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Fotografia de Pedro Loureiro
Depois de reler um dos capítulos de 2666, de Roberto Bolaño, relembro quando comecei a lê-lo, em Dezembro de 2008 — o Inverno ajuda muito nestes casos e sempre tive uma tentação por livros extensos para enfrentar o frio. Não há uma regra. Há quem os prefira para o Verão; sestas de férias — mesmo curtas, dependuradas sobre a tarde — são, quando se pode, o cenário ideal para que o livro demore mais nas nossas mãos. Não foi assim comigo.
O que 2666 me trouxe, nunca soube explicar senão em redor desse livro em que conheci quatro loucos apaixonados pela obra de Archimboldi, um escritor de que havia notícias vagas e em redor do qual se foi construindo uma mitologia muito parecida com a de J. D. Salinger. Desses quatro, três (é o número ideal: um triângulo amoroso ou apenas erótico — neste caso, apenas literário — do qual fica excluído um, que é o do «amor verdadeiro») partem para o México em busca de um Benno von Archimboldi que passa como uma sombra pelo painel de Santa Teresa. O que faz um escritor nascido em 1920, na Rússia, naquele cenário? O mesmo que eu fiz, muitos anos antes, nas ruas sujas de Ciudad Juárez. Não há quase nada que recomende esta cidade do estado mexicano de Chihuahua, feia e cercada pela violência, como a mais indicada para um turista, a não ser a memória do cinema (Man of Fire, com Denzel Washington, por exemplo, mas também numerosos westerns porque está ligada à fronteira texana de El Paso), da música («Cocaine Blues», de Johnny Cash e «Just Like Tom Thumb’s Blues», de Bob Dylan, para não ir mais longe) e da literatura: é um dos cenários de Cormac McCarthy.
Em 1995, Ciudad Juárez não era nada disso; apenas um cenário de papel sujo, rasgado pelos cartéis da droga e da prostituição. Havia caravanas de grandes jipes atravessando a fronteira por El Paso, em busca de droga, tequila, mulheres e má comida. O mesmo cenário para Stan Laurel e Oliver Hardy atravessarem um dos momentos mais difíceis das suas vidas (nuvens de álcool e poeira atravessando as janelas de um hotel miserável) como aparece no quase monumental A Quatro Mãos, o livro de Paco Taibo II — um dos livros «onde tudo aparece»: Trotsky escrevendo um romance policial, Malcolm Lowry abandonado nas ruas de Cuernavaca, Frida Khalo perdendo (ainda mais) a voz.
Volto atrás: eu estava em Ciudad Juárez em 1995. Treze anos depois regressei — pela mão de Bolaño. A cidade era a mesma. Eu diria a mesma coisa de Macondo, se tivesse ido a Macondo, antes de ter desaparecido.
Nem de propósito. Assinalaram-se anteontem os 450 anos sobre a última das sessões do Concílio de Trento, iniciado 18 anos antes e presidido por três papas – foi o concílio da Contra-Reforma, a confirmação da guerra contra o protestantismo e contra a heresia no interior da igreja católica. Os dois concílios posteriores são de tendências diversas: o Vaticano I, de 1869, reforçou a ortodoxia; o Vaticano II, na década de 60 do século XX, constituiu uma “abertura ao mundo”. Francisco I é hoje considerado um revolucionário, sobretudo por pessoas que não leram documentos como as encíclicas Rerum Novarum ou Pacem in Terris. Mesmo assim, a igreja precisa de fazer a reforma que devolva algum entusiasmo a um mundo deprimido, e observar as consequências dos seus textos doutrinários em matéria social, por exemplo. Não para alegrar a ‘opinião pop’, flutuante; mas para provar que a sua mensagem tem sentido.
[Da coluna do Correio da Manhã.]
Há, na história humana, períodos de demência que, à distância, nos parecem ridículos apesar das explicações para o sucedido. A Proibição, ou Lei Seca, que vigorou nos EUA durante 13 anos – era ilegal a produção, transporte ou consumo de bebidas alcoólicas – é um desses momentos. Várias designações de igrejas protestantes, reunidas sob os lemas da “temperança” e da virtude, do puritanismo e da necessidade de combater o alcoolismo (que atingia proporções trágicas) e de proteger “os valores”, foram o núcleo e a muralha desses 13 anos de repressão ambivalente. “Temperança”, nas línguas latinas, quer dizer “moderação” e não “perseguição radical ao vício”. Mas a América desses anos era um caldeirão de interesses (económicos, religiosos, políticos) e de pânicos; todos colaboraram e a maioria dos americanos apoiava a lei. Ontem passaram 80 anos sobre o fim da Lei Seca: bebamos com temperança e alegria.
[Da coluna do Correio da Manhã.]
A perseguição aos ciganos (etnias Romani) pelo III Reich foi sempre um tema secundário, quer pelos números quer pela intensidade de ódio e de argumentação, face à perseguição e extermínio dos judeus – mas convém não esquecê-lo porque permite desenhar, a esta distância, um mapa-múndi do terror nazi e uma escala da sua determinação em matéria de limpeza étnica. Os Einsatzgruppen (os grupos de assassinos das SS) mobilizaram contra os “romani”, a partir de 1941, algumas unidades especiais mas foi em Novembro de 1943, há exatamente 70 anos, que um dos líderes da Alemanha nazi, Heinrich Himmler, decretou que o estatuto dos “romani”, dos ciganos, era, na escala étnica, tão baixo como o dos judeus. Milhares pereceram nos campos de concentração, sobretudo em Auschwitz, e um pouco pela Hungria, Roménia, Eslováquia, Bulgária, além dos Balcãs. A Europa assistiu a essa declaração há tão pouco tempo.
[Da coluna do Correio da Manhã.]
Antes da banalização dos ‘chefs’, havia cozinhas absolutamente notáveis. Hoje em dia, os ‘chefs’ tomaram o lugar das cozinhas e, lamento informar, parte deles são vulgares, ignorantes e espertalhaços para enganar papalvos deslumbrados. Nada contra o seu estrelato, porque o merecem na sua indústria, mas convém manter algumas cautelas e bom senso. Vejam-se o Le Georges e o Café Marly, ambos em Paris; as pessoas com bom aspecto são dispostas à vista dos clientes, como uma corvina fresca; as restantes (acima dos 40 anos e com peso acima do recomendado) são colocadas atrás das colunas, para não tingirem a imagem da casa. Compreende-se. A “grande cozinha” é cada vez mais classista e medíocre, com a sua linguagem pateta e a treta do “empratamento”. Na maioria dos casos, trata-se apenas de “empratamento”, uma espécie de equilibrismo para gente ignara e rica, que nunca provou a comida das avós.
[Da coluna do Correio da Manhã.]
O Brasil, a Alemanha e (olha quem) os EUA acham que a ONU deve perorar sobre a privacidade na internet e os governos devem legislar sobre o assunto. O Brasil, tal como outros países latino-americanos (a Venezuela fecha sites consoante os apetites do presidente), sempre teve vontade de “armazenar dados” no seu território; a Alemanha está na defensiva depois de os seus Blackberries terem sido escutados pelo Pentágono; e os EUA defendem o direito a mergulhar na privacidade dos outros. Compreende-se onde querem chegar. O mais assustador é a criação de uma comissão que, em Genebra, controle a circulação de dados, sob o comando de, por exemplo, um fanático da liberdade de expressão e dos direitos humanos, vindo de Cuba, da Síria ou do Qatar, para não irmos mais longe. Que os idiotas se reúnam na internet, é uma verdade absoluta; que os estados queiram virá-los a seu favor, é uma tragédia total.
[Da coluna do Correio da Manhã.]
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