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Para abrir e fechar a questão: o Público dedicou ontem a sua manchete a um assunto nobre – a autorização para a saída de Portugal de um quadro de Carlo Crivelli (não se trata de exportação, uma vez que essa autorização diz respeito ao espaço comunitário) na posse de um coleccionador privado. Compreendo a natureza da matéria uma vez que, por várias vezes, pedi esclarecimentos suplementares sobre exportação (essa sim, exportação) de bens culturais, a fim de impedir a saída de peças importantes do património artístico português.
Toda a imprensa reproduziu a notícia (num espaço de 6-páginas-6, o meu nome aparece em dois pequenos parágrafos) durante o dia de ontem e parte de hoje. No entanto, à excepção da Antena 1, nenhum jornal me pediu, sequer, para comentar o assunto ou dar a minha explicação, o que diz bem do processo de intenções que decorre. Adiante.
O caso é que — e para encerrar a questão — todos os procedimentos legais foram respeitados e cumpridos. Em resumo:
1) o quadro, ao contrário do que se escreveu no Público, nunca esteve nem “classificado” (só assim legalmente protegido até ao fim do necessário processo de “desclassificação”) nem em vias de ser “classificado”.
2) ao fim de três anos de duração do processo (o habitual é prolongar estes assuntos até uma das partes cair de inanição e a outra esquecer o assunto), era preciso dar uma resposta: ou ficar com o quadro, pagando-o, o que significava, na prática, dispor de aproximadamente €2,9 milhões; ou autorizar a sua saída para Paris. Escuso-me de comentar a hipótese de ter €2,9 milhões disponíveis (anos antes, o Estado português não tinha disponibilizado €50,000 para ficar com a arca de Fernando Pessoa que, aliás, é exposta sempre que o proprietário é solicitado). Confesso, também, que gostaria de pedir o NIB de algumas das pessoas que — com a habitual arrogância — ontem tinham redescoberto Crivelli, a fim de custear as obras de restauro dos carrilhões de Mafra (€2M), da torre da Sé de Lisboa, do Convento de Cristo, de S. Bento de Castris, do Forte da Graça, etc. Dinheiro há sempre, suponho.
3) não querendo comentar a qualidade, a singularidade e até o relevo deste Crivelli (esta obra do veneziano foi exposta uma vez em Lisboa, em 1972), a autorização foi dada com base num parecer técnico e legal devidamente elaborado por organismos da SEC.
A Assírio & Alvim publicou uma edição especial do Manifesto Anti-Dantas, de José de Almada Negreiros, «poeta futurista e tudo», acompanhada de um CD com a gravação original pela voz do escritor (datada de 1965). O livro tem um grafismo soberbo, reproduzindo a edição original, e Sara Afonso Ferreira explica-nos – em cerca de cem páginas – cada linha do Manifesto. O texto de Almada é um pilar do nosso modernismo literário; ninguém passa pelos primeiros anos do século XX sem referir o manifesto que deixa de rastos o autor da moda em 1915. Curiosamente, conheci poucas pessoas que tivessem lido Dantas. Nem Soror Mariana, nem A Ceia dos Cardeais, que estão na base da intervenção de Almada. É uma pena; Júlio Dantas tem algumas páginas de grandeza mas na literatura só teve direito a contraditório. É o mais famoso dos escritores desconhecidos. Há quem pense que nunca escreveu um livro, sequer.
[Da coluna do Correio da Manhã.]
Os idiotas falantes que agora tergiversam sobre a Europa deviam fazer uma pequena genuflexão para assinalar os 130 anos que passam sobre a primeira viagem do comboio Orient Express. Mas temo que o assunto não os comova ou que a sua ignorância seja mesmo terrível. A ligação entre Paris-Viena-Istambul (bem como Londres-Budapeste-Praga-Veneza) assinala uma Europa de fim de século (1883) que nunca deixou de estar presente na nossa imaginação literária ou cinéfila. Basta pensar em Agatha Christie, sim, mas também em Graham Greene, Verne, Paul Theroux ou Ian Fleming (o de 007) – que escolheram esse comboio como cenário. Depois da queda do muro de Berlim, a ideia da velha ‘Mittleuropa’ regressou para deslocar o eixo continental para Leste – o Orient Express da época do império Otomano podia ser um antídoto contra esse centralismo, mas o mundo tinha mudado. Passados 130 anos, as viagens de avião substituíram a utopia orientalista e o sonho de um continente alargado. A Europa já não tem memória para as coisas que valem a pena.
[Da coluna do Correio da Manhã.]
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