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Subscrevo, naturalmente, este post do Rui Rocha. Bem vindo à campanha em defesa dos cozinheiros e cozinheiras de antanho.
Terceira série das traduções de poemas de Roberto Bolaño. As anteriores aqui e aqui.
[AUTORRETRATO]
Nasci no Chile em 1953[1] e vivi em várias e
distintas casas.
Depois, chegaram os amigos pintados por Posadas
e a região mais transparente do mundo
pintada por um velho e clássico pintor mexicano
do século XIX cujo nome consegui
esquecer por completo.
Entre um extremo e outro só vejo
o meu próprio rosto
que sai e entra no espelho
repetidas vezes.
Como num filme de terror.
Sabes a que me refiro?
Àqueles que chamávamos de terror psicológico.
[HORDA]
Poetas de Espanha e da América Latina, o mais infame
Da literatura, surgiram como ratazanas do fundo do meu sonho
E transformaram os seus guinchos num coro de vozes brancas:
Não te preocupes, Roberto, disseram, nós nos encarregaremos
De fazer-te desaparecer, nem os seus ossos imaculados
Nem os teus escritos que cuspimos e plagiamos habilmente
Emergirão do naufrágio. Nem os teus olhos, nem os teus tomates,
Se salvarão deste ensaio geral de afogamento. E vi
As suas carinhas satisfeitas, graves adidos culturais e rosados
Directores de revistas, leitores de editoras, e pobres
Revisores, os poetas de língua espanhola, cujo nome é
Horda, os melhores, as ratazanas fedorentas, banhos
Na dura arte de sobreviver em troca de excrementos,
De exercícios públicos de terror, os Neruda
E os Octavio Paz de bolso, os porcos insensíveis, abside
Ou arranhão no grande edifício do Poder.
Horda que detém o sonho do adolescente e a escrita.
Meu Deus! Debaixo deste sol gordo e seboso que nos mata
E nos diminui.
[A POESIA LATINO-AMERICANA]
É horrível, cavalheiros. A vacuidade e o espanto.
Paisagem de formigas
No vazio. Mas no fundo, úteis.
Leiamos e contemplemos o seu fluir permanente:
Ali estão os poetas do México e da Argentina, do
Peru e da Colômbia, do Chile, Brasil
E Bolívia
Comprometidos com as suas parcelas de poder,
Em pé de guerra (permanentemente), dispostos a defender
Os seus castelos da investida do Nada
Ou dos jovens. Dispostos a pactuar, a ignorar,
A exercer a violência (verbal), a fazer desaparecer
Das antologias os elementos subversivos:
Alguns velhos fora de moda.
Uma atividade que é o fiel reflexo do nosso continente.
Pobres e débeis, são os nossos poetas
Quem melhor encenam essa contingência.
Pobres e débeis, nem europeus
Nem norteamericanos,
Pateticamente orgulhosos e pateticamente cultos
(Ainda que mais nos valeria aprender matemáticas ou mecânica,
mais nos valeria lavrar e semear! Mais nos valeria
fazer de maricas e de putas!)
Perus recheados de peidos dispostos a falar da morte
Em qualquer universidade, em qualquer balcão de bar.
Assim somos, vaidosos e lamentáveis,
Como a América Latina, estritamente hierárquicos, todos
Em linha, todos com as nossas obras completas
E um curso de inglês ou francês,
Fazendo fila nas portas
Do Desconhecido:
Um Prémio ou um pontapé
Nos nossos cus de cimento.
[AUTORRETRATO]
Cabecilha aos 8 anos, ninguém suspeitou
que aquele que tinha mais medo era eu.
O ruivo Barrientos e o louco Herrera
foram os meus capitães mais fiéis
naquelas manhãs rosadas de Quilpué[1]
quando tudo se desmoronava à minha volta,
mas Bernardo Ugalde foi o meu amigo mais sábio.
Nas vésperas do Mundial de 62[2]
Raúl Sánchez e Eladio Rojas[3] apoiavam-nos
na defesa e no meio campo: os avançados
éramos nós.
Valentes e audazes, como se iludíssemos a morte,
a minha trupe continuava a lutar
enquanto os autocarros matavam os miúdos solitários.
Assim, sem nos darmos conta,
fomos perdendo tudo.
[O REGRESSO DE ROBERTO BOLAÑO]
1.
Regressei às putas do Chile e não houve bordel
onde não tivesse sido recebido como um filho
como o irmão que regressa no meio do nevoeiro
e escutei uma música deliciosa
uma música de guitarra e piano e congas
boa para dançar
boa para alguém se deixar ir
e saltitar de mesa em mesa
de par em par
saudando os presentes
para todos um sorriso
para todos uma palavra
de reconhecimento
2.
Regressei pálido como a lua
e sem demasiado e entusiasmo
aos bordeis da minha pátria
e as putas sorriram-me
com um calor inesperado
e uma que provavelmente não tinha
30 anos
embora aparentasse 50
levou-me a dançar
um samba ou um tango
juro que não recordo
no meio da pista iluminada
pela lua e as estrelas
3.
Regressei já pacificado
bastante doente
fraco e sem dinheiro
e sem plano para arranjá-lo
sem amigos
sem uma triste pistola
que me ajudasse a abrir
algumas portas
e quando tudo parecia levar-me
ao lógico desastre final
apareceram as putas e os bordéis
as canções que dançavam
os velhos chulos
e tudo voltou a brilhar
[A LUZ]
Luz que vi nos amanheceres de México D.F.
Na Avenida Revolución ou em Niño Perdido,
Luz fodida que magoava as pálpebras e te fazia
Chorar e esconder-te em algum daqueles autocarros
Enlouquecidos, aquelas carrinhas que te faziam viajar
Em círculos pelos subúrbios da cidade escurecida.
Luz que vi como um único punhal levitando
No altar dos sacrifícios de D.F., o ar
Cantado pelo Dr. Atl[4], o ar imundo
Que tentou capturar Mario Santiago. Ah, a fodida
Luz. Como se fodesse consigo mesma.
[1] Bolaño passou a sua infância em Valparaíso – foi em Quilpué que fez os seus primeiros estudos.
[2] O campeonato mundial de futebol de 1962 realizaou-se no Chile e foi ganho pelo Brasil. Alguns dos jogos realizaram-se em Viña del Mar (no Estádio Sausalito), província de Valparaíso, não muito longe de Quilpué.
[3] Eladio Rojas (1934-1991, médio, jogou no Everton (clube de Viña del Mar), no River Plate, da Argentina, e no Colo-Colo, de Santiago) e Raúl Sánchez (1933, defesa, jogador do Santiago Wanderers e do Colo-Colo), futebolistas chilenos.
[4] Pseudónimo de um pintor, escritor, vulcanólogo, jornalista e politico mexicano (1875-1964). Viajou pela Europa, foi mestre de pintores como Orozco e Siqueiros, aderiu à Revolução Mexicana de 1910 e ao seu «socialismo bíblico» e posteriormente declarou a sua simpatia por Hitler. Pintor de paisagens, dedicou-se a representar os vulcões mexicanos.
Jø Nesbo e Yrsa Sigurðardóttir
A ideia de “produzir” uma sequela da trilogia Millenium, do malogrado Stieg Larsson, tem algum sentido: trata-se de arranjar uma nova história para os personagens Blomqvist & Lisbeth Salander, bem como situá-la naquele cenário que fascinou milhões de leitores. O livro, que poderá ser publicado em 2015, está a suscitar interesse até em meios académicos (como na Faculdade de Letras do Porto, onde se estuda a literatura policial, graças a Maria de Lurdes Sampaio ou a Gonçalo Villas-Boas). O universo nórdico deslocou e alterou o modo como olhamos o policial. Autores como Camilla Lakberg, Larsson, Mons Kallentoft, Jø Nesbo ou Yrsa Sigurðardóttir introduziram na mecânica do género alguns ingredientes que dificilmente passavam no filtro do policial americano, mais formal e “seco”: uma dimensão humana e temperamental menos urbana e mais “poética” (que existia em autores do sul da Europa). A “descoberta dos nórdicos” é uma revolução sentimental na literatura.
[Da coluna do Correio da Manhã.]
P.D. James, uma das grandes autoras britânicas de policiais, entre os quais Gosto pela Morte (uma jóia) e Desvios e Desejos, publicou Morte em Pemberley’ (Porto Editora) em 2013, e não foi por acaso: comemoravam-se os 200 anos de Orgulho e Preconceito, um dos romances do nosso cânone. De que trata Morte em Pemberley? De Orgulho e Preconceito: depois do casamento de Elizabeth e Fitzwilliam Darcy (basicamente, é assim que termina o livro de Jane Austen), o marido de Lydia, irmã de Elizabeth, é assassinado. Este é o pretexto para P.D. James regressar ao policial, que ama, e a Orgulho e Preconceito, que todos os ingleses amam. Na semana passada explicou isso no Telegraph: as personagens do livro de Jane Austen são tão perfeitas que se justifica que revivam noutros livros. Este ano assinalam-se 70 anos sobre Mau Tempo no Canal. Poucos se vão interessar pelo Faial e São Jorge ou Pico, por Margarida Dulmo, pelo tio Clark, pelas tempestades no canal. Estamos a perder a capacidade de nos encantar.
[Da coluna do Correio da Manhã.]
O New York Times publicou uma conversa com Marcello Dell’Utri, 72 anos, antigo senador, amigo de Silvio Berlusconi e condenado por associação à Mafia. O que existe de recomendável na sua figura? Nada. No labirinto da troca de favores da política italiana, Dell’Utri ajudou várias pessoas a “subir na carreira”, mas a ninguém como Massimo De Caro, antigo diretor da biblioteca Girolamini, de Nápoles, preso depois de se saber que roubava livros antigos do monumental arquivo daquela biblioteca barroca, uma pérola napolitana – e os entregava a Dell’Utri, bibliófilo confesso, com um gosto muito apurado por livros dos séculos XVI e XVII, e que chegou a pedir a Berlusconi um prefácio para uma edição facsimilada de O Príncipe, de Maquiavel. Milhares de livros roubados foram encontrados na biblioteca de De Caro, entretanto contratado pelo governo como especialista em energias renováveis. Um folhetim.
[Da coluna do Correio da Manhã.]
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