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Passam hoje 120 anos sobre o nascimentos de Louis-Ferdinand Céline (1894-1961). Há uma novidade brutal na sua obra, uma desesperança quase criminosa: Morte a Crédito, Viagem ao Fim da Noite ou Norte fornecem as peças essenciais, notáveis, desse retrato do “escritor maldito”. Mas, por muito conveniente que seja, Céline não é maldito: uma parte substancial da sua obra é apenas um testamento anti-semita, vergonhoso (Vão Navios Cheios de Fantasmas). Deve ser julgado por isso, ou devemos valorizar a sua obra devastadora, que mudou a língua literária do seu tempo? Hoje, em época de paz, temos de fazer um esforço para recolocá-lo no lugar dos seus tormentos: “Eu matei muito”, dizia Céline sobre a sua memória da I Guerra. Nunca se é o mesmo depois disso. Tudo deixa de existir (ele não acreditava no amor): a decência, a normalidade, a vida plena. Sim, era um ser abjecto, um escritor único e impiedoso.
[Da coluna do Correio da Manhã]
Lembram-se de O Falcão de Malta, ou Relíquia Macabra, o filme de John Huston com Humphrey Bogart e Mary Astor? Antes disso era um livro – o berço de Sam Spade, o detective criado por Dashiell Hammett nesse livro de 1930 (o filme é de 1941) e que depois apareceu em vários contos de Hammett, de quem amanhã se assinalam os 120 anos do seu nascimento. Wim Wenders fez um filme em sua homenagem (Hammett, de 1982, a partir do livro de Joe Gores): é o retrato do “escritor perdido”, doseando literatura e política, apaixonado (por Lilian Hellmann), contraditório, ex-detective da Agência Pinkerton, consumido pelo álcool e pela América. A literatura policial não seria a mesma sem ele – A Chave de Vidro, A Maldição dos Dain ou Colheita Vermelha e O Homem Sombra estão traduzidos (sem falar das histórias do Agente Secreto X-9). Mas Falcão de Malta é uma obra-prima impossível de esquecer, o anúncio do policial moderno e marcado pelo medo.
[Da coluna do Correio da Manhã]
Será da Europa? Será dos franceses? Será da França? Claro que não, até porque não há uma coisa como “os franceses” – mas tenho o direito de duvidar; o chauvinismo, o “populismo dos comerciantes e funcionários” e o poujadismo estão lá. Tal como a tentação da capitulação, da velha Action Française e do revisionismo histórico, com a sua mistura de arrogância nacionalista, anti-semitismo minucioso e comprovado, e racismo beligerante. Desta vez, Jean-Marie Le Pen foi escutado a dizer que o vírus ébola resolveria os problemas da imigração em três meses. Ele tem razão, caramba – basta ler ‘A Peste’, de Albert Camus (Nobel francês nascido na Argélia, já agora, um ‘pied-noir’): o vírus desperta de tempos a tempos, guardado de geração em geração, administrado com cautelas. Nada a fazer. Na França, estes demónios despertam com inigualável qualidade, certa pompa e aquele ar de velhacaria cheia de advérbios e honras passadas, contra os polacos, os judeus, os americanos, os portugueses, os pretos, os chineses, seja quem for. Tudo menos os franceses, claro.
[Da coluna do Correio da Manhã]
Um dos meus sonhos era o de escrever uma coluna diária sobre meteorologia, a evolução das estações do ano, o estado do tempo, como Joe Shute, no Daily Telegraph. Há dias ele comentava o que tinha observado no País de Gales: “campos de ouro” estendidos até ao mar – prímulas, calêndulas, margaridas, dentes-de-leão, goivos do mar, hipericão. O esplendor de maio, portanto. O que este termóstato favorece: passeios, namoros, piqueniques e neblinas matinais no Atlântico. Previsão para os próximos dias: marés suaves, poemas de Ruy Belo, descida de temperatura agradável e acrescentar terra aos vasos das varandas. A primeira exposição ao sol multiplica o tom rosado em rostos pálidos, faz apetecer grelhados e caminhadas a norte do Cabo da Roca. A meteorologia é o pórtico da harmonia das coisas, juntamente com a floração dos hibiscos, das magnólias e dos bolbos mais tardios. Simples como as coisas simples.
[Da coluna do Correio da Manhã]
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