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De acordo com o prometido, os senhores deputados ocuparam a tarde de ontem a discutir a melhor forma de “aumentar a taxa de natalidade”. A expressão é cómica, mas era o que estava previsto. O argumento de que as pessoas querem mas não podem ter filhos é tão estapafúrdio como dizer que um corte de 40 por cento no salário dos progenitores os incentivará a ficar em casa para educar a prole. A curva demográfica começou a descer em vertigem nos anos noventa e não foi por causa da crise – mas pelas “opções de vida” e pelas “mudanças nos costumes”. Um mercado de trabalho selvagem ajuda à crise, mas a desregulação é muito mais geral e está na cabeça dos “casais em idade fértil”. Ter filhos para pagar impostos e salvar a segurança social dos mais velhos é outro grande incentivo que só aquelas pobres cabeças podiam engendrar.
A morte aproxima-se devagar – mas é sempre fulgurante. Ontem, três nomes importantes para a literatura e para a edição, em níveis diferentes: o alemão Günter Grass, o uruguaio Eduardo Galeano e o editor francês François Maspero. Cada um deles foi importante para a esquerda e para as suas diversas causas – mas o mais importante foi terem escrito e publicado livros, ao contrário das ladainhas que se ouviram ontem, que às vezes quase esqueciam os seus títulos. Eu gostava de Grass por causa de O Tambor e de A Caixa, mas achava tudo o resto muito aborrecido. E fui um leitor de Galeano (o de Vagamundo e de Futebol de sol a Sombra – ele gostava de Eusébio). Por seu lado, Maspero foi um editor e livreiro importante, que durante uma década dominou a vida inteletual francesa. São símbolos que partem. Também era bom sabermos se têm substitutos à altura, seguidores, herdeiros, sucessores. Os de Galeano acusam-no de traição. Primeiro, em Brasília, na Bienal do Livro, falou mal do seu próprio livro, As Veias Abertas da América Latina – um panfleto de economia que fez escola nos «estudos coloniais». A multidão de seguidores não o desculpou, nem lá nem nos EUA.
Há uma «nova batalha» no mundo da crítica literária: a do género. Uma organização americana que promove a representação das mulheres na literatura (Vida, Women in Literary Arts) analisou 15 publicações literárias influentes no mundo anglo-saxónico e chegou à conclusão de que, muito embora as mulheres dominem as listas de best-sellers (de J.K. Rowlling e Donna Tart a Hilary Mantel), apenas 30 por cento das críticas são assinadas por mulheres. Um outro estudo (no Reino Unido) diz que as mulheres são responsáveis pela compra de dois terços de todos os livros publicados, e que 50% das mulheres são ‘leitoras ávidas’, contra apenas 26% por parte dos homens. A “representação” não me diz muito – mas estes números explicam por que razão as mulheres têm hoje mais sucesso nas universidades e na vida profissional: leem mais.
O documento circulou por todo o mundo e era relativamente pacífico; mas a capacidade de o politicamente correto cair no albergue da palermice é sempre capaz de nos surpreender. O Vida defende mais: que os escritores, independentemente do género, não devem apenas criar personagens femininas – mas pô-las, nos romances, a «dizerem e fazerem coisas importantes». Que grande ideia. Estaline corrigiu páginas de Gorki enquanto decidia que temas deviam os escritores tratar; na China, o governo manda os escritores para os arrozais para escreverem sobre os rouxinóis; as feministas americanas mandam implantar neurónios artificiais.
Com aquela prosápia de pato bravo (estávamos em 2008), um antigo secretário de Estado balbuciou um dia que o abandono do Latim e do Grego nas nossas escolas não se devia “às políticas educativas” mas, simplesmente, ao facto de “os estudantes não quererem”. Isto podia ser dito por um capataz de latoaria mas não por um político. A Comissão Nacional de Educação propôs entretanto que o Ministério da Educação estude a hipótese de retomar e reforçar o ensino das línguas clássicas, o que parece ter sido aceite. No meio de tanta asneira, uma boa notícia. Depois de termos passado de 13 mil estudantes (em 1995) para 114 (no ano passado) a estudar Latim, decréscimo de mais de 90 por cento, é evidente que a culpa é “das políticas educativas” moderninhas que desgraçaram a escola e o papel da cultura dentro das suas salas.
Não é definitivo que exista um “escritor nacional” para os portugueses. Mas devia apurar-se. Na Alemanha, o lugar é de Goethe; na Espanha, de Miguel de Cervantes; na Itália, é Dante; em Inglaterra, naturalmente Shakespeare; em França acaba de realizar-se uma sondagem que deu o primeiro lugar a Victor Hugo. Há tempos, uma sondagem europeia deu o topo a Shakespeare e Cervantes. Será Camões o nosso representante? Ou Eça, o romancista por excelência (que disputa o título com Camilo)? Ou Pessoa, que paira como uma sombra por toda a modernidade? E qual é o livro que os portugueses elegem como a sua companhia de cabeceira? Os Maias, um portento? Amor de Perdição, o folhetim? Os Lusíadas, o símbolo? Uma coisa é certa: com tantas reformas curriculares, os nossos clássicos ainda não têm lugar garantido.
Basta dizer-se que um pateta é um artista para que ele suba de degrau. Veja-se o caso de Nelson Shanks, um simpático pintor septuagenário especializado em “retratos oficiais”. Foi ele o autor do de Bill Clinton – que pernoita na National Gallery – onde, garante, “está escondida uma referência ao escândalo Monica Lewinski”. Fui a correr ver a coisa: há de facto uma sombra que mancha a tela, sim, provocada – dizem os hermeneutas – por um vestido azul (o célebre, de Miss Lewinski) que o artista tinha ao lado enquanto pintava. Mas, no quadro, do vestido só nos chegou a sombra. Diz ele que é uma metáfora do mandato presidencial. Ora, este Shanks é um cobardolas: Velásquez, que era fino e vaidoso, pintou-se a si próprio em ‘Las Meninas’ ao lado de Margarida de Áustria ainda princesa, tal como Van Eyck reproduziu outras pessoas num espelho do retrato do casal Arnolfini. Mas, em matéria de sombras, nenhum deles sonhava com os felácios dos outros.
Há vítimas de segunda categoria, como os cristãos assassinados numa universidade do Quénia, por uma milícia muçulmana. A imprensa deu a notícia salientando que “do ataque resultaram 148 mortos”, desvalorizando tratar-se de um crime de ódio e de uma matança religiosa. Outros ataques contra comunidades cristãs na Nigéria, no Iraque, no Iémen, na Síria, na Eritreia ou no Paquistão e no Egito, “de que resultaram” centenas de vítimas não tiveram destaque na nossa imprensa – não vimos nenhuma autoridade religiosa muçulmana de relevo a condenar os crimes, nem se ouviu o habitual ‘somos todos Charlie’ diante do assassinato de cristãos. Só um silêncio absurdo que nos diz que estamos todos sitiados diante da indiferença. No Ocidente a laicidade transformou-se aos poucos nessa indiferença malévola diante do cristianismo.
Existe uma aplicação – uma ‘app’ – que promete varrer a má criação dos escritores, esses atrevidos. Chama-se Clean Reader e, caso encontre palavras comprometedoras num livro digital, imaginemos um romance, substitui-a por outra mais adequada a um dicionário com a moral a postos. Imaginemos que um personagem, no paroxismo da indignação, berra qualquer coisa como “merda!”. Logo o Clean Reader elimina o pequeno palavrão e o substitui por, imaginemos, “sujidade”. Assim, o “que merda!” lusitano aparecerá como “que sujidade!” Não dou mais exemplos mas todos imaginarão outras amáveis substituições. É bom dizer que o Clean Reader não precisa da aprovação do autor para atuar no texto; ele toma conta da literatura, espanejando os parágrafos com o seu látego. Os escritores protestaram mas ainda não perceberam a vantagem.
Assinala-se agora a publicação do primeiro número da Orpheu, farol da nossa pequena modernidade. Só foram publicados dois números, mas as réplicas produziram gerações de que Fernando Pessoa e os seus heterónimos se distinguem acima de todas as outras referências. O início do século XX deu-se, no entanto, com o adeus de Eça de Queirós e as páginas finais de Os Maias, onde o perfume de decadência se sobrepõe a todos os outros. Passado um século, o “ambiente literário” não é melhor. Comparando as polémicas da época com as de hoje, a diferença é triste: os autores de então eram mais livres, seguramente, e não tinham os receios de hoje. Hoje, Júlio Dantas poderia passar pela baixa lisboeta, cruzar-se de novo com Almada Negreiros, e repetir a frase que é suposto ter dito na época: “Este Almada, sempre tão velho, coitado.”
A Editorial Presença publicou uma nova versão do romance de Mikhail Bulgákov, agora com o título O Mestre e Margarita, traduzida por Filipe e Nina Guerra – que assina um notável prefácio onde, em poucas páginas, nos dá uma lição magistral não apenas sobre o livro e Bulgákov (Kiev, 1891-Moscovo, 1940), mas também sobre a literatura durante o período soviético. A tradução flui, é perfeita quase sempre, transporta-nos para Moscovo e para a forma como o autor o concluiu, à beira da morte, ditando-o à sua mulher Elena. Só foi publicado em 1966, com cortes e intrusões da censura, antes de ser lançado em Paris no ano seguinte (versão integral), e é uma narrativa fantástica e cómica sobre magia negra, o mal, a culpa – e, naturalmente, a tirania desses anos 20, quando Bulgákov o começara a escrever, já sabendo que era uma obra-prima do humor negro, do delírio e da denúncia do totalitarismo.
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