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As letras e as ciências queixavam-se de uma certa «ignorância» de parte a parte – os cientistas não tinham lido Dickens; os letrados ignoravam a termodinâmica e não sabiam a tabuada. C.P. Snow (1905-1980) criou por isso o conceito de «duas culturas». Hoje em dia, o desequilíbrio favorece as ciências. Sobretudo em Portugal, onde a cultura literária foi sempre muito mais valorizada do que a cultura científica (um cientista lê poesia, vai ao teatro, etc.; duvido que uma pequena minoria de letrados, sequer, se interesse por questões científicas, o que é uma pena). No ano passado, o Prémio Leya foi ganho por um engenheiro electrónico, João Ricardo Pedro; este ano, foi atribuído a um físico, Nuno Camarneiro, investigador no CERN e no departamento de química de Aveiro – e já autor de um romance. A literatura sai das letras. É muito bom.
[Da coluna do Correio da Manhã]
Em 2006, justamente, esse debate no Origem das Espécies, a propósito de um post de Paulo Gorjão sobre uma conferência de João Magueijo:
Há falta de contacto entre «as ciências» (se considerarmos que existem «ciências humanas e sociais») e os temas. Mas penso que a situação não se traduz por ignorância ou desconhecimento mútuos. Ou seja: a área das humanidades desconhece mais o mundo das ciências do que o inverso. É mais fácil encontrar investigadores, professores ou estudantes de ciências (matemática, física, biologia, etc.) interessados em matérias relacionadas com arte, literatura, política ou história, do que o seu contrário. As «humanidades» mostram em Portugal uma arrogância que lhes é fatal. O «predomínio» da «cultura literária» sobre a «cultura científica» traduz essa arrogância das Letras -- o que significa que alguém vindo da área das ciências pode discutir, de igual para igual com alguém das Letras, sobre política, ópera, relações internacionais ou o romantismo tardio, mas que a generalidade das pessoas de Letras tem grande dificuldade em apreender os conceitos fundamentais da ciência contemporânea; experimentemos perguntar a um aluno finalista de sociologia o que significam, em termos muito básicos, «mecânica quântica», «buracos negros», «teoria das cordas», ou se alguma vez leram Darwin, Stephen Jay Gould ou se são capazes de dizer que há uma teoria da relatividade restrita e uma teoria da relatividade geral (ou, até, neste caso, se se comoveram com o livro de Alan Lightman, Os Sonhos de Einstein).
Seria bom perceber até que ponto os alunos de Direito, de Psicologia ou de Relações Internacionais seriam capazes de relacionar o nome de João Magueijo com Einstein ou se se sentiram motivados, alguma vez, a comprar o seu livro Mais Rápido Que a Luz. Ou, para sermos ainda mais claros, se alguns se interessaram por ler os de Carlos Fiolhais ou os de Nuno Crato com Fernando Reis, Luís Tirapicos, etc.; se se aperceberam da actividade de Rómulo de Carvalho; se leram um dos livros de João Lobo Antunes; se ultrapassaram a contracapa dos livros de Damásio; se sabem quem é Maria de Sousa; se conhecem algum texto de Jorge Buescu, Alexandre Quintanilha, Rui Fausto, Rita Marnoto, João Varela, Teresa Lago, M. Moniz Pereira (só para citar aqueles que escreveram para «os grandes meios»); se já leram alguns livros de divulgação científica; se reconhecem os nomes de Feynman, Dawkins, Reeves ou Penrose; se acham que Sagan é astrólogo em vez de astrónomo; se se interessaram pelos livros de jogos matemáticos do João Pedro Neto e do Jorge Nuno Silva, etc. etc.
Estes são alguns dos maus hábitos da academia (a ignorância das Letras em relação às Ciências).
Relendo o blog de Augusto Nunes, na Veja, recordo uma página fantástica do ensino da Língua Portuguesa num manual do ministério da Educação brasileiro:
Trata-se da frase «Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado», que as autoras do manual dizem estar correta: «O fato de haver a palavra os (plural) indica que se trata de mais de um livro.» A norma culta imporia a grafia «Os livros ilustrados mais interessantes estão emprestados»; as autoras acrescentam: «Você pode estar se perguntando: "Mas eu posso falar 'os livro'?" Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico.»
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