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Foz Côa & Góis.

por FJV, em 29.12.13

 

Parabéns a Vila Nova de Foz Côa e a Góis. O leitor que não estranhe, mas parece que estas duas vilas do interior do país – uma limitada pelo Douro, outra pelo chamado “pinhal interior” – foram os únicos municípios onde houve mais bens reconstruídos do que novas edificações. É uma reivindicação antiga da parte de gente sensata: autarcas que prefiram recuperar, restaurar, reedificar, do que fazer de novo, deixando um rasto de ruínas que o tempo consome e esquece. Até que outras gerações sejam obrigadas a lidar com elas. Tenho uma lista: auditórios, edifícios, palacetes que podiam albergar serviços públicos, jardins abandonados, ruas transformadas em lixeiras. O ideal de cada novo incumbente municipal é chegar e “deixar a sua marca”. O resultado está à vista pelo país fora, desordenado, desleixado e esquecido. Até os edifícios das câmaras destes concelhos são exemplares: são antigos e estimados.

[Da coluna do Correio da Manhã.]

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Best-sellers.

por FJV, em 28.12.13

Como é que emagreceste tanto, Nigella?

 

No estranho “caso Nigella Lawson” (a autora de livros e programas de culinária – além de sex symbol para a meia-idade), agora no tribunal, há revelações interessantes para além das relacionadas com o consumo de drogas e com os vários milhões dispersos por contas bancárias e gastos com cartão de crédito. Uma delas tem a ver com livros: o ex-marido de Nigella, o milionário Charles Saatchi, publicitário, é galerista e ‘colecionador de arte’. Em 2009 publicou My Name Is Charles Saatchi and I Am a Artoholic, onde responde a várias questões sobre a sua vida & obra (uma exceção, uma vez que Saatchi não dá entrevistas). O livro teve uma passagem discreta pelas livrarias, que preferiam livros de cozinha. Pelo tribunal, ficámos agora a saber que Saatchi mandava comprar centenas de exemplares nas livrarias, ou através da Amazon, para que tivesse um bom lugar nas listas de best-sellers. É a vida.

[Da coluna do Correio da Manhã.]

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O medo sueco.

por FJV, em 28.12.13

A arte ofende? Muitas vezes. Significa isso que é legítima a ação da censura para que os ofendidos deixem de se sentir ofendidos? Em Março de 2008, o Metro de Londres proibiu a pintura de uma mulher nua e seráfica, da autoria de Lucas Cranach (1472-1553) com medo de ofender os passageiros multiculturais que andavam nas suas carruagens. Por que o fizeram? Por medo que alguém achasse blasfema a pintura que Cranach compôs há quinhentos anos e que a Royal Academy exibia na época. Agora, o parlamento sueco retirou da sua sala de jantar uma pintura barroca, do século XVII, onde se divisavam uns discretos e alvíssimos seios. Por motivos, digamos, morais? Não. Porque “os muçulmanos” e “as feministas” se sentiriam ofendidos com um suavíssimo e celestial busto desnudado. O medo instalou-se definitivamente. Tudo é pode ser uma ofensa. Há uma lista em aberto para destruir a inocência do nosso mundo.

[Da coluna do Correio da Manhã.]

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Poemas de Roberto Bolaño, 2.

por FJV, em 07.12.13

[LISA]

 

Quando Lisa[1] me disse que tinha feito amor

com outro, na velha cabina telefónica daquele

armazém de Tepeyac[2], julguei que o mundo

terminava para mim. Um tipo alto e magro e

com o cabelo comprido e uma verga grossa que não esperou

mais de um encontro para penetrá-la até ao fundo.

Não é uma coisa séria, desse ela, mas é

a melhor maneira de tirar-te da minha vida.

Parménides Garcia Saldaña[3] tinha o cabelo farto e podia

ter sido o amante de Lisa, mas alguns

anos depois soube que tinha morrido numa clínica psiquiátrica

o que se tinha suicidado. Lisa já não queria

dormir mais com perdedores. Às vezes sonho

com ela e imagino-a feliz e fria num México

desenhado por Lovecraft. Escutamos música

(Canned Heat[4], um dos grupos preferidos

de Parménides Garcia Saldaña) e depois fazemos

amor três vezes. Da primeira vez veio-se dentro de mim,

da segunda veio-se na minha boca e, da terceira, apenas um fio

de água, um pequeno fio de pesca, entre os meus seios. E tudo

em duas horas, disse Lisa. As duas piores horas da minha vida,

disse do outro lado do telefone.

 

 


 

 

 

 

[OS CÃES ROMÂNTICOS]

 

Naquele tempo eu tinha 20 anos

e estava louco.

Tinha perdido um país

mas tinha ganho um sonho.

Sim, tinha ganho esse sonho

o resto não interessava.

Nem trabalhar, nem rezar,

nem estudar de madrugada

junto aos cães românticos.

E o sonho vivia no vazio do meu espírito.

Uma casa de madeira,

entre penumbras,

num dos pulmões dos trópicos.

Às vezes voltava-me dentro de mim

e visitava o sonho: uma estátua eternizada

em pensamentos líquidos,

um verme branco retorcendo-se

no amor.

Um amor desbocado.

Um sonho dentro de outro sonho.

E o pesadelo dizia-me: hás de crescer.

Deixarás para trás as imagens da dor e do labirinto

e esquecerás.

Mas naquele tempo crescer teria sido um crime.

Estou aqui, disse, com os cães românticos

e aqui vou ficar.

 

 


 

[DEVOÇÃO DE ROBERTO BOLAÑO]

 

 Em finais de 1992 ele estava muito doente[5]

e tinha-se separado da sua mulher.

Essa era a puta da verdade:

estava só e fodido

e costumava pensar que lhe restava pouco tempo.

Mas os sonhos, alheios à doença,

vinham todas as noites

com uma fidelidade que conseguia assombrá-lo.

Os sonhos que o transportavam para esse país mágico

que ele e ninguém mais chamava México D.F.

e Lisa e a voz de Mario Santiago[6]

lendo um poema

e tantas outras coisas boas e dignas

dos mais calorosos elogios.

Doente e só, ele sonhava

e defrontava os dias que se dirigiam

até ao fim de outro ano.

E de tudo isso extraía um pouco de força e de coragem.

México, os passos fosforescentes da noite,

a música que se ouvia nas esquinas

onde antes as putas gelavam

(no coração de gelo de Colonia Guerrero[7])

proporcionavam-lhe o alimento de que necessitava

para cerrar os dentes

e não chorar de medo.

 

 



[1] Referência a Lisa Johnson, poetisa americana, musa e companheira de Roberto Bolaño em 1975-1976, durante os anos do infrarrealismo ou realismo visceral. Chegaram a viver juntos durante um mês e meio numa casa de D.F. Lisa Johnson é Laura Jáuregui num dos seus romances.

[2] O morro de Tepeyac fica a norte de México D.F., parte da Serra de Guadalupe. Na tradição católica mexicana, é o local das aparições da Virgem de Guadalupe.

[3] Parménides Garcia Saldaña (1944-1982), escritor mexicano, apaixonado por J.D. Salinger, Norman Mailer, rock e marxismo. É autor de Pasto Verde ou de En la Ruta de la Onda, livro emblemático da chamada Literatura de La Onda, um movimento literário anti-governamental nos tempos da eternização do PRI (Partido Revolucionário Institucional). Em vários livros Roberto Bolaño refere-se a esse grupo de escritores, juntamente com o infrarrealismo.

[4] Os Canned Heat eram uma banda de rock e blues que chegaram a atuar no festival de Woodstock. O baterista, Adolfo ‘Fito’ de la Parra (n. 1946), era mexicano de D.F., acompanhou Etta James, os Platters ou as Shirelles, e tem mesmo um álbum intitulado Fito de la Parra Drum Solos. O guitarrista era Bob Hite (1945-1981), e o primeiro líder da banda era Alan ‘Blind Owl’ Wilson (1943-1970), que chegou a tocar com John Lee Hooker (este considerava-o o mais talentoso tocador de harmónica) ou Jimi Hendrix. As duas canções mais famosas da banda eram «Going Up the Country» e «On the Road Again».

[5] Foi em 1992 que foi diagnosticada a Roberto Bolaño uma doença hepática e uma úlcera no cólon, de que viria a morrer em 2003.

[6] Mário Santiago (1953-1988) era um dos companheiros de Roberto Bolaño, e é considerado o fundador do infrarrealismo. É personagem de Bolaño em Os Detectives Selvagens. O primeiro manifesto do infrarrealismo foi assinado por Bolaño, em 1976: «Uma boa parte do mundo está a nascer e outra parte a morrer, e todos sabemos que todos temos de viver ou todos de morrer: nisto não há meio termo. […] Chirico diz: é necessário que o pensamento se distancie de tudo o que se chama lógico e bom sentido, que se distancie de todos os entraves humanos de modo que as coisas apareçam com um novo aspecto, iluminadas por uma constelação surgida pela primeira vez. Os infrarrealistas dizem: vamos mergulhar de cabeça em todas as peias humanas, de tal modo que as coisas comecem a mover-se dentro de nós mesmos, uma visão alucinante do homem.»

[7] Zona no noroeste de México D.F., residencial e popular.

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Mandela.

por FJV, em 06.12.13

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Poemas de Roberto Bolaño, 1.

por FJV, em 06.12.13

 

[A MINHA CARREIRA LITERÁRIA]

Recusas de Anagrama, Grijalbo, Planeta, com toda a certeza

         [também de Alfaguara,

Mondadori. Um não de Muchnik, Seix Barral, Destino...

         [Todas as editoras... Todos os leitores...

Todos os gerentes de vendas...

Debaixo da ponte, enquanto chove, uma oportunidade de ouro para

         [ver-me a mim mesmo:

Como uma serpente no Pólo Norte, mas escrevendo.

Escrevendo poesia nos país dos imbecis.

Escrevendo com o meu filho nos joelhos.

Escrevendo até que cai a noite

com um estrondo dos mil demónios.

Os demónios que hão de levar-me ao inferno,

mas escrevendo.

 


 


[ESTA É A PURA VERDADE]

 

Fui criado ao lado de revolucionários puritanos

Fui criticado ajudado empurrado por heróis

da poesia lírica

e do baloiço da morte.

Quero dizer que o meu lirismo é diferente

(já tudo está escrito mas permitam-me

acrescentar qualquer coisa mais).

Nadar nos pântanos da vulgaridade

é para mim como uma Acapulco de mercúrio

uma Acapulco de sangue de peixe

uma Disneilândia submarina

Onde estou em paz comigo.

 

 


 

 

[O ENTARDECER]

 

O pai de Lisa viu passar esse entardecer

até lá em baixo

até México D.F.

O meu pai viu esse entardecer calçando as luvas

antes do seu último combate[1].

O pai de Carolina viu esse entardecer

derrotado e doente depois da guerra. O mesmo

entardecer sem braços

e com os lábios

delgados como um queixume.

O que o pai de Lola viu trabalhando numa

fábrica de Bilbau e o que

o pai de Edna viu procurando as palavras

exactas da sua prece.

Esse entardecer fantástico!

Aquele que o pai de Jennifer contemplou

num barco no Pacífico

durante a Segunda Guerra Mundial

e o que o pai de Margarita contemplou

à saída de uma taberna

sem nome.

Esse entardecer corajoso e trémulo, indivisível

Como uma seta lançada ao coração. 

[Poemas publicados em La Universidad Desconocida. Tradução minha.]

 

[1] Léon Bolaño, pai de Roberto Bolaño, foi boxeur e condutor de camiões. Chegou a ganhar o titulo de campeão de pesos pesados antes de conhecer Victoria Avalos, professora primária, com quem casou e com quem se mudou para Quilpué. Léon e Victoria separaram-se em 1973. Léon e Roberto Bolaño não se viram durante 22 anos – o encontro entre os dois deu-se em Madrid, em 2000, quando o escritor trabalhava em 2666. «Matou-se por causa desse livro. Quase não dormia, era uma obsessão», declarou Léon Bolaño em 2006. O pai soube da morte de Roberto apenas dois dias depois.

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Vias de extinção.

por FJV, em 06.12.13

A ideia de as pessoas se despirem é-me simpática. Durante um ou dois anos imaginei como seria Gillian Anderson nua – sim, por causa de Ficheiros Secretos –, e tenho uma lista com outros nomes. Gillian Anderson acaba de aparecer nesses termos, abraçada (é uma maneira de dizer) a um congro por causa de uma campanha da Fishlove, “em defesa da pesca sustentável”. Preferia um peixe mais simpático e com menos espinhas, mas enfim. Periodicamente, atrizes, atores, modelos, gente comum, magérrima ou bem nutrida, aparece nua em defesa de princípios morais e em campanhas políticas ou causas estapafúrdias. O ativismo nu enternece-me, mesmo no inverno. Há quem se dispa em calendários de râguebi ou de bombeiros, em protesto contra os maus tratos a animais ou em defesa dos direitos das aves de arribação. Na Argentina, um grupo de feministas despiu-se para insultar e agredir uns rapazes católicos que rezavam pacificamente. O corpo deixou de ser corpo. É agora uma espécie em vias de extinção. Que pena.

[Da coluna do Correio da Manhã.]

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Recordações de outras eras.

por FJV, em 06.12.13

Um texto antigo do Origem das Espécies, agora que ele se prepara para treinar trivelas nos próximos tempos:

 

«Devia existir uma espécie de guarda de honra em redor de Quaresma, para recuperar as bolas que ele perde e entregar-lhas outra vez, para que ele possa repetir a finta ou fazer de novo o que ele fez a Adalto, passando-lhe a bola por cima. Valdano, há tempos, escrevia sobre essa arte de fazer coisas estranhas, próximas do talento puro, situando Quaresma entre os grandes artistas. Mas Quaresma é solista de outra música. Há jogadores que tomam o seu lugar numa grande orquestra; há os que reconhecemos em música de câmara; há os solistas extravagantes, como Cristiano Ronaldo (que os scolarianos perseguiram à pedrada durante um ano inteiro) ou Messi, que não podemos perder de vista. E há os que saltam para o palco ora a solo, ora com o seu grupo, bailaorescantaores e guitarristas. Sentem-se bem no tablao; não compreendem que interpretam um papel de tragédia, mas sabem passar do cante corto para o cante grande com um silêncio demolidor. A metáfora é propositadamente gitana. O cante p'alante deve ser escutado pelo público e a estrela é o cantaor; Quaresma interpreta-o algumas vezes, em trivelas fantásticas. Mas ele dá-se bem com o cante p'atrás, onde serve o conjunto de bailaores principais, e essa é uma virtude rara. O golo de hoje arrancou-lhe um sorriso aberto, largo, que o acompanhou até ao final como um jaleo cheio de brilhos adolescentes, tra tra tantan, trajili trajili traji, sons desconexos, mas sempre com voz afillá, rouca, de bandoleiro.»

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Rentes.

por FJV, em 06.12.13

Rentes de Carvalho em Estevais, Mogadouro.

 

A história de J. Rentes de Carvalho dava para dois bons volumes, mas só ele poderá contá-la. A nós, basta a alegria de saber que, aos 83 anos, é finalmente reconhecido pelos seus – mais pelos seus leitores do que pelos seus pares, que olham desconfiados para um português que viveu quase toda a sua vida na Holanda, onde os seus livros são bestsellers. E de que tratou nesses livros? Imagens, personagens, patifarias, mitos, manias, fragmentos de um país, Portugal, que frequentemente se esquece da sua certidão de nascimento. Depois de em 2012 ter recebido o Grande Prémio de Literatura Autobiográfica com Tempo Contado, é este ano distinguido com o Grande Prémio APE de Crónica (com Mazagran, textos da imprensa holandesa). Pelo meio, romances deliciosos como La Coca, Ernestina, Mentiras e Diamantes ou A Amante Holandesa. 83 anos de bilhete de identidade, é isso que são os seus livros. Na próxima terça-feira recebe, em Sintra, o Grande Prémio APE de Crónica.

 

    

   

Texto lido por J. Rentes de Carvalho em novembro de 2012,

na entrega do Grande Prémio APE de Literatura Autobiográfica:


«Os tolinhos. Os bufos. Os convencidos. Os pategos. Os membros e as suas esposas. Os amigos dum gajo que conhecemos há muito e  não é sério. Os fanáticos. Os sinceros. Os que foram maoístas. As bruxas. Os inimigos do povo. As irmãs do Salazar. Os compadres. Os hesitantes. O senhor Pacheco do táxi, do aviário e da bomba da gasolina. Os que comem peixe à sexta-feira. Os sócios benfeitores da Associação dos Bombeiros Voluntários de Oliveira de Azeméis. O médico dos Raios-X. A ex-telefonista da ex-PIDE do antigo regime. O clarim de Caçadores 9. Os filhos do falecido Prof. Dr. Joaquim do Amaral Thorensen Perestrelo Owen Ricciotti Matoso Guedes de Crespo e Bombarral (Marquês de Leça, Irmão da Ordem Terceira, Diplomé des Palmes du Mérite Agricole). O maquinista do ‘Foguete’ que levou o Papa a Braga. Os heróis do mar. Os gloriosos combatentes anti-fascistas. Os gaseados de 1914-1918 (Flandres). A tia da D. Amália Rodrigues. O cauteleiro de Cinfães. Os moradores do terceiro andar do prédio nº 42 do Beco dos Capachinhos 1300-444  Lisboa. Os que só gostam de cerveja. O que comprou as calças do Gungunhana e as ofereceu depois ao Museu de Bragança, donde parece que foram roubadas na noite de 7 de Fevereiro de 1952. A mulher do filho do vizinho do Marcelo. As figuras prestigiosas da nossa política acompanhados (acompanhadas? era o que faltava!) das respectivas esposas. O emigrante que construiu aquela casa. Os visitantes do Jardim da Estrela. Os dez mais elegantes. Os calvos, os obesos, os deficientes motores, os invisuais, os diminuídos mentais - que é como quem diz: os carecas, os buchas, os aleijadinhos, os cegos, os tarados. Os manetas e os gagos. O locutor da Rádio Renascença. O bissexual que casou com a Maria João e na intimidade lhe chama Zé Maria. O senhor doutor que está quase a chegar, não falta nada. Os três da panelinha. Os três. Os que dizem trinta e três. A Trindade. O senhor Pimpim. Os que leram Marx. O reformado que pinta aguarelas e imita muito bem o barulho da água a ferver. O eléctrico dos Anjos. Os senhores guardas. As senhoras guardas. As gentes da autoridade. Os defensores da ordem. A mulher que fugiu ao marido alcoólico e se foi juntar com um cego que tem uma barraca em Chelas. Os tocadores de violoncelo. Os fascinados pelo destino do proletariado. Os holandeses anticolonialistas, vegetarianos, com casa no Algarve. O ex-ministro. A Rosa que gosta muito de crianças. Os enfermeiros. As calistas a domicílio. A menina do quiosque. O bispo de Aveiro. Você e eu.»

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Reler páginas soltas.

por FJV, em 05.12.13

 Fotografia de Pedro Loureiro

 

Depois de reler um dos capítulos de 2666, de Roberto Bolaño, relembro quando comecei a lê-lo, em Dezembro de 2008 — o Inverno ajuda muito nestes casos e sempre tive uma tentação por livros extensos para enfrentar o frio. Não há uma regra. Há quem os prefira para o Verão; sestas de férias — mesmo curtas, dependuradas sobre a tarde — são, quando se pode, o cenário ideal para que o livro demore mais nas nossas mãos. Não foi assim comigo.

O que 2666 me trouxe, nunca soube explicar senão em redor desse livro em que conheci quatro loucos apaixonados pela obra de Archimboldi, um escritor de que havia notícias vagas e em redor do qual se foi construindo uma mitologia muito parecida com a de J. D. Salinger. Desses quatro, três (é o número ideal: um triângulo amoroso ou apenas erótico — neste caso, apenas literário — do qual fica excluído um, que é o do «amor verdadeiro») partem para o México em busca de um Benno von Archimboldi que passa como uma sombra pelo painel de Santa Teresa. O que faz um escritor nascido em 1920, na Rússia, naquele cenário? O mesmo que eu fiz, muitos anos antes, nas ruas sujas de Ciudad Juárez. Não há quase nada que recomende esta cidade do estado mexicano de Chihuahua, feia e cercada pela violência, como a mais indicada para um turista, a não ser a memória do cinema (Man of Fire, com Denzel Washington, por exemplo, mas também numerosos westerns porque está ligada à fronteira texana de El Paso), da música («Cocaine Blues», de Johnny Cash e «Just Like Tom Thumb’s Blues», de Bob Dylan, para não ir mais longe) e da literatura: é um dos cenários de Cormac McCarthy.

Em 1995, Ciudad Juárez não era nada disso; apenas um cenário de papel sujo, rasgado pelos cartéis da droga e da prostituição. Havia caravanas de grandes jipes atravessando a fronteira por El Paso, em busca de droga, tequila, mulheres e má comida. O mesmo cenário para Stan Laurel e Oliver Hardy atravessarem um dos momentos mais difíceis das suas vidas (nuvens de álcool e poeira atravessando as janelas de um hotel miserável) como aparece no quase monumental A Quatro Mãos, o livro de Paco Taibo II — um dos livros «onde tudo aparece»: Trotsky escrevendo um romance policial, Malcolm Lowry abandonado nas ruas de Cuernavaca, Frida Khalo perdendo (ainda mais) a voz.

Volto atrás: eu estava em Ciudad Juárez em 1995. Treze anos depois regressei — pela mão de Bolaño. A cidade era a mesma. Eu diria a mesma coisa de Macondo, se tivesse ido a Macondo, antes de ter desaparecido.

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Coisas novas, rerum novarum.

por FJV, em 05.12.13

Nem de propósito. Assinalaram-se anteontem os 450 anos sobre a última das sessões do Concílio de Trento, iniciado 18 anos antes e presidido por três papas – foi o concílio da Contra-Reforma, a confirmação da guerra contra o protestantismo e contra a heresia no interior da igreja católica. Os dois concílios posteriores são de tendências diversas: o Vaticano I, de 1869, reforçou a ortodoxia; o Vaticano II, na década de 60 do século XX, constituiu uma “abertura ao mundo”. Francisco I é hoje considerado um revolucionário, sobretudo por pessoas que não leram documentos como as encíclicas Rerum Novarum ou Pacem in Terris. Mesmo assim, a igreja precisa de fazer a reforma que devolva algum entusiasmo a um mundo deprimido, e observar as consequências dos seus textos doutrinários em matéria social, por exemplo. Não para alegrar a ‘opinião pop’, flutuante; mas para provar que a sua mensagem tem sentido.

[Da coluna do Correio da Manhã.]

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Demência.

por FJV, em 05.12.13

Há, na história humana, períodos de demência que, à distância, nos parecem ridículos apesar das explicações para o sucedido. A Proibição, ou Lei Seca, que vigorou nos EUA durante 13 anos – era ilegal a produção, transporte ou consumo de bebidas alcoólicas – é um desses momentos. Várias designações de igrejas protestantes, reunidas sob os lemas da “temperança” e da virtude, do puritanismo e da necessidade de combater o alcoolismo (que atingia proporções trágicas) e de proteger “os valores”, foram o núcleo e a muralha desses 13 anos de repressão ambivalente. “Temperança”, nas línguas latinas, quer dizer “moderação” e não “perseguição radical ao vício”. Mas a América desses anos era um caldeirão de interesses (económicos, religiosos, políticos) e de pânicos; todos colaboraram e a maioria dos americanos apoiava a lei. Ontem passaram 80 anos sobre o fim da Lei Seca: bebamos com temperança e alegria.

[Da coluna do Correio da Manhã.]

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Romani.

por FJV, em 05.12.13

A perseguição aos ciganos (etnias Romani) pelo III Reich foi sempre um tema secundário, quer pelos números quer pela intensidade de ódio e de argumentação, face à perseguição e extermínio dos judeus – mas convém não esquecê-lo porque permite desenhar, a esta distância, um mapa-múndi do terror nazi e uma escala da sua determinação em matéria de limpeza étnica. Os Einsatzgruppen (os grupos de assassinos das SS) mobilizaram contra os “romani”, a partir de 1941, algumas unidades especiais mas foi em Novembro de 1943, há exatamente 70 anos, que um dos líderes da Alemanha nazi, Heinrich Himmler, decretou que o estatuto dos “romani”, dos ciganos, era, na escala étnica, tão baixo como o dos judeus. Milhares pereceram nos campos de concentração, sobretudo em Auschwitz, e um pouco pela Hungria, Roménia, Eslováquia, Bulgária, além dos Balcãs. A Europa assistiu a essa declaração há tão pouco tempo.

[Da coluna do Correio da Manhã.]

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Os chefs.

por FJV, em 05.12.13

Antes da banalização dos ‘chefs’, havia cozinhas absolutamente notáveis. Hoje em dia, os ‘chefs’ tomaram o lugar das cozinhas e, lamento informar, parte deles são vulgares, ignorantes e espertalhaços para enganar papalvos deslumbrados. Nada contra o seu estrelato, porque o merecem na sua indústria, mas convém manter algumas cautelas e bom senso. Vejam-se o Le Georges e o Café Marly, ambos em Paris; as pessoas com bom aspecto são dispostas à vista dos clientes, como uma corvina fresca; as restantes (acima dos 40 anos e com peso acima do recomendado) são colocadas atrás das colunas, para não tingirem a imagem da casa. Compreende-se. A “grande cozinha” é cada vez mais classista e medíocre, com a sua linguagem pateta e a treta do “empratamento”. Na maioria dos casos, trata-se apenas de “empratamento”, uma espécie de equilibrismo para gente ignara e rica, que nunca provou a comida das avós.

[Da coluna do Correio da Manhã.]

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Controle da internet.

por FJV, em 05.12.13

O Brasil, a Alemanha e (olha quem) os EUA acham que a ONU deve perorar sobre a privacidade na internet e os governos devem legislar sobre o assunto. O Brasil, tal como outros países latino-americanos (a Venezuela fecha sites consoante os apetites do presidente), sempre teve vontade de “armazenar dados” no seu território; a Alemanha está na defensiva depois de os seus Blackberries terem sido escutados pelo Pentágono; e os EUA defendem o direito a mergulhar na privacidade dos outros. Compreende-se onde querem chegar. O mais assustador é a criação de uma comissão que, em Genebra, controle a circulação de dados, sob o comando de, por exemplo, um fanático da liberdade de expressão e dos direitos humanos, vindo de Cuba, da Síria ou do Qatar, para não irmos mais longe. Que os idiotas se reúnam na internet, é uma verdade absoluta; que os estados queiram virá-los a seu favor, é uma tragédia total.

[Da coluna do Correio da Manhã.]

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Matei-te a ti e mais cinco

por FJV, em 04.12.13

A Biblioteca Pública do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, Brasil, organizou há uns dias um curioso evento: reuniu cerca de uma dezena e meia de escritores e, recordando uma célebre noite de 1816, pediu-lhes que – até à primeira luz da manhã – escrevessem um conto. O que se passou nessa noite de há 197 anos? Byron e alguns amigos juntaram-se para escrever “contos de terror”. Entre eles estavam o poeta Percy Shelley, glória do romantismo inglês, e a sua namorada (depois Mary Shelley) então apenas com 19 anos, que nessa noite criou o personagem Frankenstein. Ontem, depois da maratona, o argentino Frederico Andahazi (autor de O Anatomista) dizia-me que o problema da “literatura de horror” é que se tinham ultrapassado algumas das “fronteiras do humano” e que hoje em dia era difícil impressionar os leitores. “E então o que fizeste no teu conto?”, perguntei. “Simples. Matei-te, a ti e mais cinco.”

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Controlem, controlem.

por FJV, em 03.12.13

Está envolta em dúvidas a iniciativa do governo para assinalar, no “boletim de saúde”, o estatuto de “pais fumadores”. A verdade é que não se sabe o que é um fumador e há quem fume apenas três, quatro cigarros. Mas, a fim de purificar a sociedade (houve tentativas ao longo da história, lindos exemplos) e de a tornar mais saudável, cheia de gente a fazer jogging e a comer cereais, há autoridades e alguns sujeitos que não se opõem a criar um registo dos fumadores. Em cada fumador, um prevaricador – um truque desprezível. O registo acabará no Cartão de Cidadão. Em tempos ouvimos Led Zeppelin? Estará lá. Um charro? Estará lá. Hidratos de carbono? Colesterol alto? Queda de cabelo? Vida sexual festiva? Estará lá. A nossa identidade, diante do Estado, é dupla: o registo da nossa vida – e o ‘chip’ que nos persegue a cada minuto, como um polícia moral. Até dentro de casa. Esta gente não tem juízo.

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