ameaças futuras e passadas. As futuras têm como alvo a nossa vida; as passadas estão no próprio islamismo, a perversão teocrática muçulmana que promete devorar cristãos, judeus, infiéis de toda a espécie, negros e brancos, mulheres sem véu ou a música que os atormenta; é esse o seu programa, escrito e publicado. O primeiro alvo deve ser essa galáxia de pregadores radicais espalhada por todos os países da Europa, de Granada a Finsbury Park; eles reduziram o Corão à espada e ocupam o vazio de onde a Europa se ausentou.
Assinalou-se na semana passada, quinta-feira, 12, o centenário de Roland Barthes (1915-1980). Obras decisivas como O Grau Zero da Escrita (1953), Elementos de Semiologia (1965), O Prazer do Texto (1973), Fragmentos de um Discurso Amoroso (1977) e o inevitável Mitologias (1957), uma bíblia ilustrada, todos publicados pelas Edições 70, fizeram de Barthes um nome incontornável nos «estudos literários» dos anos setenta e oitenta, ao lado do dos papas do estruturalismo – onde ocupava um dos principais altares, encaminhando-se para transformar os «estudos literários» em «estudos culturais», um caldeirão preparado para facilitar a vida a pregadores com doutoramento e despensa. No mandarinato inteletual da época, o seu trabalho não era o mais ortodoxo. Tinha a seu favor a paixão pela literatura; foi em seu nome que declarou a «morte do autor», que seria um apêndice (menor) da obra; quase nada dele interessaria, justamente na medida em que os média privilegiam o autor (que é uma estrela) em detrimento da obra (que não leram). Fica dele a imagem de uma grande paixão pela literatura (escrevia magnificamente), independente das ortodoxias e inutilidades que a sua obra gerou.
Olhar um livro alguns anos depois não basta – é preciso recordar um pormenor que há-de constituir uma revelação. Depois, essa revelação estende os seus caminhos: um autor, uma ventania, uma sobreexposição, um amor perdido, uma recordação de adolescência, uma memória pessoal. Para isso serve a nossa biblioteca, nem sempre a mais comum, às vezes sucumbindo ao desejo do segredo. Leio as crónicas de Pedro Mexia incluídas em Biblioteca (Tinta da China) com um sentimento de gratidão e de deslumbramento: é muito difícil (raro, incomum, singular) encontrar este desejo de perdição pela literatura. Não como uma militância, mas como uma condição do destino. Há quem a procure uma vida inteira, com o habitual défice de talento; e quem, como Pedro Mexia, nos faz percorrer todo o caminho de volta, até ao silêncio. Conseguir isto é raríssimo.
Sem querer ser purista da língua (mas achando que é necessário defender a nossa), há dois dias comentei aqui a desnecessária transformação de Lisboa em Lisbon num cartaz lisboeta dirigido a lisboetas. Ainda não tinha visto a edição deste mês da revista GQ, cuja capa é dedicada a Jorge Jesus; o leitor que comente a foto, que é supimpa. É claro que, ao contrário do cartaz sobre a «Lisbon Haloween Night», a GQ não é financiada com dinheiros públicos mas as suas obrigações para com a nossa língua são as mesmas. E ela cumpre com galhardia: o grande título de capa é «Nobody f*cks with Jesus», o que não é nem deixa de ser f*dido (pobre dele); há outros títulos: sobre o black tie perfeito, uma reportagem sobre camgirls – e a promoção da festa dos galardões dos homens do ano, intitulada em português GQ men of the year awards, para cujo backstage somos convidados (ena!). Entre os 15 men of the year está Gisela João. Fuck.
As eleições polacas, ao contrário das portuguesas, resultaram numa maioria absoluta – o vencedor é um partido que leva o bárbaro nome de Lei e Justiça, chefiado por Beata Szydło; em segundo lugar, ficou o Plataforma Cívica, da ex-primeira-ministra Ewa Kopacz; finalmente, já fora do parlamento, ficou a coligação de esquerda, liderada por Barbara Nowacka. Três mulheres. É isto bom? Para os grupos feministas, não: elas são, à exceção da terceira, apenas “instrumentos no jogo político”. Vem nos jornais. Expliquemos então esta encruzilhada: há mulheres e mulheres; Jóhanna Sigurðardóttir, ex-PM islandesa, é mulher; Margaret Thatcher, nunca. Dilma Rousseff é mulher, Angela Merkel, não. Hillary Clinton é mulher (não muito), mas Carly Fiorina, a rival republicana, não. Helle Thorning-Schmidt, que foi PM dinamarquesa, é mulher; Marine Le Pen, não. Catarina Martins é mulher; a polaca Beata Szydlo, como toda a gente sabe, até faz xixi de pé.
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