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[A MINHA CARREIRA LITERÁRIA]
Recusas de Anagrama, Grijalbo, Planeta, com toda a certeza
[também de Alfaguara,
Mondadori. Um não de Muchnik, Seix Barral, Destino...
[Todas as editoras... Todos os leitores...
Todos os gerentes de vendas...
Debaixo da ponte, enquanto chove, uma oportunidade de ouro para
[ver-me a mim mesmo:
Como uma serpente no Pólo Norte, mas escrevendo.
Escrevendo poesia nos país dos imbecis.
Escrevendo com o meu filho nos joelhos.
Escrevendo até que cai a noite
com um estrondo dos mil demónios.
Os demónios que hão de levar-me ao inferno,
mas escrevendo.
[ESTA É A PURA VERDADE]
Fui criado ao lado de revolucionários puritanos
Fui criticado ajudado empurrado por heróis
da poesia lírica
e do baloiço da morte.
Quero dizer que o meu lirismo é diferente
(já tudo está escrito mas permitam-me
acrescentar qualquer coisa mais).
Nadar nos pântanos da vulgaridade
é para mim como uma Acapulco de mercúrio
uma Acapulco de sangue de peixe
uma Disneilândia submarina
Onde estou em paz comigo.
[O ENTARDECER]
O pai de Lisa viu passar esse entardecer
até lá em baixo
até México D.F.
O meu pai viu esse entardecer calçando as luvas
antes do seu último combate[1].
O pai de Carolina viu esse entardecer
derrotado e doente depois da guerra. O mesmo
entardecer sem braços
e com os lábios
delgados como um queixume.
O que o pai de Lola viu trabalhando numa
fábrica de Bilbau e o que
o pai de Edna viu procurando as palavras
exactas da sua prece.
Esse entardecer fantástico!
Aquele que o pai de Jennifer contemplou
num barco no Pacífico
durante a Segunda Guerra Mundial
e o que o pai de Margarita contemplou
à saída de uma taberna
sem nome.
Esse entardecer corajoso e trémulo, indivisível
Como uma seta lançada ao coração.
[1] Léon Bolaño, pai de Roberto Bolaño, foi boxeur e condutor de camiões. Chegou a ganhar o titulo de campeão de pesos pesados antes de conhecer Victoria Avalos, professora primária, com quem casou e com quem se mudou para Quilpué. Léon e Victoria separaram-se em 1973. Léon e Roberto Bolaño não se viram durante 22 anos – o encontro entre os dois deu-se em Madrid, em 2000, quando o escritor trabalhava em 2666. «Matou-se por causa desse livro. Quase não dormia, era uma obsessão», declarou Léon Bolaño em 2006. O pai soube da morte de Roberto apenas dois dias depois.
A ideia de as pessoas se despirem é-me simpática. Durante um ou dois anos imaginei como seria Gillian Anderson nua – sim, por causa de Ficheiros Secretos –, e tenho uma lista com outros nomes. Gillian Anderson acaba de aparecer nesses termos, abraçada (é uma maneira de dizer) a um congro por causa de uma campanha da Fishlove, “em defesa da pesca sustentável”. Preferia um peixe mais simpático e com menos espinhas, mas enfim. Periodicamente, atrizes, atores, modelos, gente comum, magérrima ou bem nutrida, aparece nua em defesa de princípios morais e em campanhas políticas ou causas estapafúrdias. O ativismo nu enternece-me, mesmo no inverno. Há quem se dispa em calendários de râguebi ou de bombeiros, em protesto contra os maus tratos a animais ou em defesa dos direitos das aves de arribação. Na Argentina, um grupo de feministas despiu-se para insultar e agredir uns rapazes católicos que rezavam pacificamente. O corpo deixou de ser corpo. É agora uma espécie em vias de extinção. Que pena.
[Da coluna do Correio da Manhã.]
Um texto antigo do Origem das Espécies, agora que ele se prepara para treinar trivelas nos próximos tempos:
«Devia existir uma espécie de guarda de honra em redor de Quaresma, para recuperar as bolas que ele perde e entregar-lhas outra vez, para que ele possa repetir a finta ou fazer de novo o que ele fez a Adalto, passando-lhe a bola por cima. Valdano, há tempos, escrevia sobre essa arte de fazer coisas estranhas, próximas do talento puro, situando Quaresma entre os grandes artistas. Mas Quaresma é solista de outra música. Há jogadores que tomam o seu lugar numa grande orquestra; há os que reconhecemos em música de câmara; há os solistas extravagantes, como Cristiano Ronaldo (que os scolarianos perseguiram à pedrada durante um ano inteiro) ou Messi, que não podemos perder de vista. E há os que saltam para o palco ora a solo, ora com o seu grupo, bailaores, cantaores e guitarristas. Sentem-se bem no tablao; não compreendem que interpretam um papel de tragédia, mas sabem passar do cante corto para o cante grande com um silêncio demolidor. A metáfora é propositadamente gitana. O cante p'alante deve ser escutado pelo público e a estrela é o cantaor; Quaresma interpreta-o algumas vezes, em trivelas fantásticas. Mas ele dá-se bem com o cante p'atrás, onde serve o conjunto de bailaores principais, e essa é uma virtude rara. O golo de hoje arrancou-lhe um sorriso aberto, largo, que o acompanhou até ao final como um jaleo cheio de brilhos adolescentes, tra tra tantan, trajili trajili traji, sons desconexos, mas sempre com voz afillá, rouca, de bandoleiro.»
Rentes de Carvalho em Estevais, Mogadouro.
A história de J. Rentes de Carvalho dava para dois bons volumes, mas só ele poderá contá-la. A nós, basta a alegria de saber que, aos 83 anos, é finalmente reconhecido pelos seus – mais pelos seus leitores do que pelos seus pares, que olham desconfiados para um português que viveu quase toda a sua vida na Holanda, onde os seus livros são bestsellers. E de que tratou nesses livros? Imagens, personagens, patifarias, mitos, manias, fragmentos de um país, Portugal, que frequentemente se esquece da sua certidão de nascimento. Depois de em 2012 ter recebido o Grande Prémio de Literatura Autobiográfica com Tempo Contado, é este ano distinguido com o Grande Prémio APE de Crónica (com Mazagran, textos da imprensa holandesa). Pelo meio, romances deliciosos como La Coca, Ernestina, Mentiras e Diamantes ou A Amante Holandesa. 83 anos de bilhete de identidade, é isso que são os seus livros. Na próxima terça-feira recebe, em Sintra, o Grande Prémio APE de Crónica.
Texto lido por J. Rentes de Carvalho em novembro de 2012,
na entrega do Grande Prémio APE de Literatura Autobiográfica:
«Os tolinhos. Os bufos. Os convencidos. Os pategos. Os membros e as suas esposas. Os amigos dum gajo que conhecemos há muito e não é sério. Os fanáticos. Os sinceros. Os que foram maoístas. As bruxas. Os inimigos do povo. As irmãs do Salazar. Os compadres. Os hesitantes. O senhor Pacheco do táxi, do aviário e da bomba da gasolina. Os que comem peixe à sexta-feira. Os sócios benfeitores da Associação dos Bombeiros Voluntários de Oliveira de Azeméis. O médico dos Raios-X. A ex-telefonista da ex-PIDE do antigo regime. O clarim de Caçadores 9. Os filhos do falecido Prof. Dr. Joaquim do Amaral Thorensen Perestrelo Owen Ricciotti Matoso Guedes de Crespo e Bombarral (Marquês de Leça, Irmão da Ordem Terceira, Diplomé des Palmes du Mérite Agricole). O maquinista do ‘Foguete’ que levou o Papa a Braga. Os heróis do mar. Os gloriosos combatentes anti-fascistas. Os gaseados de 1914-1918 (Flandres). A tia da D. Amália Rodrigues. O cauteleiro de Cinfães. Os moradores do terceiro andar do prédio nº 42 do Beco dos Capachinhos 1300-444 Lisboa. Os que só gostam de cerveja. O que comprou as calças do Gungunhana e as ofereceu depois ao Museu de Bragança, donde parece que foram roubadas na noite de 7 de Fevereiro de 1952. A mulher do filho do vizinho do Marcelo. As figuras prestigiosas da nossa política acompanhados (acompanhadas? era o que faltava!) das respectivas esposas. O emigrante que construiu aquela casa. Os visitantes do Jardim da Estrela. Os dez mais elegantes. Os calvos, os obesos, os deficientes motores, os invisuais, os diminuídos mentais - que é como quem diz: os carecas, os buchas, os aleijadinhos, os cegos, os tarados. Os manetas e os gagos. O locutor da Rádio Renascença. O bissexual que casou com a Maria João e na intimidade lhe chama Zé Maria. O senhor doutor que está quase a chegar, não falta nada. Os três da panelinha. Os três. Os que dizem trinta e três. A Trindade. O senhor Pimpim. Os que leram Marx. O reformado que pinta aguarelas e imita muito bem o barulho da água a ferver. O eléctrico dos Anjos. Os senhores guardas. As senhoras guardas. As gentes da autoridade. Os defensores da ordem. A mulher que fugiu ao marido alcoólico e se foi juntar com um cego que tem uma barraca em Chelas. Os tocadores de violoncelo. Os fascinados pelo destino do proletariado. Os holandeses anticolonialistas, vegetarianos, com casa no Algarve. O ex-ministro. A Rosa que gosta muito de crianças. Os enfermeiros. As calistas a domicílio. A menina do quiosque. O bispo de Aveiro. Você e eu.»
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