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Durante muitos anos (sou capaz de contá-los) incomodava-me com os números da desleitura. Era importante que as pessoas lessem, e lessem livros, e lessem mais. Fazia parte do «disco rígido», esse combate. Admito que valia a pena distribuir livros; falar deles; lê-los em voz alta; falar de uma civilização que tinha guardado tijolinhos, papiros, papéis. Procuravam-se as estatísticas ao fim de cada ano – quantos mais, quantos menos. E isso incomodava, geralmente, mais do que regozijava. Hoje não me interessa; somos de uma cultura perdida, cada vez mais. 30% dos estudantes de letras acham que ler é um sacrifício e eu compreendo que seja uma actividade que favorece o aparecimento de varizes, dores nas costas, aumento de dioptrias, «variações no índice de felicidade», investimento em bens rigorosamente inúteis. Os livros desvalorizam muito, as folhas apodrecem frequentemente, as boas e más ideias circulam com grande impertinência. Hoje não tenho grande ideia sobre a matéria. Dei por mim a querer coisas muito reaccionárias, como obrigar alunos da secundária a ler autores que os técnicos de pedagogia acham traumatizantes e pouco estimulantes, como Cesário, Mendes Pinto ou Correia Garção. É uma maneira de dizer. Passamos muito tempo a fazer figura de caretas, passamos por ser manchas de bolor na paisagem, passamos por gente que tem aquele aspecto risonho, animal, de dentes saudáveis e músculos treinados, muito cheios de futuro depois dos trinta, somos de outro mundo. E fazem-me muita falta os amigos que me morreram. Outro dia percebi que me faziam muita falta, e enumerei-os. O Torcato Sepúlveda e eu líamos Camilo (e Eça às vezes) ao desafio para reproduzirmos diálogos da Brasileira de Prazins e das Novelas do Minho. De quem era esta frase? De onde é esta frase? De que livro saiu o bacharel Antunes que comia pescada de cebolada em Amarante? O Luís Pignatelli recitava sonetos inteiros. Fazem-me muita falta. O Torcato faz-me muita falta. À nossa maneira, muito inconscientemente, queríamos que as pessoas gostassem do que tinha salvo a nossa vida, mas isso era, é, seria um erro, estamos em democracia, há muitos caminhos para chegar ao abismo. As estatísticas condenam-nos e não temos de ser iguais. Nos meses antes da morte, o Torcato saía de casa muito cedo e eu encontrava-o num banco do Jardim da Parada, em Campo de Ourique, a ler. Perdi-o devagar, perdi-o muito depressa, perdi-o cedo de mais. Há muita gente que me faz falta. O Henrique Barreto Nunes, por exemplo, um dos melhores leitores que conheço – devíamos ser vizinhos. Mas não é isso que interessa. Nada disso interessa. 30% dos alunos de letras (a merda das estatísticas) acha que ler é um sacrifício. E é um esforço inglório. Há coisas mais saudáveis. O mundo mudou todo. Não me apetece mexer um dedo por causa disso. Seremos ilhas. Estaremos trancados entre muros. Coleccionaremos excepções. Aqui, na blogosfera, há leitores muito especiais, e se calhar são esses que interessam, leitores muito especiais. Tudo isto é por causa das estatísticas, mas cada vez mais gente a ler era bem capaz de ser um absurdo.
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