Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Tinha prometido a mim próprio que, para me proteger da melancolia, guardaria algum silêncio na morte de J.J. Cale, o músico que tem mais canções no meu iPod. Mas a sua música está quase toda ligada à minha vida, à memória dos melhores e piores anos e eu não podia deixar de ouvir ‘Anyway the Wind Blows’, ‘‘After Midnight’ e, sobretudo, ‘Magnolia’, ‘Magnolia’ sempre (“Whippoorwill’s singing/ Soft summer breeze/ Makes me think of my baby”). A lista é interminável para falar da comoção e da melancolia desse som (laid back: blues & rockabilly), do seu ar abandonado, poemas cantados nas varandas de casas de madeira à beira de estradas poeirentas, ‘jeans’, nevoeiro e uma guitarra admirável. J.J. Cale morreu este fim de semana, aos 74 anos, de um ataque de coração. Não havia canções como as suas, sempre a provocar ataques de coração. Teremos de ouvir e de dançar ‘Magnolia’. Teremos sempre a sua voz.
Pela semana fora, oiçam J.J. Cale, tornem a nossa vida um pouco melhor: ‘Travellin’ Light’,, ‘Passion’, ‘Hold on Baby’, ‘Durango’ ‘Devil in Disguise’, ‘My Babe and Me’, ‘Starbound’, ‘Cocaine’, ‘Magnolia’. Em modo ‘repeat’.
Camilo Castelo Branco e António Sérgio, lembram-se? A Rainha Isabel, Vasco da Gama e Santo António, lembram-se? Eram as efígies de algumas das nossas notas de banco.A mudança do escudo para o euro não foi apenas, digamos, ‘monetária’ – no estrito sentido do termo. Foi também uma mudança de efígie: de Camilo ou Sérgio passámos a nada. Sim, podíamos cunhar a figura de Camões ou de Pessoa nas moedas de euro ou de cinquenta cêntimos – mas não. Ficámos sem efígie. Já em Inglaterra, que mantém a libra, a presença numa nota de banco gera discussão e alimenta polémicas que passam pela imprensa. Esta semana foi anunciado que Jane Austen, a autora de Orgulho e Preconceito (de que agora se assinalam 200 anos sobre a sua publicação) ou de Sensibilidade e Bom Senso, iria passar a figurar nas notas de dez libras. Quando pensaram na «construção europeia», os mentores do euro podiam ter pensado no assunto.
O nome vale tudo. Veja-se o caso de J. K. Rowling e do seu novo romance assinado por Robert Galbraith (que, por si, evoca já o economista John Kenneth Galbraith): bastou saber-se que era um pseudónimo da autora das aventuras de Harry Potter para se transformar num sucesso editorial.Talvez Álvaro de Campos, magnífico heterónimo, não tivesse o sucesso de Fernando Pessoa – e Bernardo Soares, que assina o Livro do Desassossego, também não seria considerado um fenómeno. Um editor americano acaba de confessar que recusou um manuscrito assinado por um pseudónimo de Doris Lessing (e ainda há a recusa da Gallimard em publicar Proust, por exemplo). Romain Gary ganhou pela segunda vez o Goncourt com um pseudónimo (o de Émile Ajar) e foi criticado por isso. Não sei como seria a poesia de José Fontinhas, verdadeiro nome de Eugénio de Andrade. Mas um nome é tudo. É tudo o que se guarda no meio da literatura.
[Na coluna do Correio da Manhã.]
Por que razão é tão importante a obra de Claudio Magris, sobretudo Danúbio, um livro maravilhoso, belo, único, misto de geografia e de romance, de história política e de contemplação?Porque a obra de Magris, que é este ano galardoado com o Prémio Helena Vaz da Silva para a divulgação do Património Cultural, atravessa todas essas pontes e é um manifesto silencioso e permanente contra a ingratidão. O termo é de Alain Finkielkraut: a ingratidão contra a história, a memória, as ruínas, o horror e a ignorância. Danúbio, de Magris, que é a obra de uma vida, um livro inimitável (só Breviário Mediterrânico, de Predrag Matvejevitch se lhe aproxima), descreve uma Europa como ela seria sem a destruição de cultura. Cultura, precisamente, não é espetáculo. O espetáculo é, precisamente, o que destrói a história e a transforma em banalidade. Claudio Magris é um dos combatentes contra esse ruído da moda.
[Na coluna do Correio da Manhã.]
Ao marcar eleições para o verão de 2014, o Presidente abriu, oficiosamente, a campanha eleitoral. A partir desse momento, todos os partidos ficaram à espreita, cativando eleitores ou não os hostilizando com nenhuma operação de retórica. Um ano de campanha eleitoral com dois aceleradores pelo meio (autárquicas e europeias) transformará o país num cenário de abismos em que ninguém quererá encarar o país, com medo dele. O ideal era que houvesse acordo – mas não foi convocado a tempo. Estas coisas precisam de tempo, justamente. A economia não recupera em meses, a política não estabiliza em semanas, a mentalidade não muda num ano. Ao abrir inadvertidamente a campanha eleitoral, o Presidente pediu um acordo impossível porque, para ele ter sentido, necessita de gente que está disposta a perder.
São Pedro de Arcos, Ponte de Lima
Em editorial, o Daily Telegraph deste sábado («Glorious Wild») festejava a chegada do verão, reafirmando que o melhor lugar para passar as férias é o «campo britânico». Os ingleses são muito mais pálidos, as temperaturas não chegam aos 40° e a Inglaterra não tem as praias da nossa costa (onde, aliás, eles vêm ganhar cor, felizmente) – portanto, não vale a pena seguir o exemplo. Tudo isso é verdade, mas vale a pena seguir o exemplo, sim. Em Inglaterra, existe desde os anos setenta uma campanha permanente pela «reabilitação do campo», que não tem apenas uma agenda ecológica – mas também preservacionista, e conservadora. Ou seja: não vale a pena falar do «campo» se não preservarmos a qualidade e a tradição dos alimentos, o património arquitetónico, as florestas, a paisagem, os rios, e as próprias ruínas. Isso sim, podíamos copiar. Basta passear um pouco pelo país fora para verificar como tudo vai ficando, sujo, degradado e preparado para a «arqueologia suburbana» dos próximos anos. Foi o Telegraph, aliás, que liderou uma campanha contra a construção de uma linha rápida de comboio porque iria destruir uma floresta de carvalhos (e a linha, aliás, só iria poupar 20 minutos na ligação Londres-Manchester).
[Da coluna do Correio da Manhã.]
Na juventude, eu não sabia
Qual era o sabor da melancolia.
Gostava de subir aos altos pavilhões
E fazer versos muito melancólicos.
Porém, agora, tendo-lhe conhecido
O gosto, já não quero
Falar mais dela. Digo apenas:
«Um dia fresco, que belo Outono.»
Xin Qiji (1140-1207)
[Versão de Gil de Carvalho]
A oeste do pavilhão da Ponte Amarela,
despedimo-nos, velho amigo.
Entre as flores e a bruma de março,
desces rumo à aldeia de Yang.
A vaga silhueta de tua solitária vela
desaparece no espaço esmeralda,
e só resta o Grande Rio
a correr para os confins do céu.
Li Bai (701-762)
[Versão de Sérgio Capparelli e Sun Yuqi]
A Lua de Outono, em quarto crescente,
Li Bai (701-762)
[Versão de António Graça Abreu]
A minha filha lê inglês como eu nunca lerei; para um aparelho que não sei manejar, descarregou duzentos livros e em Português estão apenas dez, ou nem isso. Creio, aliás, que pensa em inglês. Tento convencê-la a estudar mandarim com o pretexto, oculto, de ir com ela às aulas e ter companhia para aprender a ler alguns versos de Li Bai daqui a cinquenta anos. Na China já me desmobilizaram: só radicais são 220 caracteres; a coisa vai ao milhão pelas minhas contas. Na semana passada perguntou-me o que eu achava de ler 2666, de Roberto Bolaño. Exultate! Claro que sim. Imprescindível. Vi, pelos seus olhos, que desistiu naquele segundo. Lancei a armadilha: podes é ler Os Maias, mas acho que não é para a tua idade. Hum. Ai sim? Às escondidas, corri a ver se existe uma versão inglesa em e-book.
Adli Mansur, o novo presidente do Egito, jurou defender “o sistema republicano”. A expressão pode parecer inócua, mas está na base da tentativa de os militares evitarem o caminho para um regime religioso e islâmico no país, destino para onde o presidente agora deposto tinha indicado a direção. Alaa Al-Aswany, um escritor muçulmano (autor de O Estado do Egito e Chicago), esforçou-se por provar que havia uma ponte entre um regime de inspiração religiosa e uma forma qualquer de democracia – ele apoiou a Irmandade Muçulmana e proibiu que os seus livros fossem traduzidos para o hebraico; não sei o que Naguib Mahfouz (1911-2006), prémio Nobel da literatura em 1988, pensaria sobre o assunto, ele que foi perseguido pelos Irmãos Muçulmanos e vítima de vários atentados por motivos religiosos, mas acho que ficaria mais tranquilo depois do golpe militar. Coisas não tão estranhas que acontecem no mundo.
[Da coluna do Correio da Manhã.]
Um dos meus filhos dedica algumas horas por mês aos dois principais campeonatos de futebol do Japão. Hoje fui dar com ele a ver um jogo entre duas equipas cujos nomes agora me esqueceram; a certa altura comentou que certo jogador vinha do Gamba Osaka, um clube da segunda divisão. Nipónica. Porquê o Japão? Disse-me que por nada de especial. Sem tirar os olhos da televisão (havia um fora de jogo mal assinalado que deu golo), admitiu que às vezes se sentia adepto do Shangai Shenhua. Por causa do estilo desgovernado de jogo (ele é sportinguista), muito chinês, muito rápido. Estive para lhe perguntar se já tinha lido, imaginemos, Turguéniev. Mas era capaz de ser exótico.
A frase é de Angela Merkel: “Espiar amigos é inaceitável.” A chanceler alemã disse-a na sequência das revelações de Edward Snowden sobre a espionagem americana junto dos seus parceiros europeus. John Kerry, o secretário de Estado norte-americano, que é membro de uma sociedade secreta, foi mais sensato: “Não é invulgar.” Acontece que “espiar amigos” é uma tarefa a que a Europa e os EUA se têm dedicado com invulgar apreço – e mais disciplina, por parte dos americanos, beneficiados pelo poderio tecnológico e pela sua sempiterna desconfiança em relação aos europeus, uns desajeitados que comprometem tudo em nome de valores ligeiramente fora de moda. Há sempre o argumento (pouco credível, apesar de tudo) de que quanto melhor conhecermos os nossos amigos mais gostamos deles, mesmo se se trata de política. Dados os recentes acontecimentos portugueses, entre nós o argumento não pega, garantem-me.
[Da coluna do Correio da Manhã.]
Um dos meus divertimentos é a leitura de romances de espionagem. John Le Carré não faz parte da lista – é um poeta admirável que escreve da melhor prosa romanesca. Mas há ainda Daniel Silva, por exemplo, Higgins, Semyonov, o malogrado Ludlum, Follett, etc. Para quem acompanha o affaire Snowden, as surpresas são muito menores – ou mesmo inexistentes. Agora, por exemplo, as autoridades europeias, muito chocadas (também sabem dissimular), reagem à informação de que os serviços secretos americanos, uma mistura de CIA/NSA/FBI e outras agências, espiavam instituições europeias, tanto em Washington e Nova Iorque como em Bruxelas, Londres ou Berlim. Acrescento Lisboa por minha conta e risco. Não é grande novidade. Os “primos” americanos (a designação é do MI6) nunca confiaram muito nos europeus. Em Hong Kong, tal como na Rússia, por exemplo, estavam em campos opostos. O mundo é um romance. Divertido.
Passaram no domingo dez anos sobre a morte de Katherine Hepburn (1907-2003). Esperemos que as televisões possam transmitir um ou outro filme que o seu rosto iluminou. A Rainha Africana (de Huston), ao lado de Bogart, é um clássico, tal como Adivinha quem Vem Jantar (com Spencer Tracy) ou até Amor entre Ruínas (com Lawrence Olivier). Eu prefiro o seu papel “secundário”, como a pérfida Violet ao lado de Liz Taylor (e Montgomery Clift), em Bruscamente no Verão Passado, o de Tracy Lord em Casamento Escandaloso (com Cary Grant), ou em Longa Viagem para a Noite, de Sidney Lumet e Eugene O’Neill. A lista é enorme e dispensa comentários. Hepburn dividia-se entre o seu papel de princesa (em Maria Stuart ou em O Leão no Inverno, por exemplo), o de mulher fatal e poderosa, ou sendo rosto dos vencedores que vêm de baixo (como em Mulherzinhas). Domingo é sempre um bom dia para recordá-la.
[Da coluna do Correio da Manhã.]
Depressão, ansiedade social e desordem pós-traumática. O diagnóstico está muito na moda, sobretudo na geração que agora encara os quarenta ou, creio, os cinquenta. Em Inglaterra e nos EUA, a CBT está muito bem cotada – significa “terapia cognitiva comportamental” e é relativamente cara. Mas os gurus da CBT descobriram que os filósofos gregos podem salvar-nos de forma mais eficaz. Sobretudo os estóicos, por exemplo: o que nos estraga a vida não são as coisas, mas a nossa opinião sobre elas (já vem no ‘Encheiridion’ de Epicteto, século II). Mais: tal como os estóicos da Grécia antiga, Jules Evans, o autor de Philosophy for Life, lembra que temos pouco controle sobre a nossa vida. Que há coisas que podemos controlar e explicar, mas a maior parte está para além da nossa vontade; que toda a adversidade é um treino – e que é bom contemplar a beleza do mundo. Os antigos, imagine-se, já sabiam.
[Da coluna do Correio da Manhã.]
P.S. - Para distraídos, e por falar de gregos, leiam Educação para a Morte (Bertrand) e Amor e Ódio (Quetzal), de Filipe Nunes Vicente.
No habrá nunca una puerta. Estás adentro
y el alcázar abarca el universo
y no tiene ni anverso ni reverso
ni externo muro ni secreto centro.
No esperes que el rigor de tu camino
que tercamente se bifurca en otro
que tercamente se bifurca en otro
tendrá fin. Es de hierro tu destino
como tu juez. No aguardes la embestida
del toro que es un hombre y cuya extraña
forma plural da horror a la maraña
de interminable piedra entretejida.
No existe. Nada esperes. Ni siquiera
en el negro crepúsculo la fiera.
Jorge Luis Borges
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.