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De tempos a tempos, o nosso provincianismo transforma-se em soberba e arrogância. Já li alguns protestos escandalizados porque as crianças portuguesas vão estudar mandarim, a língua mais falada do mundo. Inglês, francês, portunhol, claro. Mas mandarim, que humilhação. Houve antepassados nossos que aprenderam línguas orientais e se instalaram no Japão, na China, em Malaca, no Sião, nos limites do deserto. Aí enriqueceram, guerrearam, morreram, enlouqueceram ou foram felizes. Mas que o mundo se altere e as crianças de hoje aprendam mandarim para se entenderem com chineses, que desonra. Pobres provincianos, tão cheios de empáfia europeia. Ainda não descobriram que, além de mandarim, também deviam ter umas luzes de cantonês e de wu. Ajudaria muito.
© Hiroshi Sugimoto, «Bay Drive In, San Diego». 1993
1. O Kindle é o aparelho de leitura de livros digitais vendido pela Amazon. Mas, mais do que isso, é uma espécie de ‘chip’ com que a Amazon controla e monitoriza os seus leitores: com o Kindle, sabe quantas páginas eu li, que passagens destaquei, onde parei mais tempo, que livros abandonei a meio, que títulos recomendei – tudo (inclusive, paga aos autores da sua plataforma de acordo com as páginas lidas). A leitura, último refúgio da humanidade civilizada, deixou de ser uma atividade solitária para passar a estar sob escrutínio de um cérebro vigilante que arquiva, organiza e se serve de dados sobre a nossa intimidade (disponibilizando essas informações a outras empresas e aos governos) e os nossos sonhos, supondo que os livros ainda alimentam a capacidade de sonhar, aprender ou perguntar. Cuidado com o que leem.
2. A Amazon, através do Kindle (e também outros serviços digitais como o Youboox e o YouScribe), pagará aos seus autores consoante as páginas lidas ou não lidas. O que, como aqui escrevia ontem, supõe uma monitorização permanente dos leitores (vigiados por um chip) e das suas escolhas através dos aparelhos eletrónicos – uma ameaça evidente à privacidade de cada um. Há um bolo de 53 milhões de euros para dividir entre os autores exclusivos do Kindle, diz a Amazon. James Joyce receberia muito pouco (talvez o monólogo de Molly Bloom escapasse), e muitos contemporâneos veriam os seus direitos de autor reduzidos ao mínimo. A ideia não é apenas perversa; é um ataque frontal a séculos de literatura (“um livro é um todo”) e uma desvalorização da arte de ler, que inclui o direito de saltar páginas para fazer uma sesta.
[Da coluna do Correio da Manhã]
Será que a ideia de fazer regressar o latim e o grego é uma batalha perdida? Para os que defendem a ideia da escola como uma extensão da ideologia fabril, sim – será, mesmo, uma ideia estapafúrdia. É, além do mais, o resultado das “políticas educativas” das décadas mais recentes, centradas “naquilo que os alunos querem”. A ideia anunciada pelo ministro da Educação é vaga e devia, sem desculpas nem amenidades, implicar o estudo das culturas clássicas e de rudimentos dessas línguas. História, língua, cultura, cosmogonias – não para que os alunos se transformem em eruditos e tradutores de Horácio ou Tucídides, mas para que pelo menos a escola não perca a memória do nosso mundo nem da herança que o conhecimento humanístico transporta como uma luz de beleza de experiência e de consolação diante do vazio de hoje.
[Da coluna do Correio da Manhã]
Os patetas do controle tecnológico rejubilam com o Cartão de Cidadão, como bons provincianos. Através dele pode – quem pode – ter-se acesso à nossa conta fiscal ou bancária, ao historial de multas de trânsito, ao currículo de doenças e compras de medicamentos, à conta da Via Verde e, agora, às marcas de cigarros que compramos (porque há máquinas que são ativadas com o CC). Se “as autoridades” quiserem, podem cruzar as nossas compras de supermercado, de tabacaria e de sex-shop e estabelecer um padrão de mau comportamento. Se a isto somarmos as autorizações que estão prestes a ser dadas – por lei – às secretas para coligir toda a informação que pretendem dos cidadãos, estamos a autorizar um belo Estado que, além de saquear impostos colossais, será mais intrusivo e pleno de poderes. Preparem os manguitos.
[Da coluna do Correio da Manhã]
© Lu Nan, Tibete, 2002 © Magnum
© Lu Nan, Tibete, 2004 © Magnum
© Lu Nan, China. Shandong, 1993 © Magnum
© Lu Nan, China. Mei-Xian, província de Shaanxi, 1992 © Magnum
Todos gostamos de listas – faz parte da nossa curiosidade e da vontade natural de manter o mundo com uma certa ordem. Nos últimos anos, porém, tem havido listas para tudo, desde os melhores hotéis com camas no chão e janelas voltadas para o Danúbio até às melhores praias a norte do Cabo Raso com serviço de wifi. Tal como na informação meteorológica dos sites de meteorologia, ninguém sabe de onde vem essa informação, que é colhida em sites que copiam outros sites que copiam outros sites e que nunca revelam a sua fonte. É possível termos a listas das 10 melhores caganitas de estorninho do Alto Zêzere (um doutoramento), bem como as 20 pessoas mais altas de Massamá, os 10 bares mais sujos de Berlim (difícil a escolha) ou as 10 melhores cenas de cama em romances com marcianos transsexuais. O mundo não acaba.
[Da coluna do Correio da Manhã]
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