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O sol no Tejo é uma grande coisa. A beleza da paisagem comove. A ciclovia de Vila Franca é uma bênção, há praticantes de remo com ar feliz; eu próprio passei meia hora tranquila enquanto D. Maria Celeste dormitava, com o sol a aquecer-lhe as maçãs do rosto. E eis que foi aqui, aqui, bem aqui, no coração de Sta. Iria, ao pé do viaduto de azulejos brancos e azuis, que o telefone de D. Celeste tocou, despertando-a. «Não posso atender-te, filha. Ó querida, estou no comboio. Depois te ligo.»
Eládio Clímaco caiu no meio da neve e ri-se como se fosse uma coisa divertida e ele um Buster Keaton na Serra da Estrela. A paisagem melhorou substancialmente e vêem-se os efeitos das cheias em campos encharcados, agora que passámos o Entroncamento. A D. Maria Celeste tombou de repente, saciada, com um sorriso ligeiramente descaído para o lado esquerdo — e dorme, com o telemóvel no regaço. Juro. Na televisão, o chefe Hélio Loureiro substitui Isabel Angelino e Eládio Clímaco e ainda me restam 40 minutos de viagem. Espero que a D. Maria Celeste não desperte.
Ela chama-se Maria Celeste a acabou de conseguir ligar para a Maria Cristina a avisá-la de que não consegue falar para a Joana, para a Carla e para outra pessoa cujo nome me escapou. Conseguiu também falar para um netinho, a quem pergunta se o seu (dele) telemóvel tem computador. Ligou para duas pessoas a quem comunica que fulano só vai amanhã e depois segue para os Estados Unidos. Eládio Clímaco entra no Museu do Pão de Belmonte. A D. Maria Celeste conseguiu falar para um cavalheiro que a informa de que está numa reunião mas que lhe liga daí a duas horas. Tento identificar as árvores que passam pela janela. Volto a olhar a senhora, de frente, durante cinco segundos. Ela sorri. Isabel Angelino calça umas luvas e eu temo que nos aproximemos do Entroncamento com estas condições.
Acabei de atravessar Pombal e a avó não se cala. Já tentei ler (é um romance demolidor, confesso) e distrair-me com a paisagem (é impossível, está toda estragada). Na televisão, por favor, por favor, por favor, está a passar um programa de divulgação turística das belezas portuguesas (em Belmonte, desta vez) com Eládio Clímaco e Isabel Angelino — ele tem um anoraque vermelho e ela um gorro azul celeste, e comem abundantemente depois de visitarem uns aposentos onde é pouco crível que pernoitem. Já li o Expresso (foi fácil). Neste momento, a avó parece-me o prof. Carvalho Rodrigues sem barba e tem a voz do detective Ventoínha dos Parodiantes de Lisboa. Ajudem-me. Já a olhei de frente. Ela está a mandar beijinhos para uma vizinha. O telefone é daqueles bons, tem uma bateria que não acaba. Por favor.
Estou sentado no meu lugar, num comboio Porto-Lisboa. Atrás de mim, sentadinha e vestidinha de verde claro, vai uma avozinha simpática que, desde que o comboio atravessou o Douro, ainda antes de parar na estação das Devesas, só à vista da praia de Espinho esteve com o telefone inactivo (neste momento acabo de atravessar o Mondego). Enviou beijinhos para vinte e dois netinhos, três filhas, duas amigas (uma das quais acordou), várias sobrinhas, falou em português e inglês, comentou duas heranças, várias receitas a preparar «da próxima vez», atestou amor profundo e sério a vários familiares, comentou o casaquinho de lã que uma tal Elvira trazia vestido, falou do sobrinho que vive numa certa cidade (fiquei a saber que é uma excelente pessoa, mas acho, intimamente, que engana a família toda), mencionou uma viagem na Páscoa — enfim, o que se passa é o seguinte: ela não se cala. Alguém conhece um método, eficaz e indolor, de interromper esta sequência de chamadas telefónicas sem ser arrancar-lhe o telefone ou gritar-lhe ordinarices? Já a olhei fixamente por cinco segundos, de olhos muito abertos; já me levantei duas vezes e fui até ao fundo da carruagem; já simulei uma tentativa de suicídio — ela continua a falar e acabou de marcar um novo número. Tem uma voz doce e insuportável. Não se cala. Por favor.
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