Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
De repente, nasceram dezenas de colunistas e bloggers responsáveis, atinados, a colocar o interesse nacional à frente dos interesses partidários, penalizadíssimos com a situação económica alarmante, contra a loucura irresponsável que tomou conta «desta gente», contra o cinismo, a rasgarem as vestes como no Antigo Testamento e a pedirem um consenso alargado. Onde estavam há um ano e meio? A fazer um consenso alargado, aposto.
Trabalhei com o Fernando Mateus durante muito tempo e, além do mais, ele ilustrava algumas das minhas crónicas. No Twitter achei a sua bela definição: «Book lover with a passion for food.» É o essencial.
1. Podemos ter acesso aos números verdadeiros, aos números da dívida, aos gráficos da evolução da dívida e das execuções orçamentais, ao excel da despesa pública, aos números do endividamento por causa das PPP – enfim, às contas públicas? Podemos saber quanto se deve, quanto se gasta, quanto os portugueses pagam de impostos, quanto dos seus impostos é aplicado e onde (educação, saúde, justiça, segurança – e empresas públicas, obras públicas, institutos & observatórios, comunicação e mordomias)?
2. Podem esses dados ser reunidos por uma entidade independente, fiável, «certificada»?
3. Se a resposta for negativa, podemos saber porquê?
António Barreto na SIC-N.
Este é um tempo para corredores de fundo. Portugal tem um primeiro-ministro (José Sócrates) — e vários problemas para resolver. As reacções das últimas 24 horas, pesadas e medidas, falam de convulsões que não aconteceram ainda e de um espectáculo que ainda não começou. Há demasiada turbulência, volatilidade (não só a dos mercados, que se recompõe em jogadas de um minuto ou em manobras de longo curso) e ressentimento. Disso, só o ressentimento vai sobrar durante os próximos dois meses. Vai haver bastante, em doses estratosféricas, prontas a ser distribuídas por peões de brega. Ganhará quem resistir à tentação de subir o tom sem esquecer que há uma relação entre o sujeito e o complemento directo, salvo seja.
Logo de manhã, o Luís Paixão Martins escreve duas coisas a reter (no Twitter): «Novo protagonismo de Francisco Assis é sinal que PS encara sucessão de Sócrates por António Costa. Seguro mais distante.» E: «Primeiro dia de combate pré-eleitoral com PS parece estar a desmoralizar PSD. Talvez sondagem ajude a recuperar. Isso e introspeção.» Sublinho o termo «introspeção»; parece-me adequado. Mas, Luís, A.J. Seguro está em introspeção.
Filipe Nunes Vicente sobre o estado das coisas. A ler, como de costume.
Na Antena 1 ouço Marina Costa Lobo. Um prodígio. Sócrates abriu a crise, o PR e o PSD acompanharam o governo em 2010 – até que o primeiro-ministro encostou o PSD à parede, de forma desastrosa e com vista a tirar daí vantagens políticas. Logo, o PSD foi irresponsável ao não ter aprovado o PEC IV. Um prodígio.
Ra Ra Riot, «Can you tell»
Coisas importantes.
«Parece que a transgressão é o Sagrado Pós-Moderno e já nos falta instrução para uma nova iconoclastia.»
Tiago Cavaco, no Voz do Deserto.
«Este episódio é um paradigma da intolerância que se instala. Da forma de ser e agir das sociedades contemporâneas e laicas. Não se passou em nenhum país muçulmano, mas em Madrid.» A ler o post de Helena Ferro Gouveia.
«Eu não esqueço as cordilheiras dos Andes, em volta dos lagos./ Longe da primavera, nos campos onde passa o vento/ que vem do sul, que vem do norte / como uma cicatriz gravada a fogo.»
Ontem à noite, na Sala António Manuel Couto Viana
da Biblioteca Municipal de Viana do Castelo.
Lançamento de Um Promontório em Moledo, de António Sousa Homem.
«A minha sobrinha Maria Luísa, educada com muita literatura (boa parte, da minha biblioteca), vai no segundo divórcio mas, felizmente, não chegou ao terceiro casamento. Tenho uma secreta admiração pela sua biografia amorosa. Os Homem, apesar de tudo, deixaram um rasto de amoralidade nos arquivos: um tio dos Arcos raptou uma noiva à porta da igreja para casar com ela em Espanha; o Tio Alberto, que foi o maior bibliófilo do Minho e que cozinhou para Camilo José Cela, enamorou-se por uma princesa do Cáspio; o velho Doutor Homem, meu pai, com o pretexto de visitar o dr. Cunha Leal, exilado na Corunha no tempo de Salazar, ia comer ostras a Ribadeo e visitar os botequins de Vigo; e o Tio Alfredo Augusto, que regressou do Pernambuco no final dos anos sessenta, suspirava com saudades das plantações de açúcar. Ao ler estas crónicas, a família suspeita de que alberga um sátiro sem vergonha. Só a minha sobrinha Maria Luísa, que vota à esquerda, acha graça às aventuras de um bando de desmiolados que venerou o senhor Dom Miguel.»
«Não é todos os dias que um Homem abandona a sua província para se aventurar nos caminhos da Pátria. Desde 1985, quando me fixei em Moledo, que raras vezes tenho abandonado o perímetro do meu Minho. Ao contrário do Tio Alberto, que se enamorou várias e repetidas vezes de senhoras estrangeiras, e que por isso conhecia os melhores hotéis de Madrid, a cor do lago de Genebra, os sabores de Paris ou o odor do Mar Cáspio, eu segui o destino dos velhos Homem de antanho, que só conheciam ou o caminho para casa ou o mapa das deambulações do senhor Dom Miguel. Quis o destino que este Matusalém minhoto tivesse de esperar pelos oitenta anos para revelar a baixeza da vaidade e da pequena luxúria. Refiro-me à escrita. Deixei, enfim, de ter vergonha. É um pecado como qualquer outro, mas não se pode fazer nada contra o pormenor.»
«O velho Doutor Homem, meu pai, achava que as novas gerações estavam ameaçadas pela má literatura, pela eternidade e pela abundância. A abundância tornava-as menos humildes, a eternidade prolongava-lhes a preguiça e a má literatura impedia-as de reconhecerem a beleza, se a vissem. Ainda hoje não sei onde um advogado quase anónimo, especialista em direito bancário, foi buscar essa trilogia, mas reconheço-lhe alguma fiabilidade.»
Pois. Há aí alguns problemas de comunicação, como diz o Dr. Vitalino Canas. É o costume; tudo se resolve com «comunicação». Dá gosto.
Entretanto, sem problemas de comunicação, Medeiros Ferreira, atento aos sinais, dá outros sinais para quem tem medo de encarar as coisas de frente.
Eu sofria bastante de sono ao volante. Depois, com a idade (é o meu argumento preferido), passei a tomar medicamentos contra isto e aquilo e outros para dormir. Das quatro ou cinco horas diárias de sono passei para as oito — e o sono ao volante desapareceu. Deixei de tomar medicamentos e continuei a dormir muito mais. Mas às vezes tenho sono ao volante. Se me encontrarem a dormir numa «área de serviço», completamente indiferente, é porque, dez minutos antes, mais ou menos, senti sono ao volante. Já dormi quinze minutos. Já dormi duas horas. Uma vez dormi seis horas numa «área de serviço» do Oeste (o bucolismo agrícola do Oeste sempre me acalmou os nervos), o meu recorde pessoal numa viagem Porto-Lisboa a meio da noite. Ultimamente, com a idade (é o meu argumento preferido), fico contente quando sinto sono ao volante: é sinal de que vou dormir na próxima área de serviço. Isto é uma coisa, e é pessoal, e é anedótico. Outra, razoavelmente diferente, é o sr. secretário de Estado da Protecção Civil pensar em multar-me por ter sono ao volante. Como fará? Manda-me parar o carro e pergunta-me? Faz um teste de apneia em plena A17 ou A8 (as minhas preferidas)? Apanha-me a dormir e aplica-me a coima? Monta postos de vigilância nas estradas e, se vê uma pálpebra descerrar, preguiçosa, lança um alerta vermelho? Se eu me despisto no meio de uma soneca, manda recolher os pedaços e apresenta uma multa à família? Manda instalar um chip nos volantes portugueses? Tenta alterar as playlists das rádios e substituir o fado pelos hits dos AC/DC («Highway to Hell» à cabeça, mas pode vir «Thunderstruck») e por guitarradas dos Deep Purple? Distribui suplementos de cafeína nas portagens que ainda existem? Instala dispositivos de vigilância do sono nas maravilhosas portagens das antigas Scut? Expliquem-me como isso se fará.
Eu sei que o assunto é de magna importância e não estou a brincar. Simplesmente, eu durmo. Aconselho os sonolentos a ressonar pelas estradas fora, parados na berma, abrigados nos pinhais, encostados nas «áreas de serviço», mesmo sem colete reflector. Mas, caramba, detectar o sono parece-me uma coisa que Orwell era capaz de incluir em 1984. Só tenho elogios para o Estado, só elogios. Um Estado assim é uma coisa boa, a cuidar de nós e a punir malfeitores.
O lugar do Dr. António Sousa Homem, ao centro, vazio.
Lançamento nacional de Um Promontório em Moledo, na noite de ontem,
no bar Pra Lá Caminha, junto da praia de Moledo.
Hoje, em Viana do Castelo, às 21h30, na Biblioteca Municipal.
É hoje.
«Cheguei à última década. Conto os dias, como um milagre. Os meses, como uma desfaçatez. Os anos, como um acontecimento digno de registo. Às vezes olho a minha família, perfeita ou imperfeita, com a sensação de pertencer-lhes como um desvio permitido. As paixões de outrora têm apenas o perfume de outrora; as paixões da idade adulta relembram um olhar, uma conversa, um passeio pelos cafés, cartas trocadas sem dizer o que deviam dizer – sempre oportunidades perdidas que não mudariam o essencial da vida desta velharia minhota estacionada em Moledo. Os meus sobrinhos dão-me as notícias essenciais. Dona Elaine, a governanta deste eremitério, aconselha-me obediência ao médico e perseverança nos chás com ervas silvestres – e, já agora, que não canse tanto a vista com livros que já me não acrescentam sabedoria. Procuro neles algum conforto contra as ameaças da idade. O resto virá.»
«A minha sobrinha Maria Luísa consegue estacionar o carro diante de um dos dois cafés e leva-me em peregrinação sentimental pelo meio da chuva. Ela acha que o clima, o cenário e a composição em geral (o retrato de Turner que se equilibra sobre a praia, no fundo) favorecem a leitura, ou do jornal ou do romance da moda, à mesa do café. Na véspera dos meus noventa anos, a literatura é um mal e um bem. Com esta idade já se sabe que a vida é um caminho à beira do precipício e que uma certa ironia acaba por ser um bálsamo para o cepticismo, a tristeza e a tendinite. Quando alguém passa de bicicleta lá fora (as vidraças dos cafés são uma bênção para os preguiçosos, especialmente no Inverno), recordo Dona Ester, minha mãe, entusiasta do exercício físico e da indiferença diante dos Elementos, a que ela não atribuía grande importância – quer chovesse, quer viesse a canícula do Estio, ela achava que o reumatismo e a melancolia não eram senão o resultado da preguiça portuguesa. Setenta ou oitenta anos depois reconheço que ela tinha razão, porque apetece enfrentar o temporal em benefício da paisagem. Tal como os grandes amores de outrora, a paisagem é um bem inestimável.»
«Os Homem habituaram-se, desde que perceberam que o regime tinha mudado definitivamente (o que aconteceu há cento e cinquenta anos, mais ou menos), a cumprir a lei mais do que todos os outros; isto garantia-lhes sossego e paz civil, ausência de fiscais e meirinhos à porta dos seus refúgios, e distância em relação a credores. Por mais aziagos e tumultuosos que fossem os tempos, havia uma barreira de incomunicabilidade entre a família e o resto do mundo (normalmente confundida com certa e inegável misantropia). Isto, salvo erro, garantia certa liberdade de movimentos. Desde há cento e cinquenta anos, por arredondamento, que os Homem “desapareceram da circulação”. Vão à farmácia, recebem telefonemas, frequentam a praia, pagam generosamente os impostos, mantêm boas relações com conhecidos e, sobretudo, com desconhecidos – mas sentam-se nas filas do meio, perto das coxias de saída. Tentei explicar esta “filosofia” à minha sobrinha Maria Luísa, prevenindo-a de que, logo por detrás, está um certo “complexo de superioridade”, garantido por anos de sobrevivência no anonimato.»
«Os Homem não são gente rica. Não o eram no “velho regime”, não o foram durante o constitucionalismo e, seguramente, não o foram durante a República. Poderiam ter sido, não fosse a casmurrice dos antepassados da tia Benedita, exemplares do “liberalismo portuense”, burgueses de Cedofeita, governadores civis ou putativos ministros do reino. Mas a casmurrice falou mais alto; velhos fidalgos dos Arcos, de Ponte de Lima, de Viana ou, mais prosaicamente, dos arredores de Braga, temiam o apocalipse, que viria com os pândegos do príncipe brasileiro ou com o jacobinismo dos advogados do Porto. Resistiram e trabalharam para sustentar a sua solidão política, um vício honrado e caríssimo, hoje como ontem. As “crises” passaram por eles como uma ventania do mar do Minho. Observavam-nas de perto, mas protegidos pela parcimónia e pela mediania, num país que detesta a parcimónia e a mediania. Quando as burguesias do Porto (e do resto do país) ostentavam o carmesim da sua fortuna e do optimismo das suas revoluções, a velha família contentava-se com as sestas à sombra dos pinheiros dos Arcos de Valdevez e com a biblioteca de Ponte de Lima. Tínhamos aprendido que a “crise” seria duradoura e cruel. E permanente. Ainda cá está.»
Daqui a nada, na TVI24 (à 01h00, repetição amanhã às 20h00), no Nada de Cultura, um debate sobre «a geração à rasca» (não é bem isso, mas...), com Pedro Vieira, João Pacheco, Alexandre Borges e Tiago Moreira Ramalho.
Afinal, a distância de 10 pontos foi-se. É um grande aborrecimento. Mas estava escrito nas estrelas.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.