Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Um dia vamos esquecer os livros e as gargalhadas – e tudo o resto. Mas não a Dóris. Escrever sobre a morte; às vezes são assim os nossos dias. Dóris Graça Dias nasceu em Moçambique (1963), morreu agora em Lisboa. Crítica, professora, leitora incansável, viajante sempre. Também ela conhecia o riso que não engana.
(Foto de Dóris; Dóris e José Riço Direitinho – esta última publicada hoje por José Riço Direitinho na sua página de Facebook: «Quando ainda sorríamos e não sabíamos.»)
A mais recente descoberta da histeria alimentar tem a ver com a frutose. Está nas primeiras páginas. De cada vez que almoço com pessoas com menos de cinquenta anos, é vulgar ser alertado para os «venenos» do meu prato; a frutose é a última loucura. Parece que o açúcar da fruta é terrível. Às vezes sou olhado de lado porque uso açúcar no café (não conheço nenhum país produtor de café que o beba sem açúcar) e assisto a conversas sobre os flocos de aveia, como se alguém no seu perfeito juízo os comesse salvo por razões de saúde (aquilo sabe mal, ponto). Não consigo uma refeição sem que apareça uma alma a contar as calorias ou a murmurar «ui, veneno...» ao verificar que molho o pão no azeite, como os meus antepassados. Se acrescentarmos a isso a abundância de 'chefs' em vez dos cozinheiros de antanho, mais a ideia de comer uma bolacha de farelo de duas em duas horas, eis um mundo estupidificado pela comida.
[Da coluna do Correio da Manhã]
Na semana passada, o Journal of Applied Social Psychology divulgou três estudos sobre as consequências da leitura das histórias de Harry Potter por jovens em idade escolar. Os resultados não são surpreendentes, mas alegraram os “cientistas sociais”: depois de lerem os livros de J.K. Rowling, os adolescentes ficam mais tolerantes em relação a temas como a imigração ou a homossexualidade, por exemplo, e menos disponíveis para o racismo ou a xenofobia. Isto faz-me lembrar que há uns tempos, passeando em Santiago de Compostela com o escritor Carlos Quiroga, descobri uma Biblioteca de Buenas Lecturas (fica perto da Catedral). Nenhum de nós riu da ideia – a de que há leituras “boas” e leituras “más” – que contraria o princípio, muito divulgado hoje, de que não interessa o que se lê. O critério não é moral, evidentemente – avalia-se pelos resultados. As bibliotecas de Hitler e de Mao eram vastíssimas.
[Da coluna do Correio da Manhã]
Rui Veloso respondeu às tresleituras disparatadas da sua entrevista ao DN – e anunciou disco novo em 2015. Uma horda de patetas apareceu nas “redes sociais” para lamentar o adeus de outro músico desiludido com o país, retirado e amargurado; este é o habitual discurso da banalidade e da queixinha barata. Muitos apressaram-se a prever a hecatombe do costume: estão a matar Portugal, vejam. O problema dos músicos é sombrio porque dependem da concorrência, do gosto, da banalização e, vá lá, do cansaço. Mas não afeta apenas músicos: outros autores (e outras profissões) sofrem o mesmo desgaste e não culpam a pátria. O tempo devora os seus filhos; o nosso tempo devora tudo com mais crueldade ainda, com a ajuda da tv e da internet. Além de que não é possível alimentar com dinheiros públicos uma indústria na qual as autarquias gastaram milhões durante anos de concertos gratuitos. Esse festim acabou.
[Da coluna do Correio da Manhã]
Nicolau de Cusa (por ter nascido em Cusa, Kues, não muito longe da atual Mainz, Alemanha) morreu há 520 anos em Itália. Nos tópicos de história da filosofia das nossas escolas ele aparece muito raramente, mesmo quando se invoca o princípio da “douta ignorância”, título de uma das suas obras (de 1440). Antes do cisma protestante (as “Teses” de Lutero são de 1517), Nicolau já estava entre dois mundos, depois de ter escrito um tratado – ignorado – sobre a necessidade de mudar a igreja do seu tempo. O mais fascinante na sua obra é, porém, o apelo à razão e, simultaneamente, o fascínio pelo incompreensível e pelo desconhecido: Deus era, para Nicolau (que, além de teólogo, era físico e matemático), essa matéria sem geometria, sem designação e sem centro. A sua cosmologia era, por isso, revolucionária para a época; tinha a ver com os sonhos – se o mundo era infinito e desconhecido como poderia ter um centro?
[Da coluna do Correio da Manhã]
Há tempos, uma universidade novaiorquina disponibilizou um algoritmo para analisar um livro e determinar se está ou não destinado à categoria de best-seller. Agora, um grupo de investigadores da universidade de New South Wales, Austrália, acaba de construir um programa informático (o The Moral Storytelling System) destinado a escrever histórias com um “epílogo moral”. Neste caso, trata-se de pequenos textos que retomam as categorias e estados morais presentes, por exemplo, nas fábulas de Esopo, como a ganância, o orgulho, a imprudência, a recompensa, o remorso, a inveja ou a gratidão. A complexidade de uma história literária nunca será reproduzida dessa forma – e a literatura não tem a ver com virtudes morais ou cívicas. Mas, observando a promiscuidade abjecta entre a vida política e a vida financeira portuguesa, dois ou três parágrafos gerados por computador bastariam para dar conta do assunto.
[Da coluna do Correio da Manhã]
Em O Nome da Rosa, de Umberto Eco, o frade Jorge de Burgos achava que o riso era a antecâmara do pecado (o livro perdido da Poética, de Aristóteles, dedicado à comédia, estava envenenado). Semelhante opinião tem Bulent Arinc, vice-primeiro-ministro turco, que aconselhou as mulheres a serem mais sisudas “em espaço público”, evitando rir por dá cá aquela palha. É uma posição consentânea com certa leitura do Corão – provavelmente a mesma que leva o novo “imã” do califado sírio-iraquiano a decretar a excisão do clítoris a todas as mulheres que vivem no seu território; nem prazer, nem riso em público, nem praia, nem autorização para conduzir carros ou para viajar. Mas, pelo menos na Turquia de Bulent Arinc (e na de Erdoğan) sem riso. Há duas perspetivas: uma, explicar que foi contra este cenário que foi fundada a Turquia moderna e laica, a de Mustafa Kemal Atatürk, a partir de 1923; a segunda, garantir por todos os meios que as mulheres turcas, incluindo as muçulmanas, possam rir quando lhes apetece. E se alguém argumentar que o riso é antecâmara do pecado, sim, conceder com algum desprendimento que há essa possibilidade maravilhosa.
[Da coluna do Correio da Manhã]
O seu livro mais famoso – tirando o projeto da Enciclopédia, que dirigiu com D’Alembert – é A Religiosa (de 1760 mas publicado em1796), um livro sobre a brutalidade do encarceramento de uma mulher num convento. Da história real passou-se para o retrato de conjunto, favorecido pelos dias da Revolução Francesa, que iria incendiar igrejas e reputações. Mas Diderot, que morreu há 230 anos, em Paris, é um exemplo e um modelo do Iluminismo. Se a fé em Deus lhe foi estranha durante metade da vida, a fé no conhecimento constituiu uma espécie de bússola. Sendo vulgar dizer-se que um homem é “produto do seu tempo”, é preciso insistir em que o tempo de Diderot e o que se lhe sucedeu foi também resultado dessa fé apaixonada do autor de Jacques, o Fatalista. A Enciclopédia é a melhor prova. Pensava-se que, ao dominar aquela catedral de saber, se era uma pessoa melhor. Temos dúvidas, mas sempre é um avanço.
[Da coluna do Correio da Manhã]
Voar de Toulouse a Dacar, passando por Casablanca, sobrevoando primeiro a estreita faixa do Mediterrâneo, entrando nas areias do deserto a sul de Essaouira e Marraquexe, ver pela primeira vez aquele pequeno promontório de Tarfaya antes de observar como as tribos de caminhantes se dirigiam a Nouakchot. Sigo o percurso maravilhoso de Antoine de Saint-Exupéry em Correio do Sul e em Voo Noturno, onde encontramos sinais dessa viagem aos comandos do seu avião – e da sua vida em Tarfaya durante cerca de dois anos. Podemos invejá-lo, sim. Mas o que conhecemos dele é sobretudo O Principezinho, publicado um ano antes da sua morte (no final da guerra, com o seu avião abatido sobre o mar, pelos alemães), e que constitui o cerne do seu testamento literário. Foi o livro que o fez justamente famoso, lido por milhões de leitores. Saint-Exupéry morreu a 31 de Julho de 1944, passam agora 70 anos.
[Da coluna do Correio da Manhã]
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.