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Tenho saudades de Espanha. Alguém deve ter demolido aquele país monumental e livre, de alcoóis supinos, de fumos elegantes e brutais, de cronistas hirsutos como hierofantes, capazes de se insultarem com método e disciplina, de capa e escopeta, e substituí-lo por esta merdice de vigilantes de refeitório, desenhados a esquadro e flor de iorgurte — que tanto perseguem fumadores reunidos numa barra como corrigem a língua nobre e orgulhosa que foi de Cervantes, Ortega, Pedrayo, Cela e Ballester, para a transformar num zapaterismo de plástico e alforreca. Tenho saudades de Espanha.
Há aí uns fedelhos e fedelhas na imprensa (rádio, tv e jornal) que, de repente, descobriram ser «o BPN» (em vozinha histérica, laparosa, maltrapilha) «o grande tema das presidenciais». Não lhes bastasse andarem a responder de ouvido aos sopros que lhes chegam como um bordão, há agora, aqui, o descaramento de quem andou mais de um ano a tergiversar em roda do mistério do banco perdido; investigar, reunir provas, coligir documentos — só se alguém as fizer chegar, servidas e oleadas. Escusam de se eriçar e corar de desapontamento. Não passam de altifalantes. Durante meses pedem política, ideias, honra e seriedade; em dois dias, seguem a lebre como se fossem alferes de coutada.
Caro Eduardo: a questão não é olhar a coisa BPN ou a coisa CEF (Caixa Económica Faialense) à luz do cavaquismo ou do socratismo. O problema é o estrito cumprimento da lei, coisa que assusta muita gente porque, segundo parece, a lei verga-se bastante consoante o filet mignon do colunismo, que é o alvo das tuas ironias. Que a falência fraudulenta seja fácil de explicar, eu concedo: foi um assalto às poupanças dos clientes, depositantes anónimos e emigrantes que passaram uma vida inteira a trabalhar no Canadá e nos EUA para enviar «para casa» os dólares da sua vida. Em Português, as leis encontram sempre vírgulas para que alguém contrate não um advogado – mas um gramático que analise os parágrafos à lupa. Sou de opinião que os escritórios de advogados têm escondido, nas caves, parte dos meus antigos colegas de linguística e filologia, amarrados a frases impenetráveis perpetradas pelos legisladores, juízes do Supremo e outros avatares. Já no caso da coisa BPN, não havia – ai de nós – , essa pobre gente que lava a honra das suas economias com disparos sobre gerentes de contas em Toronto ou Montreal, como aconteceu com a CEF: em seu lugar, havia coleccionadores de acções, especuladores «da alta», financeiros, industriais e antigos «cavalheiros da indústria» (uma classe em desaparecimento, infelizmente), aforradores «de nível», negociantes de fundos nebulosos e – claro, lá teriam de aparecer estes empecilhos – pessoas que investiram o que tinham para investir porque queriam valorizar o seu dinheiro como os outros o valorizavam. Que até agora não tenha havido uma solução é, pois, regularmente estranho. O Estado (nós, eu, tu) já pagou uma parte da factura e do buraco. Vamos continuar a pagá-lo, por mais absurdo que isso seja. Culpar os anos do cavaquismo é uma hipótese muito produtiva para efeitos de pregação moral e de reavivamento da memória, para quem não toma Fosgluten; mas as Sras. Auctoridades que deixaram o BPN chegar a este buraco suspeito estão livres de investigação; o Banco de Portugal fica com o currículo limpo; a CGD vai receber doses injectáveis até diluir o veneno; e os tribunais hão-de recorrer a linguistas e filólogos como de costume. Tirando a celeridade da justiça, os dislates do Banco de Portugal (que se limita a ficar surpreendido com a idoneidade das administrações, como se o dinheiro tornasse honráveis os seus donos), a injecção de dinheiro (que não se sabe para onde foi, para onde vai e para onde irá), não percebo por que não se limpou a coisa BPN. Nacionalizou-se o buraco; ficámos a pagá-lo. Um dia desnacionaliza-se o buraco e é preciso que alguém o pague de novo. Estás ver, não estás? O país é que está cheio de gente que gosta de arriscar desde que isso não signifique correr um risco. Dinheiro fácil, baratinho e privado.
Adenda: ver post de António Pinho Cardão.
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