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À primeira leitura nem nos damos conta da enormidade. Mas, vejam bem, a Venezuela está no caminho do socialismo e — dados os progressos já registados — avança para um novo patamar: o socialismo biométrico: a partir de agora, o governo controlará a venda de bens de consumo — vai ser possível receber informações sobre o que os venezuelanos compram, em que quantidade e com que frequência, impedindo-os (por exemplo) de adquirir o mesmo alimento mais de uma vez na semana. Segundo Maduro, «o sistema biométrico será perfeito».
Vale a pena recordar Lenine: o pior governo não é aquele que comete erros mas aquele que, cometendo-os, não consegue corrigi-los. É o caso do ‘governo’ da União Europeia. Veja-se o caso: depois de errar na gestão da “questão russa e ucraniana”, a Europa, vestida de espartilho, saiote e com laca no cabelo – como uma velha dama que ainda se julga poderosa e influente –, impôs sanções à Rússia, que retaliou e decretou um embargo a produtos europeus. A UE foi então “obrigada” a destinar 125 milhões aos agricultores que exportam para a Rússia, a fim de compensar as perdas dos produtores de frutas, legumes & vegetais perecíveis, além de esconder os permanentes dislates diplomáticos dos guerreiros de salão em Bruxelas – e manter a face. Não custa muito adivinhar quem vai pagar estes 125 milhões (e os outros). É nisto que a UE se revela incorrigível: na sua capacidade de errar sucessivamente e sem remorso.
[Da coluna do Correio da Manhã]
Eça de Queiroz defendia que vendêssemos as colónias (ao metro quadrado, mais lucrativo) mas também não lhe desagradaria que Portugal fosse derrotado numa hipotética guerra, a fim de perdermos, finalmente, a nossa independência. A relação dos inteletuais do século XIX com o país esteve sempre marcada pela desilusão e pelo pessimismo. Eça, Ramalho, Brandão, Herculano, Antero, Fialho, Laranjeira, Camilo – a lista de melancólicos é longa e brutal. Quando leio o grande ‘Portugal Contemporâneo’, de Oliveira Martins, é como se o país repetisse hoje todos os erros e patetices de há cem anos. Ontem, no CM, Luciano Amaral falava do estado da economia: para resolver todo “o problema”, era preciso um “programa de ajustamento” ainda mais duro; mas isso ia destruir-nos durante décadas. Vender as colónias hoje é impossível – e não me parece boa ideia sermos derrotados noutra guerra. Pelo menos antes das eleições.
[Da coluna do Correio da Manhã]
Na fila do supermercado, mesmo à minha frente, a adolescente bronzeada protesta porque a mãe comprou uvas com grainha (“sementes”, diz ela). Percebo a sua angústia imbecil; há anos, uma rapariga da televisão também anunciou ao mundo que comia uvas e cerejas depois de a empregada da família lhes tirar grainhas e caroços (era “um mimo”). Há coisas que têm os dias contados. Um dia destes, noutro supermercado, uma jovem casadoira admirava-se porque os espinafres “tinham raízes” e não eram as folhas verdes e assépticas que retirava de uma sacola de plástico; a ASAE, em próxima oportunidade, virá em seu socorro – toda a gente sabe que os espinafres nascem no ar e que as pevides da melancia são colocadas lá por patifes sem noção e com perversões sádicas (que não leram a diretiva europeia que institui “uma nova era para os pepinos curvos e as cenouras nodosas”). Há qualquer coisa aqui que não bate certo. A incompatibilidade com o real é uma hipótese, mas a ideia de que o mundo foi criado em laboratório também me inquieta.
[Da coluna do Correio da Manhã]
Que as mulheres turcas, incluindo as muçulmanas, possam rir quando lhes apetece — era este o assunto, depois das declarações do vice-primeiro ministro turco, Bulent Arinc, pedindo às mulheres castidade em geral e sisudez no espaço público, e antes da reeleição de Recep Tayyip Erdoğan.
A agência literária Kalem, de Istambul, reuniu-se aqui para uma sonora gargalhada e enviou a sua amável fotografia, que agradecemos.
No fundo, namorar com Lauren Bacall tinha sido um sonho de juventude. Namorar é uma maneira de dizer. Passear à beira-mar, dizer-lhe que Humphrey foi bom compincha mas que eu estaria à altura, levá-la a comer lagostins, ler-lhe sonetos, cozinhar, preparar-lhe um whisky, ir buscar-lhe os seus cigarros sem filtro. E agora, o que poderia eu dizer àquela mulher? Havia mais gente à mesa, mas eu estava à sua frente e os outros falavam de cinema. Ela ouvia (era um restaurante em Tróia, diante do mar) e fumava cigarros sem filtro. Então, eu disse a pior das banalidades, que nem um adolescente: “Gosto tanto de si.” Ela deitou a cabeça para trás e riu. Uma gargalhada que havia de tirar o tesão a Humphrey, como em To Have and Have Not, em The Big Sleep ou Key Largo. “Desculpe, não fui capaz de melhor”, disse-lhe eu. Respondeu ao acender um novo cigarro: “Sim, mas foi capaz de o dizer.” Foi em 1993. Na altura havia Chesterfield sem filtro.
[Da coluna do Correio da Manhã]
Uma notícia boa: num arquivo de Sevilha foi anteontem anunciada documentação que liga Miguel de Cervantes a uma dama – Magdalena Enríquez. Ela estava autorizada por Cervantes (que na altura se encontrava na situação de «desocupado» na cidade andaluza...) a «levantar o soldo». Encontrar um amor de 1593 é digno o bastante para folhear o Quixote em homenagem.
Este é um dos melhores posts – não sobre Emídio Rangel, mas sobre a actividade política: «Uma sociedade civilizada, isto é, livre, deve começar por entender bem a verdadeira natureza da acção política e depositar nela a expectativa de que não lhe seja excessivamente nociva.»
Num livro sobre “os grandes criadores”, Paul Johnson começa por elogiar os humoristas. Talvez porque a nossa vida precise bastante do seu riso, da sua capacidade de enfrentar a escuridão – ou, às vezes, de a revelar em todo o seu perigoso esplendor. Robin Williams possuía esse génio irreparável e desconcertante, um rosto feito para a comédia e para a tragédia, uma voz que desafiava, destruía e reparava a harmonia perdida. Durante mais de uma década todos seguimos essa disputa entre ‘Bom Dia Vietname’ e ‘O Clube dos Poetas Mortos’, até chegarmos a ‘O Bom Rebelde’. Já sabíamos, antes dele, que o humor não é o aroma de uma felicidade jovial e a salvo de interrogações. O que estava nos seus filmes era essa suspeita: o humor não é uma parvoíce inventada para imbecis, nem uma proteção contra a perda, o lado negro das coisas, os “estados de melancolia”. O humorista deu a sua vida por nós. Isso não o salvou.
[Da coluna do Correio da Manhã]
Um dia vamos esquecer os livros e as gargalhadas – e tudo o resto. Mas não a Dóris. Escrever sobre a morte; às vezes são assim os nossos dias. Dóris Graça Dias nasceu em Moçambique (1963), morreu agora em Lisboa. Crítica, professora, leitora incansável, viajante sempre. Também ela conhecia o riso que não engana.
(Foto de Dóris; Dóris e José Riço Direitinho – esta última publicada hoje por José Riço Direitinho na sua página de Facebook: «Quando ainda sorríamos e não sabíamos.»)
A mais recente descoberta da histeria alimentar tem a ver com a frutose. Está nas primeiras páginas. De cada vez que almoço com pessoas com menos de cinquenta anos, é vulgar ser alertado para os «venenos» do meu prato; a frutose é a última loucura. Parece que o açúcar da fruta é terrível. Às vezes sou olhado de lado porque uso açúcar no café (não conheço nenhum país produtor de café que o beba sem açúcar) e assisto a conversas sobre os flocos de aveia, como se alguém no seu perfeito juízo os comesse salvo por razões de saúde (aquilo sabe mal, ponto). Não consigo uma refeição sem que apareça uma alma a contar as calorias ou a murmurar «ui, veneno...» ao verificar que molho o pão no azeite, como os meus antepassados. Se acrescentarmos a isso a abundância de 'chefs' em vez dos cozinheiros de antanho, mais a ideia de comer uma bolacha de farelo de duas em duas horas, eis um mundo estupidificado pela comida.
[Da coluna do Correio da Manhã]
Na semana passada, o Journal of Applied Social Psychology divulgou três estudos sobre as consequências da leitura das histórias de Harry Potter por jovens em idade escolar. Os resultados não são surpreendentes, mas alegraram os “cientistas sociais”: depois de lerem os livros de J.K. Rowling, os adolescentes ficam mais tolerantes em relação a temas como a imigração ou a homossexualidade, por exemplo, e menos disponíveis para o racismo ou a xenofobia. Isto faz-me lembrar que há uns tempos, passeando em Santiago de Compostela com o escritor Carlos Quiroga, descobri uma Biblioteca de Buenas Lecturas (fica perto da Catedral). Nenhum de nós riu da ideia – a de que há leituras “boas” e leituras “más” – que contraria o princípio, muito divulgado hoje, de que não interessa o que se lê. O critério não é moral, evidentemente – avalia-se pelos resultados. As bibliotecas de Hitler e de Mao eram vastíssimas.
[Da coluna do Correio da Manhã]
Rui Veloso respondeu às tresleituras disparatadas da sua entrevista ao DN – e anunciou disco novo em 2015. Uma horda de patetas apareceu nas “redes sociais” para lamentar o adeus de outro músico desiludido com o país, retirado e amargurado; este é o habitual discurso da banalidade e da queixinha barata. Muitos apressaram-se a prever a hecatombe do costume: estão a matar Portugal, vejam. O problema dos músicos é sombrio porque dependem da concorrência, do gosto, da banalização e, vá lá, do cansaço. Mas não afeta apenas músicos: outros autores (e outras profissões) sofrem o mesmo desgaste e não culpam a pátria. O tempo devora os seus filhos; o nosso tempo devora tudo com mais crueldade ainda, com a ajuda da tv e da internet. Além de que não é possível alimentar com dinheiros públicos uma indústria na qual as autarquias gastaram milhões durante anos de concertos gratuitos. Esse festim acabou.
[Da coluna do Correio da Manhã]
Nicolau de Cusa (por ter nascido em Cusa, Kues, não muito longe da atual Mainz, Alemanha) morreu há 520 anos em Itália. Nos tópicos de história da filosofia das nossas escolas ele aparece muito raramente, mesmo quando se invoca o princípio da “douta ignorância”, título de uma das suas obras (de 1440). Antes do cisma protestante (as “Teses” de Lutero são de 1517), Nicolau já estava entre dois mundos, depois de ter escrito um tratado – ignorado – sobre a necessidade de mudar a igreja do seu tempo. O mais fascinante na sua obra é, porém, o apelo à razão e, simultaneamente, o fascínio pelo incompreensível e pelo desconhecido: Deus era, para Nicolau (que, além de teólogo, era físico e matemático), essa matéria sem geometria, sem designação e sem centro. A sua cosmologia era, por isso, revolucionária para a época; tinha a ver com os sonhos – se o mundo era infinito e desconhecido como poderia ter um centro?
[Da coluna do Correio da Manhã]
Há tempos, uma universidade novaiorquina disponibilizou um algoritmo para analisar um livro e determinar se está ou não destinado à categoria de best-seller. Agora, um grupo de investigadores da universidade de New South Wales, Austrália, acaba de construir um programa informático (o The Moral Storytelling System) destinado a escrever histórias com um “epílogo moral”. Neste caso, trata-se de pequenos textos que retomam as categorias e estados morais presentes, por exemplo, nas fábulas de Esopo, como a ganância, o orgulho, a imprudência, a recompensa, o remorso, a inveja ou a gratidão. A complexidade de uma história literária nunca será reproduzida dessa forma – e a literatura não tem a ver com virtudes morais ou cívicas. Mas, observando a promiscuidade abjecta entre a vida política e a vida financeira portuguesa, dois ou três parágrafos gerados por computador bastariam para dar conta do assunto.
[Da coluna do Correio da Manhã]
Em O Nome da Rosa, de Umberto Eco, o frade Jorge de Burgos achava que o riso era a antecâmara do pecado (o livro perdido da Poética, de Aristóteles, dedicado à comédia, estava envenenado). Semelhante opinião tem Bulent Arinc, vice-primeiro-ministro turco, que aconselhou as mulheres a serem mais sisudas “em espaço público”, evitando rir por dá cá aquela palha. É uma posição consentânea com certa leitura do Corão – provavelmente a mesma que leva o novo “imã” do califado sírio-iraquiano a decretar a excisão do clítoris a todas as mulheres que vivem no seu território; nem prazer, nem riso em público, nem praia, nem autorização para conduzir carros ou para viajar. Mas, pelo menos na Turquia de Bulent Arinc (e na de Erdoğan) sem riso. Há duas perspetivas: uma, explicar que foi contra este cenário que foi fundada a Turquia moderna e laica, a de Mustafa Kemal Atatürk, a partir de 1923; a segunda, garantir por todos os meios que as mulheres turcas, incluindo as muçulmanas, possam rir quando lhes apetece. E se alguém argumentar que o riso é antecâmara do pecado, sim, conceder com algum desprendimento que há essa possibilidade maravilhosa.
[Da coluna do Correio da Manhã]
O seu livro mais famoso – tirando o projeto da Enciclopédia, que dirigiu com D’Alembert – é A Religiosa (de 1760 mas publicado em1796), um livro sobre a brutalidade do encarceramento de uma mulher num convento. Da história real passou-se para o retrato de conjunto, favorecido pelos dias da Revolução Francesa, que iria incendiar igrejas e reputações. Mas Diderot, que morreu há 230 anos, em Paris, é um exemplo e um modelo do Iluminismo. Se a fé em Deus lhe foi estranha durante metade da vida, a fé no conhecimento constituiu uma espécie de bússola. Sendo vulgar dizer-se que um homem é “produto do seu tempo”, é preciso insistir em que o tempo de Diderot e o que se lhe sucedeu foi também resultado dessa fé apaixonada do autor de Jacques, o Fatalista. A Enciclopédia é a melhor prova. Pensava-se que, ao dominar aquela catedral de saber, se era uma pessoa melhor. Temos dúvidas, mas sempre é um avanço.
[Da coluna do Correio da Manhã]
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