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Áreas como as que João Gonçalves identifica («qualificação das pessoas, das instituições e do território, a cultura, a economia, o ambiente ou o emprego e o pós-emprego») são prioritárias em qualquer plano de reforma do Estado, que deve tratar, em primeiro lugar, de responder a algumas questões essenciais: para que serve o Estado?, o que devem os cidadãos esperar do Estado?, até onde vai a sua autoridade e acção?; onde é ilegítima (e imoral) a sua autoridade?, etc. O debate sobre essas matérias deve fazer-se com abertura e espírito de tolerância, em liberdade, mas sobretudo convocando para ele — além dos partidos políticos — as pessoas mais qualificadas.
Há anos que muita gente tem contribuído para esse debate, à esquerda e à direita. Não faz sentido entregá-lo a comentadores que vivem do curto prazo e têm o seu mercado dependente do grau de inanidades apreciadas pelas audiências (é um mercado) — nem reduzi-lo a especialistas em finanças, a «senadores» cujo único «mérito» é o ressentimento, ou a universitários e «politólogos» que fazem da universidade um megafone para fazerem política sem entrarem na política («ah, nós não sujamos as mãos»). Faz sentido que seja feito com os cidadãos. E, já agora, com mais empresários do que gestores de empresas. Com mais gente que faça pela vida; porque não se trata de um debate sobre como salvar este Estado mas, pelo contrário, sobre como mudá-lo porque a sua existência é insustentável.
Só há debate quando as pessoas querem debater (o que pode não acontecer). Ora, o que se tem visto é, sobretudo, gente que quer debater desde que o debate não ponha em causa ou a Constituição, ou privilégios, ou reformas, ou regalias, ou direitos, ou princípios, ou preconceitos, ou a perspectiva de uma percentagem eleitoral. Um debate que não ponha em causa não existe. E há muitas coisas a pôr em causa.
Neste cenário, o «relatório do FMI» é um contributo; não é, naturalmente, um contributo generoso — mas não se esperava que fosse. Não vale a pena dar crédito a tanta indignação e pirueta verbal (e há gente com menos «indignações» depois de lê-lo). Ora, um «relatório do FMI» não é o instrumento mais indicado para iniciar o debate sobre a reforma do Estado português; quem quer lançar esse debate tem o dever de iniciá-lo e de desenhar o campo onde ele há-de decorrer. Face a essa ausência, o «relatório do FMI» deixa o governo refém de uma «ocupação estrangeira» e transforma o debate numa contabilidade de maldades a praticar — sem explicações, sem contextualização, sem história, sem sentido.
Estamos a tempo de fazê-lo, a esse debate? Estamos. Há condições para ele ser feito? Céptico, muito céptico.
O João Gonçalves escreve um post cauteloso e sério sobre o relatório do FMI: basicamente, que a reforma do Estado não pode «escrever-se exclusivamente em “financês”». Tem toda a razão. É necessário um debate mais geral, alargado e profundo, sobre essa reforma. Acontece que há vários acidentes neste percurso, o primeiro dos quais tem a ver com o «curto-termismo» que se instalou entre nós e com a consequente exigência de medidas com impacto imediato na vida dos portugueses. Ora, essas medidas são, sobretudo, de natureza económica, e, em muitos casos, têm a ver com a estrita sobrevivência de pessoas e famílias — e com a impossibilidade de os portugueses viverem muito mais tempo nas actuais condições. É possível, pois, que a reforma do Estado seja um luxo em tempo de emergência, com o fisco (como um xerife de Nottingham) atacando cidadãos empobrecidos e desprotegidos, assaltando uma classe média que sempre contribuiu acriticamente para os cofres do Estado, e com os cidadãos a sofrer os efeitos devastadores do desvario que trouxe as contas públicas até aqui.
Ninguém duvida de que o programa fiscal em curso é injusto, violento, desproporcionado e incapaz, só por si, de abrir caminho à recuperação do país. Essa recuperação não tem a ver exclusivamente com as contas públicas, não é exclusivamente económica e não pode ser exclusivamente decidida por especialistas em finanças — para isso, contratavam-se génios do cálculo em Excel. Mas é evidente que sem resolver a questão das contas públicas não podem ser construídas pontes para o futuro.
«Estará o país preparado para esse programa injusto, violento e desproporcionado?» Esta pergunta devia ter sido feita antes de o programa ser aplicado; e quase todas as dificuldades actuais derivam de não ter sido feita com clareza. Porque um tal programa ou é assumido pelo país, ou não tem maneira de chegar a bom termo. Ou seja: porque esse programa não pode ser apresentado como uma punição pelos erros que o próprio Estado e os seus terratenentes (os «senadores», as empresas amigas do Estado, os administradores da despesa, etc.) cometeram de forma aplicada e persistente.
Pode acontecer que os portugueses prefiram fechar os olhos, abdicar do sentido da realidade e estejam arrependidos do sentido de voto das últimas eleições — e queiram continuar a votar em José Sócrates ou em quem lhes promete um futuro fácil, longe «dos mercados», com reformas que alguém há-de pagar (sobretudo as mais altas), com «progresso» a pataco, com endividamento que ninguém («os mercados») parecer querer sustentar e com contas públicas que empurram o défice de exercício em exercício. E se for assim?
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