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Nicolau Tolentino de Almeida (1740-1811) morreu há duzentos anos, cumpridos hoje. Há uns anos, salvo erro, qualquer aluno do ensino secundário sabia de quem se tratava – todas as coletâneas (“seletas”, como então se denominavam) incluíam um célebre soneto (“Chaves na mão, melena desgrenhada”) em que, de dentro de um toucado, surgia um colchão desaparecido (“Eis senão quando [caso nunca visto!]/ Sai-lhe o colchão de dentro do toucado!”) Nós ríamos bastante e tínhamos razões para isso: Nicolau Tolentino era um boémio setecentista com gosto afinado para a sátira e para o exagero. Professor primeiro (de retórica), oficial de secretaria depois, a sua poesia nunca ultrapassou aquele nível de curiosidade risível e clássica. Mas era bom relê-lo para ter algumas surpresas.
[Na coluna do Correio da Manhã]
Chaves na mão, melena desgrenhada,
Batendo o pé na casa, a mãe ordena
Que o furtado colchão, fofo e de pena,
A filha o ponha ali ou a criada.
A filha, moça esbelta e aperaltada,
Lhe diz coa doce voz que o ar serena:
– «Sumiu-se-lhe um colchão? É forte pena;
Olhe não fique a casa arruinada...»
– «Tu respondes assim? Tu zombas disto?
Tu cuidas que, por ter pai embarcado,
Já a mãe não tem mãos?» E, dizendo isto,
Arremete-lhe à cara e ao penteado.
Eis senão quando (caso nunca visto!)
Sai-lhe o colchão de dentro do toucado!...
A morte de Pedro Hestnes devia afligir-nos – não só porque se trata da morte, em si mesma, mas porque a quase eterna juventude do rosto de Hestnes há-de ficar a marcar uma parte do cinema português dos anos noventa, com a sua placidez, a sua beleza sem tranquilidade, o seu olhar. Passou pelos filmes fundamentais dessa era de renovação – de O Sangue, de Pedro Costa, a Agosto, de Jorge Silva Melo, ou A Idade Maior, de Teresa Villaverde e Três Menos Eu, de João Canijo. Há outros, mas recordo estes de memória (ah, e Xavier, de Mozos), como uma espécie de elogio do seu rosto, como uma estrela distante do cinema que fomos capazes de reinventar. Tínhamos a mesma idade, 49, o que é mais doloroso. Quando alguém parte, assim, deixa a impressão de ter ficado muito por fazer.
[Na coluna do Correio da Manhã]
Aos oitenta anos, John Lee Hooker (1917-2001) publicou um álbum inesquecível, Don’t Look Back. Os que o conheceram apenas com essa idade não reconheceram no seu som toda a eloquência melancólica dos “Chicago blues”, comandada por uma guitarra que se tornou um ícone de toda a sua obra. Uma obra-prima, Don’t Look Back (a canção com esse título é reinterpretada em dueto com Van Morrison) também não resume uma carreira com cerca de cem discos publicados, de onde trauteamos “Boogie Chillen”, “Serves Me Right To Suffer”, “Boom-Boom” ou “One Bourbon, one Scotch, one Beer” – mas é um bom começo para quem não foi ainda tocado pela magia dos ‘blues’ e daquela arqueologia negra, profunda. A sua voz era única, um apelo das profundezas. Morreu há dez anos, assinalados esta semana.
[Na coluna do Correio da Manhã]
Amy Winehouse é uma figura de tragédia — ela encarna a figura do talento prodigioso que raramente aproveita as oportunidades que tem para ser o que merece: uma estrela amada. Amada pela sua voz, amada pelo seu timbre verdadeiramente ‘soul’, até amada pelos seus desastres. Houve talentos desses consumidos pelas drogas e pelo álcool, destruídos pela fama e pela má-sorte. Mas Amy Winehouse é uma espécie de Sísifo que não consegue transportar até ao cume da montanha o peso extraordinário da sua vida. Cai demasiadas vezes devorada pelos seus fantasmas ou pelo álcool, o que começa a ser um excesso, até mesmo para os seus fãs mais adolescentes, como uma repetição da desgraça, uma espécie de drama aguardado com a irregularidade de uma coisa que já não seduz nem impressiona.
[Na coluna do Correio da Manhã]
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