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Gandolfini não era apenas Tony Soprano. Era Leroy em A Mexicana (com Brad Pitt e Julia Roberts), o coronel Winter em O Último Castelo (com Redford), o detetive Hildebrandt em Corações Solitários (com Travolta), Big Dave em O Barbeiro (com Billy Bob Thornton e Frances McDormand) – e uma longa série de personagens secundários que interpretou com aquele tom discreto que fazia dele «o homem que não estava lá». Mas só James Gandolfini podia dar a Tony Soprano aquele olhar triste, comovente, duro, divertido, onde a astúcia se perde na procura de uma bondade impossível, porque Soprano era Soprano, nunca teria remissão para nenhum dos seus pecados, apesar da depressão que o domina. Poucos personagens se colaram tão assim a um actor que entra na galeria dos grandes desperados americanos. Na sua morte (só podia ser do coração) repita-se uma das suas deixas notáveis: «Jesus fuckin’ Christ!»
[Da coluna do Correio da Manhã.]
Eu não sabia quem era Lancelote Rodrigues até, há alguns anos, um amigo (Ferreira Fernandes) mo recomendar como uma enciclopédia sobre o Oriente e, sobretudo, sobre Malaca – onde nasceu em 1923 – e Macau, onde viveu desde os 12 anos. Era conhecido como o padre dos refugiados (portugueses de Xangai na década de cinquenta – uma história por contar – vietnamitas, chineses, malaios, indonésios e cambojanos depois, além de dissidentes de toda a espécie, que recambiava para outros países), mas a sua vida complexa, astuciosa e sábia, levou o padre Lancelote a percorrer os bastidores da vida do Oriente e a conhecer, como quase ninguém, os atalhos invisíveis que se cruzavam sobre o Rio das Pérolas. Teria dado (e deu) um bom e magnânimo espião. Sir Lancelote, pois, porque foi condecorado por Isabel II em 1992 (três anos antes de Portugal o distinguir com a Ordem do Infante) – e porque era um cavalheiro, poliglota, amável, cuidadoso. Morreu anteontem e ficou registado no livro dos grandes portugueses.
As televisões gostam muito de revoluções. A revolução, segundo parece, está em marcha no Brasil. O que eu disse de Lula, do PT e dos metralhas brasileiros defende-me. Dilma Rousseff não me interessa; é uma personagem secundária de opereta local, arrastada pelos acontecimentos e por Lula, o homem que «não sabia de nada». Por isso, devia rejubilar e pôr-me à espreita: vêem como eu tinha razão?, o povo está em armas nas ruas, protesta contra o PT, contra o aparelho que montou nos últimos dez anos, contra o desregramento da economia brasileira, contra a ignorância e a oligarquia, contra a corrupção. Mas, em vez disso, acho que vale a pena explicar.
A era de Collor de Mello, com aquele personagem trágico PC Farias, não foi nada comparada com corrupção engendrada pelo governo de Lula, completamente leninista: apoderou-se do aparelho de Estado, da polícia, das empresas estatais, dos bancos do Estado, fez circular dinheiro entre partidos, montou negócios entre as grandes corporações e os interesses do Estado que controla. E tudo isto deu no Mensalão e, agora, no escândalo da secretária de Lula, o homem que «não sabia de nada» e que tem uma coluna de opinião no New York Times, cujo correspondente no Brasil (Larry Rohter) quis expulsar, o que seria inédito desde lá atrás, muito lá atrás, logo depois do AI5.
Ora, os últimos dez anos foram anos do PT e de Lula no poder. Um poder tentacular e ambivalente, negociado com os partidos mais estranhos. Repare-se nos interesses que levam Lula e Dilma a desenhar, presentemente, com a colaboração do marketing de João Santana, uma grande coligação que vai do PC do B ao PP, passando pelo PMDB e pelos evangélicos. Porquê? Bom, para prolongar o poder a todo o custo.
Este clima de imunidade e impunidade feriu lentamente a sociedade brasileira. Há aquela frase do «rouba mas faz», e há a fase em que o lulismo, toda a tralha do PT, incluindo Dilma, pode meter-se em negócios e em experimentalismos sociais, mas é absolvida porque é amiga dos pobres. Isso pegou durante a reeleição de Lula, pegou durante a eleição de Dilma, pegou durante o primeiro ano do governo de Dilma, em que a corrida de ministros se sucedia mês-sim-mês-não, pega de cada vez que a assembleia de mirones internacionais desata a canonizar Lula. Mas deixa de pegar quando a inflação aparece ao dobrar da esquina, quando o crescimento zero deixa de ser uma ameaça para passar a ser a realidade e quando o paraíso na terra passa a ser o inferno ao alcance da mão.
Ou seja, o caldeirão estava preparado. Bastava pôr ao lume. Está ao lume, e acrescido de outro problema, que é o da impunidade da violência e da ilegalidade com protecção política do Planalto, como aconteceu nos últimos dez anos (assisti a várias campanhas eleitorais no Brasil e recordo o inflamado Jacques Wagner, na Bahia, por exemplo, fazendo campanha contra a polícia para agradar «às massas»; resultado, a violência e a criminalidade dispararam em Salvador, e «as massas» estão sitiadas por uma elite de criminosos; o PT sabe do assunto). O MST, por exemplo, habituou os brasileiros aos seus actos de violência ao mesmo tempo que recebia a bênção de Lula e o dinheiro do Estado e dos seus aparelhos. O PT mais radical ainda não saiu verdadeiramente da clandestinidade e tem mesmo uma imprensa que defende a censura, a acção directa e violenta, a perseguição aos adversários – como se não estivesse no poder. A imprensa afecta ao PT é uma colecção de pérolas sobre a insurreição violenta – desde a linguagem usada até à substância que ali se defende.
Por isso, a primeira surpresa: o PT vê a rua voltar-se contra o PT. Só foi surpresa para alguns que o próprio ministro da Justiça aparecesse a condenar a polícia de S. Paulo diante da bandidagem. Não venham com a história da «explosão social». Ela existe, mas não tem nada a ver com a bandidagem. [Uma amiga dizia-me: «No Rio, tudo acordou como se não fosse nada.» Pudera: os pobres limparam tudo durante a noite.] Gilberto Carvalho (ministro da Presidência) disse anteontem que o governo está «a ser atropelado pela história» e tremeu meio mundo. Porque o PT sempre incentivou este género de protestos — o PT sempre esteve no poder e na rua ao mesmo tempo, nos últimos dez anos. E ficou surpreendido porque a rua, hoje, não é do PT – um partido, aliás, tão ruidoso como minoritário. E o rosto de Dilma, vestida de fantasia para um drama de segunda ordem, é esse: «Como é possível? Então a rua não era nossa? Não foi para isso que armámos a CUT, o MST e outros grupos de companheiros? Não foi para isso que tivemos os melhores do marketing? Não foi para isso que hostilizámos “as elites” e depositámos a nossa esperança no povo?» Mas Dilma não percebe. E por isso, quando se tratou de analisar «a questão das tarifas», Dilma reuniu com Lula, Aloíso Mercadante (ministro da educação e futuro director de campanha da própria) – e o homem do marketing, João Santana. Tudo se resolveria com uma contracampanha. Que está a ser organizada, descansem.
Sim, estes são sinais de insatisfação da sociedade brasileira. São sobretudo expectativas goradas. Só que houve um momento em que a guarda avançada do PT acusava todos os protestos de serem armados pela direita, pela tucanagem, por FHC... Mas acontece que esse discurso passou momentaneamente – mas vai voltar. E, enquanto não volta, «as massas» deram sinais de rebelião e de desconfiança radical. Acontece que essa fase já não pode desculpar-se com o governo de FHC — que aliás desenhou a maior parte das políticas públicas sustentáveis de redistribuição de riqueza na sociedade brasileira.
Recordo um dos pontos altos da gigantesca manifestação pacífica de São Paulo, anteontem: quando as pessoas cantaram «Dirceu pode esperar, a cadeia é o seu lugar». Isto é muito importante — porque o que José Dirceu representa, com aquele grupo onde entram José Genoíno, Marcos Valério, Delúbio Soares, a banda do Mensalão (todos condenados à prisão pelo Supremo), é o pior do lulismo. Lula sempre foi protegido (pelo PT, naturalmente; mas também por Sarney, por Maluf, por Calheiros, pelo PMDB, pelas grandes corporações...). Ele é o que não sabia de nada, o que estava na sala ao lado mas «não sabia de nada». E que, mesmo diante da condenação do gang do Mensalão, apareceu, como ele diz, «a defender os companheiros nesta hora difícil em que estão a ser perseguidos». Não estão a ser perseguidos: foram efectivamente condenados em tribunal. E toda a gente viu. Mesmo que o seu aparelho esteja ao serviço de Dilma, que foi — aliás, ministra da Casa Civil de Lula e que, portanto, não se sabe se «não sabia de nada» do Mensalão e dos outros casos afastados da cena política por serem «invenção das “elites”».
É isto – além da violência que não comanda – que o PT não percebe. É por isso que Fernando Haddad, o prefeito petista de São Paulo, está a ser odiado pelo próprio partido (se bem que o PT aprecie a desordem de SP, porque pode culpar Alckmin, o governador do PSDB e adversário de Lula na reeleição).
Ora, o que existe é uma explosão a três tempos. O protesto mais imediato tem a ver com as tarifas dos transportes — e foi esse que mais chamou a atenção das televisões e jornais, enquadrado pelo grupo Passe Livre. [Na verdade, um dos grupos foi lançado por um partido de esquerda, o PSOL, de Luciana Genro, filha de Tarso Genro, ex-ministro de Lula e actual governador do Rio Grande do Sul. E, na sua génese, foi financiado pelo próprio PT.] A sua última reivindicação é tarifa zero para os transportes, mesmo depois de as principais capitais terem baixado as tarifas (o que prova a natureza da sua agenda). O problema dos transportes é dramático num país em que os empregos estão no centro e os salários mínimos estão na periferia. Essa travessia, nas capitais, chega à centena de quilómetros. Os transportes urbanos vão entre 1 e 3 reais. Se multiplicarmos 2 reais por 26 dias de trabalho, vezes dois, temos 104 reais com um salário mínimo de 680 reais. Não é diferente da situação portuguesa, com a diferença de os transportes, no Brasil, serem muito piores e de estarem sujeitos a todo o tipo de violência. Mas, ao contrário do que pretendem mostrar as televisões portuguesas, inflamadas com o desejo de revolução desde que não seja ao pé da porta, são os pobres os principais prejudicados com essa violência, cujos detritos têm de limpar no dia seguinte. O que os orquestradores deste protesto não esperavam é que houvesse uma vaga de fundo que os ultrapassasse — e houve.
Portanto, há um segundo protesto, e esse teve início moderado Brasília, quando as vaias a Dilma surgiram — um protesto inicial contra a Copa 2014, e que foi adquirindo cada vez mais notoriedade até chegar a São Paulo, muito mais geral, e que o PT olha como profundamente hostil, porque levou para a rua «manchas da classe média», habitualmente silenciosa (Dilma foi eleita com 56% dos votos, contra os 54% de Serra — com uma abstenção de 21,5% num país onde o voto é obrigatório, e que somados aos nulos dá 26,7%) mas devastada pelo anúncio da recessão que chegará logo depois da Copa. E esse protesto é o que dói mais, porque pode ter um efeito definitivo na campanha de reeleição, que está a ser preparada por Lula.
Vi, nesses ajuntamentos, um cartaz curioso: «Não cabem aqui...» Essas razões que «não cabem aqui» podem querer dizer que há um sector da sociedade brasileira que desperta para o embuste do petismo. E, pior, são manifestações pacíficas, tranquilas, de pura demonstração de um cansaço que estava anunciado – e de um desconcerto diante da enormíssima despesa pública de que a construção dos estádios da Copa (com a sua inevitável carga de suspeitas de corrupção) é apenas um exemplo. Estas são manifestações em que o PT é vaiado, em que Lula e Dilma são vaiados (alguém viu na televisão a manifestação diante da casa de Lula, por exemplo?), em que a CUT é expulsa, em que o gang do Mensalão é assobiado.
Finalmente, aquilo a que as televisões dão destaque, à procura de espectáculo: as cenas de bandidagem e de descontrolo. O PT, mais uma vez em sintonia com a sua tradição, ataca a polícia e envia grupos profissionais para se associar aos protestos — porque está encurralado e tem de manter o hábito de dançar com ruído na sua lógica de selvajaria. As franjas radicais estão lá, em pleno, tentando obter na rua aquilo que não podem fazer no Congresso, nos tribunais, nas eleições e na vida de todos os dias. Essas franjas são compostas por todos os «aliados históricos» do lulismo, desde os «companheiros» das ocupações selvagens até àqueles que querem impedir investigações do Ministério Público e condenações no Supremo (é curioso como o PT se tornou racista ao ponto de relembrar, em surdina, a cor do presidente do Supremo, Joaquim Barbosa, que desmontou o Mensalão e provou a cumplicidade do Planalto dos tempos de Lula). Essas franjas não só aprovam as cenas de bandidagem como reclamam a rua do Brasil. Nem que para isso tenham de «compreender» e de «fornecer uma explicação sociológica» para os assaltos, violência contra a imprensa, assalto ao Congresso e ao Itamaraty, etc. Desconsolem-se os que festejam a violência — o PT já se solidarizou com ela e deu-lhes as boas vindas, se bem que tenha sido recebido com apupos para já, e felizmente. Mas, fiel aos seus princípios, bem tentou festejar.
Parte do Brasil pode estar a arder. Talvez seja a agonia do petismo, do lulismo e da «imensa sabedoria» que o dr. Soares vislumbra em Dilma. Mas, entretanto, vem aí o marketing, e talvez nada fique por aqui.
Mito romântico, ator de primeira linha, preferido de mestres. Lembram-se de Pedro Armendáriz? Morreu exatamente há cinquenta anos, cumpridos anteontem, e deixou um rasto de luz onde entram Forte Apache (ao lado de John Wayne e Henry Fonda) ou O Fugitivo (com Fonda e Dolores del Río), de Ford, ou Os Insurrectos (com Jennifer Jones), de John Huston, para não mencionar a sua derradeira aparição, em 007, Ordem para Matar, onde faz o papel de espião inglês em Istambul – um mês depois, devorado pela dor e pelo cancro, suicidou-se. Discreto nas suas interpretações, lembra o que ele era: um cavalheiro latino de antigamente, uma beleza com rugas, um mexicano criado nos EUA, e a quem o México deve muito (juntamente com Dolores del Rio, o realizador Emilio Fernández, ou o fotógrafo Gabriel Figueroa, um génio – juntaram-se os quatro em María Candelaria). Vejam os seus filmes. É uma bela homenagem.
Atravesso o Rio das Pérolas, diante da baía de Xiangzhou. É impossível não pensar no destino de Edward Snowden, escondido em Hong Kong. Os jornais, naturalmente, exploram a natureza das relações entre os EUA e a China – e não faltam teorias conspirativas nem condenatórias que arrastam Snowden para a lama. Há uma diferença abissal entre o seu caso e o de Julian Assange: onde a WikiLeaks vertia informação sobre relações entre Estados, o programa divulgado por Snowden interessa a todos os cidadãos vigiados, em qualquer parte do mundo, pela segurança americana. A ameaça terrorista é um argumento tão elástico que pode tornar-se inaceitável quando os critérios da cibersegurança global se transformam numa porta aberta para a violação da privacidade e para a captura indiscriminada de informações que o Estado e as suas agências partilham, arquivam e usam como se fossem proprietários dos cidadãos.
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