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Havia o teatro, mas havia muito mais do que isso em Joaquim Benite: uma coragem criadora e desprendida que todos nos habituámos a respeitar. Era impossível não citar o seu nome, ou esquecer a Companhia de Teatro de Almada (e, antes, a de Campolide) e o seu trabalho como encenador (Shakespeare acima de todos, como se esperava do seu talento, da sua cultura e da sua sensibilidade – e O’Neill, Albee, Brecht, Lorca, Molière, entre muitos). Havia muito mais, e muito para lá das «artes do espectáculo»; havia sobretudo a sua intuição cheia de milagres, de leituras e de generosidade. Em 2011 cometeu um pequeno engano, ao dizer que «os encenadores nunca ficam na história, só os escritores, como Shakespeare» – porque o seu nome estará sempre no palco da nossa memória.
[Da coluna do Correio da Manhã]
Brasília, um pássaro visto do céu.
Oscar Niemeyer, 1907-2012
Sobre os oito estudantes que, na Universidade Nova, levantaram uma faixa a pedir a demissão do primeiro-ministro, há um jornal que usa o ângulo do triângulo rectângulo e titula que «Passos impede seguranças de afastarem estudantes»; outro, que opta pelo triângulo obtusângulo, prefere «Segurança de Passos tentou censura na UNL». Ângulos.
Leio finalmente o centésimo quinquagésimo sexto balanço que se publicou no Brasil sobre a «herança de 68»: é o de Zuenir Ventura, 1968. O que Fizemos de Nós (Planeta), vinte anos depois de ter escrito 1968. O Ano que Não Terminou. Zuenir é um personagem generoso e afável e também um velho tolerante e lusitanista. Chamo-lhe velho porque gosto dele, de verdade. Tem aquele folclore sessenta e oitista de sexo, maconha e «libertação do corpo» (nada que Nelson Rodrigues não tenha comentado sem cair no kitsch), misturado com a luta contra a ditadura e a ferocidade do regime militar (nada que Paulo Francis não tenha previsto, à distância e sem flores em Trinta Anos esta Noite — mas Francis era um talento raríssimo e cético). Mas o que mais me surpreende são as entrevistas finais com brasileiros que atravessaram o sessenta e oito e fazem um balanço. Tirando as mistificações de Franklin Martins e a trapalhada de José Dirceu, é um prazer ler César Benjamin (o Cesinha, três anos de solitária no cárcere da ditadura, aos dezanove-vinte anos, exílio, e uma inteligência desarmante), Fernando Gabeira (tentando manter aquele tom luminoso), Heloísa Buarque de Hollanda («Mas essa atitude prepotente e intolerante dos anos 60 e da geração de 68, dona da verdade, felizmente acabou. […] Sob esse aspecto, 68 era meio bobo. Agora somos mais humildes. Eu sou muito mais, eu era insuportável.»), Fernando Henrique Cardoso (o grande presidente do Brasil) e, pasmem, Caetano Veloso, tocando em pontos essenciais. Por outro lado, é isto: o prazer de acompanhar gente que pensa, no lado de lá do Atlântico. Capaz de repensar sem preconceitos.
Toda e qualquer alma que atravessa a passagem aberta pelo guichet da Polícia Federal e entra em território brasileiro fica definitivamente convertido, seja actor de novela, escritor, humorista ou empresário da construção. Em pleno voo, quando o avião passa por Fernando de Noronha, dá-se o milagre — a partir daí, em declarações a jornais ou televisões, quase toda a gente tenta provar o seu «brasileirismo autêntico», um amor apiedado, cheio de hipérboles, rasgado de comoções. Não há, a partir daí, sambista local que não se ame, escritor que não se idolatre, génio que não se inveje. Não me lembro de ninguém que tenha regressado e admitido, com sinceridade, que — puta que pariu — também há defeitos a sul do equador, que a política brasileira também fede, que o nhenhenhén da bossa nova também tem momentos insuportáveis e que o tiriritlimtlim-tiriripipi-tiripiti do Gilberto Gil é chato a valer.
Com atraso, reparo nas declarações do bastonário da Ordem dos Advogados sobre o magno problema jurídico da venda da virgindade por uma jovem brasileira: «Uma das coisas que o Brasil mais tem exportado para Portugal são prostitutas.» O raro poder de síntese associado à elegância da observação faz-nos confiar neste modelo de causídico à velha moda, valente e desempoeirado, capaz de analisar a balança de exportações brasileira com tanta presciência e limpeza. Ah, bravo jurisconsulto.
Que saudades eu já tinha dos frangos de Helton. Perfeitos, irrepreensíveis, impossíveis de imitar. E geralmente em competições internacionais.
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