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Em 2012, os restos mortais de D. Pedro IV, primeiro imperador do Brasil, foram estudados por uma equipa da Universidade de São Paulo. Daí não resultou grande coisa para o conhecimento da nossa história comum, à excepção de ficar a saber-se que o senhor D. Pedro não era um gigante mas, sim, um homem de estatura mediana (não chega ao metro e oitenta, o que não era condição necessária para ocupar o trono) com quatro costelas fraturadas. Quanto à imperatriz D. Leopoldina, também submetida a tomografia na ocasião, está desmentido que tenha partido uma perna – tem o fémur intacto, uma maravilha. Esta ideia de exumar o imperador tem consequências, uma vez que o coração do monarca não está no Brasil, mas sim na Igreja da Lapa, no Porto. Os investigadores querem agora fazer uma biopsia à relíquia a fim de determinar se D. Pedro tinha o miocárdio em ordem. Sobre se pronunciou mesmo o grito “Independência ou Morte!”, não há notícias. Pena.
Somos a grande ilha do silêncio de deus
Chovam as estações soprem os ventos
jamais hão-de passar das margens
Caia mesmo uma bota cardada
no grande reduto de deus e não conseguirá
desvanecer a primitiva pegada
É esta a grande humildade a pequena
e pobre grandeza do homem.
Ao contrário dos que contribuíram para a história do “grande romance americano” (Dos Passos, Steinbeck, Faulkner, Vidal, Roth ou Norman Mailer), o seu nome foi muito mais considerado como contista ou dramaturgo e guionista. Injustamente. O seu livro mais famoso, uma saga familiar, em dois volumes, que a televisão popularizou (Homem Rico, Homem Pobre, com Peter Strauss e Nick Nolte, livro de 1969) é um gigantesco fresco da sociedade americana e dos seus mitos fundadores e desagregadores, com a guerra pelo meio. Os mesmos temas visitam Amor numa Rua Escura, Regressado da Morte, Lucy Crown ou Os Jovens Leões, todos traduzidos para português, tal como Entardecer em Bizâncio. Irwin Shaw nunca escreveu para a América grandiosa; talvez por conhecer o lado obscuro da glória que fabrica a pobreza e o sofrimento. É um clássico que infelizmente o tempo arrasou. Nasceu há exatamente 100 anos, que hoje se assinalam.
[Da coluna do Correio da Manhã]
«O país que acordou das legislativas pode não gostar da imagem que vê reflectida no espelho. Mas será obrigado a aceitar que o reflexo corresponde ao país.» A maior parte da imprensa portuguesa que cobre as eleições italianas também.
Futebol que dá gosto ver: o do Tottenham, esta noite, contra o West Ham. Não apenas pelos dois golos de Gareth Bale, mas sobretudo porque a equipa de André Villas-Boas utrapassa (nem me interessa saber por quanto tempo) o Chelsea. Ah, os instintos fatais.
Passam hoje 35 anos sobre a morte de Vitorino Nemésio (1901-1978). A data devia servir para, nas escolas portuguesas (por exemplo), relembrar o homem de letras, o notável poeta, o escritor, o mestre – e o autor do mais belo, completo e marcante romance português do século passado, Mau Tempo no Canal, um prodígio de beleza, paisagem, humanidade e gente desenhada com o talento inimitável de um grande autor. Se houvesse juízo e decência, a televisão pública já tinha produzido uma telenovela de primeira ordem a partir de Mau Tempo no Canal, com o cenário belíssimo do Faial (com a Horta de outrora, de sempre) e do canal do Pico e São Jorge, além dessa galeria de personagens inesquecíveis (a deslumbrante Margarida, os Clarks, os Dulmos, os Garcia, os Bana, os Peters, os baleeiros) desenhados com a perfeição de Nemésio. A grande arte de Nemésio e a sua obra mereciam gente com mais memória.
Mais isto, muito a propósito: vá à última página de Mau Tempo no Canal. Amanhã, às 19h25, completam-se 69 anos (21 de fevereiro de 1944) sobre o momento em que o escritor escreveu a última frase do livro. Está lá, anotado.
[Da coluna do Correio da Manhã]
A Concha
A minha casa é concha. Como os bichos
Segreguei-a de mim com paciência:
Fechada de marés, a sonhos e a lixos,
O horto e os muros só areia e ausência.
Minha casa sou eu e os meus caprichos.
O orgulho carregado de inocência
Se às vezes dá uma varanda, vence-a
O sal que os santos esboroou nos nichos.
E telhados de vidro, e escadarias
Frágeis, cobertas de hera, oh bronze falso!
Lareira aberta pelo vento, as salas frias.
A minha casa... Mas é outra a história:
Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,
Sentado numa pedra de memória.
O Bicho Harmonioso (1938)
Noite, Matéria da Morte
Noite, matéria da morte,
Acostuma-me a ti;
Dispõe de sul a norte
A Barra que eu perdi.
O vaso de mistério
Que o dia apaga – põe-o
A mim cheio e evidente:
Coisas que são do sonho,
Que não as veja gente.
Meu sono cava, ó casta e sossegada,
Como se fosse a tua horta.
Na terra humana tudo pega,
Até silêncio!
Planta sossego à minha porta.
E cresça do sossego
Então minha alma nova,
Como a rosa, que é só decência e apego
A uma modesta cova.
Eu, Comovido a Oeste (1940)
Texto fundamental para reler: «Arendt em Jerusalém», de António de Araújo e Miguel Nogueira de Brito, no Malomil.
De entre os livros que contribuíram para mudar o século que passou está The Feminine Mystique (A Mística Feminina), de Betty Friedan – foi publicado há exatamente cinquenta anos (a 19 de fevereiro de 1963). Ele permitiu que o mundo das mulheres não fosse apenas o de donas de casa desesperadas, sitiadas entre o casamento e a educação dos filhos, bem ao gosto do retrato da família americana tradicional desses anos de crescimento económico. O recato do lar deixou de ser um lugar agradável. Com uma clareza que hoje nos parece desnecessária, Friedan garante que a felicidade das mulheres dependia do fim desse modelo (identificando «the problem that has no name») – e, como boa judia, lê Freud à letra para desmantelar a ideia de que o problema do papel e do estatuto das mulheres é apenas sexual; pelo contrário, é da ordem do código civil. Cinquenta anos depois, Friedan faz parte da galeria das pessoas que ajudaram a mudar o mundo.
[Da coluna do Correio da Manhã]
«Books aren't public property, and writers aren't Enid Blyton, middle-class women indulging in a pleasant little hobby. They've got to make a living. Authors, booksellers and publishers need to eat. We don't expect to go to a food library to be fed.» As contas de Terry Deary, o autor mais lido nas bibliotecas inglesas, são muito politicamente incorrectas. Nestas ocasiões, penso nas minhas bibliotecas preferidas e de como seria uma pena perdê-las.
The Providence Athenaeum, «independent & member-supported library».
Agradecido a todos, em especial aos que acham deplorável que neste blog se escrevam palavrões. Como lembraram, pressurosos, fulano “usou um palavrão”. As viúvas de Lorca e mesmo as tias velhas da Sra. D. Bernarda de Alba também ficaram aborrecidas, vá.
Vasco Graça Moura é um dos nossos grandes poetas europeus. Na verdade, é um clássico que ultrapassou a fragilidade e as maldições do tempo – e os seus cinquenta anos de vida literária, que agora se assinalam, deviam ser motivo suficiente para relermos a beleza terrível (a expressão é de Yeats) de A Sombra das Figuras, ou de Sonetos Familiares e Uma Carta no Inverno, ou de tudo o que está presente nos dois volumes da Poesia Reunida. Poucos conseguiram, como Vasco Graça Moura, recriar o cânone da nossa grande poesia e comover-nos tão profundamente, entre a ironia e a melancolia, num equilíbrio de grande autor e de respeito pela tradição da melhor poesia do ocidente. O lugar de poeta não esconde, além disso, a sua figura de tradutor (o de Dante, Racine ou Shakespeare), de romancista, de ensaísta culto e exigente. Cinquenta anos não bastam.
[Da coluna do Correio da Manhã]
Caro Paulo Núncio: queria apenas avisar que, se por acaso, algum senhor da Autoridade Tributária e Aduaneira tentar «fiscalizar-me» à saída de uma loja, um café, um restaurante ou um bordel (quando forem legalizados) com o simpático objectivo de ver se eu pedi factura das despesas realizadas, lhe responderei que, com pena minha pela evidente má criação, terei de lhe pedir para ir tomar no cu, ou, em alternativa, que peça a minha detenção por desobediência. Ele, pobre funcionário, não tem culpa nenhuma; mas se a Autoridade Tributária e Aduaneira quiser cruzar informações sobre a vida dos cidadãos, primeiro que verifique se a C. N. de Proteção de Dados já deu o aval, depois que pague pela informação a quem quiser dá-la.
Uma vez por outra, o Estado podia meter-se na sua vida e dar algum exemplo de sensatez – mas, toda a gente sabe, isso é superior às suas forças. Agora, é a questão das faturas, um tema simples que podia ser resolvido de maneira simples; não, o Estado não o permitiria e determinou que os “consumidores finais” que não exigirem fatura nas suas aquisições, de lingerie a sabão azul e branco, arriscam uma multa a ser aplicada pelas autoridades. Ou seja: o Estado serve-se dos cidadãos para vigiar as transações comerciais na mais longínqua aldeia de Trás-os-Montes ou da ilha das Flores, mesmo nos lugares de onde se ausentou voluntariamente. Que as grandes empresas, mancomunadas com o Estado, encontrem formas de escapar ao aperto fiscal – é um facto da vida; mas que um Estado falido e especialista em extorsão decida sitiar os cidadãos com leis absurdas, é coisa digna de um monumental manguito.
[Da coluna do Correio da Manhã]
É provável que Bento XVI não tivesse conseguido fazer esquecer Joseph Ratzinger – o homem que, dez anos antes de ser papa, já comandava os verdadeiros destinos da igreja católica. Para o Vaticano, Ratzinger (um dos únicos cardeais que não tinha sido nomeado por João Paulo II) transportou o brilho intelectual, as preocupações de rigor doutrinário, a exigência teológica, a pureza da forma, a diversidade dos ritos, aquilo que acreditava ser a quase perdida beleza da fé. Aos que pretendiam uma igreja pop, Bento XVI lembrou aquilo que sempre defendera: a necessidade de ortodoxia para preservar o sentido e a forma da igreja, o que nunca significou – no seu papado e correndo o risco de se encontrar «em minoria» – a ausência de debate, de estudo e de profundidade. A Europa perde, com a resignação de Bento XVI, um intelectual brilhante e atento, que recolocou a religião na trajectória das pessoas reais.
Cinquenta anos depois da sua morte, aquela beleza continua a ferir. As fotografias de Sylvia Plath (1932-1963) evocam-na como um espelho da dor profundíssima que transita pelos seus poemas – e a sensação é de injustiça. Talvez por isso o seu suicídio tenha merecido todas as especulações, mesmo as mais disparatadas, que até à morte perseguiram também Ted Hughes, o seu marido, notável poeta inglês; ou talvez a marca da tragédia tenha perseguido Hughes (o filho de ambos suicidou-se também, bem como a segunda mulher de Hughes) através de Sylvia Plath. Hoje, além das fotografias, as traduções portuguesas de Plath (A Campânula de Vidro ou Ariel) devolvem-nos uma literatura cujo tom confessional foi um emblema de combate e uma terapia diante da melancolia do mundo. Vivido em papel, através de Plath (que se suicidou a 11 de Fevereiro), esse sofrimento é grande poesia. Mas uma vida terrível.
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