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Na feira de Frankfurt vi seis livros sobre Ferran Adrià. De cada vez que me aproximava de um deles aparecia um editor ou uma agente murmurando «ah, elBulli...», ou perguntando «já foi ao elBulli?, ah, elBulli...», quando uma pessoa vinha do piso inferior onde o luxo gastronómico se reduzia a um par de salsichas com sauerkraut e pão de centeio para acompanhar a segunda dose de weissbier. Assim nasce um ódio divertido, um ataque de riso; Ferran Adrià, o mago da cozinha molecular (ataque de riso) foi convidado para a Documenta Kassel como um expoente do design. Uma pessoa senta-se à mesa de elBulli depois de passar alguns meses numa lista de espera entre toureiros e executivos da Procter & Gamble, e apetece-lhe, digamos, um arroz de grelos para acompanhar as crudités de alcachofas y parmesano con costillitas de conejo, enquanto não chega o tuétano con ravioli de ceps y langosta. A comida é excelente, mas a Documenta Kassel explode nos catálogos. Design. E agora as novas tecnologias, o novo-riquismo da temporada (enquanto não se descobre que o grande problema ecológico são os grandes cemitérios de chips e plásticos, e não a devastação de eucaliptos para celulose): Adrià abre o elBulli às novas tecnologias, numa parceria com a Telefónica. Infelizmente, a PT já não é aliada da companhia espanhola. À minha avó, que preparava as melhores sardinhas cruas, marinadas em limão e azeite, com salada de azedas, não muito diferentes (mas melhores) das sardinas a la grosella negra y eucalipto ou das sardinitas al azafrán con coliflor y cebolla tierna, ou que servia uns ovos estrelados (que podiam acompanhar, mas sem espuma, o huevo frito con jamón y caramelo demerara) sobre arroz de frango, faltava-lhe um curso de arquitectura de interiores. Agora digam-me se estes «encuentros con directivos y clientes y conferencias con un fuerte componente innovador y tecnológico en contenido y forma», que Adrià irá manter com Miami, Nova Iorque, Londres, Buenos Aires, Berlim, México, Madrid ou Barcelona, não é mesmo um produto inferior às fotografias de JR Duran para a Playboy brasileira.
Frankfurt continua a ser o que gostaria de ser – uma reunião de gente que trabalha com livros. Continuo, passado 25 anos de ter vindo pela primeira vez, a avisar, «Frankfurt não tem nada a ver com literatura»; passados 25 anos, as mesmas pessoas a que se acrescentam muitas outras, continuam a perguntar o que há aqui de novo em literatura. Nada. Frankfurt não tem nada a ver com literatura embora, durante algum tempo, alguns autores achassem que «deviam vir à feira». Para fazer o quê? Passearem-se entre 12 quilómetros de livros? Algumas estrelas, sim, vêm — e falam, e têm a ideia de que são ouvidos na abertura das cerimónias oficiais, porque são transcritos no Frankfurter Allgemeine, no Rundschau, no Herald Tribune ou no El Pais. Mas o resto é uma conspiração que é estranha à literatura, à sua solenidade ou «marginalidade». Eu gosto dessa conspiração. Conheço conspiradores desses há 25 anos — agentes de autores latino-americanos, editores de livros sobre chocolate ou linhas de caminhos-de-ferro, especialistas em literaturas do Báltico, negociantes de papel escandinavo, os últimos crentes e adoradores da literatura policial que te contam uma história passada entre duas cidades indianas e uma passagem estreita para o Paquistão, os russos que vêm e se embebedam a partir das onze da manhã, os turcos, os abkhazes que vêm às escondidas, os islandeses (eu gosto dos islandeses), os brasileiros que gastam todo o dinheiro que têm e que não têm e ficam nos melhores hotéis e se apresentam como milionários, os espanhóis que violam todas as leis (comem presunto, bebem vinho, fumam às escondidas, riem alto), os ingleses que gaguejam, os americanos que se dividem em vinte ou trinta grupos (os pálidos, os republicanos, os que escapam, os que olham para um livro e dizem quantos exemplares vai vender e sabem que se enganam frequentemente, os que encolhem os ombros a toda e qualquer novidade, os que gostavam de «ser europeus», os que gostavam de «ser espanhóis», os que são americanos, os democratas, os enjoados, os super-enjoados, os que «não parecem» americanos, etc.). São os conspiradores de Frankfurt, os que ainda vêm e acreditam nesta coisa, um livro. Um livro, qualquer que ele seja. [cont]
Mario Vargas Llosa. Prémio Nobel.
El Sueño del Celta / O Sonho do Celta,
o novo livro, em Novembro — na Quetzal.
A Feira do Livro de Frankfurt abriu hoje as suas portas; com a crise económica e as convulsões tecnológicas, são portas cada vez mais estreitas. Antigamente, sem mail nem a rapidez das comunicações, era uma feira “mais necessária”; hoje, os negócios fazem-se pela internet e as novidades circulam diariamente sem esperar pelo mês de outubro. No entanto, para lá das vaidades (cada vez mais caras, cada vez mais raras), há coisas que os editores têm em comum com os amantes de livros: o olhar. Olhar nos olhos, olhar nas páginas. Olhar um livro. Estão aqui 12 quilómetros de livros disponíveis – mas não interessam muito. O que Frankfurt hoje significa é isso: encontrar alguém que acredite num livro, num deles – e nos comunique esse entusiasmo. Essa é, ainda, a grande novidade.
[Na coluna do Correio da Manhã]
Não tenho tempo para isso, mas seria interessante & produtivo analisar as declarações e juramentos dos ajudantes que, ainda há dois meses, insultavam quem fazia «uma leitura pessimista» (um eufemismo...) da situação económica — e agora se apressam a festejar a clarividência do chefe, que quer restaurar a confiança dos mercados, a confiança dos portugueses, a confiança da UE, a confiança das universidades americanas, a confiança dos alfaiates, a confiança, enfim (sobretudo porque poucos têm, já, confiança nele). E que, num arroubo sem premeditação e graça, diz — ao mesmo tempo — que daqui a uns meses vamos regressar ao TGV e ao «investimento público» (outro eufemismo). Há, na verdade, quem pense que governar é gerir dinheiro que «cai do céu» (outro eufemismo), gastá-lo abundantemente, endividar-se com generosidade em nosso nome — e manobrar para manter o poder a todo o custo, porque fora «do círculo do poder» (outro) não têm existência. Há. Mas o pior é que há gente que acha isso aceitável e normal.
No fim de semana passado, num alfarrabista, comprei Três Soldados, um romance 500 páginas em muito bom estado e por apenas 6€. Faltava-me esse livro à lista dos títulos de John Dos Passos (1896-1970), sobre cuja morte passaram agora 40 anos. Dos Passos (além de ficcionista, foi jornalista, pintor e poeta) não faz parte da nossa galeria de leituras hoje em dia – o que é uma pena. Não apenas pela sua origem portuguesa (ele era um dos descendentes dos madeirenses do Ilinóis), mas também por ser um dos grandes nomes da Geração Perdida americana (com o pormenor de não ter caído nas armadilhas políticas de que Hemingway padeceu), e autor de Manhattan Transfer ou Paralelo 42 (publicados pela Presença), entre mais de cinquenta livros. A sua raiz portuguesa devia interessar-nos.
[Na coluna do Correio da Manhã]
Freedom, de Jonhathan Franzen, foi anunciado como o grande romance americano da década. Comecei a folheá-lo num voo sobre o Atlântico que nos separa da América, mais do que da sua cultura – o retrato não é assim tão genial, mas é conhecido: uma classe média triste, desiludida ou apenas pantomineira e imatura, a viver nos subúrbios, como nos livros de Updike ou Yates. O que é curiosa é a sua, digamos, “mensagem”: os grandes valores americanos foram sendo destruídos e falta “espiritualidade” (visível na crítica de Franzen aos seus próprios personagens) à vida dionísiaca dessa classe média. É um retrato da geração que toma comprimidos para impedir o caos da sua vida, ou que sucumbe diante da necessidade de fazer escolhas. Lá como em outro lado, a vida não esta fácil.
[Na coluna do Correio da Manhã]
Ao sol, uma caminhada de sete quilómetros. Algumas praias cheias de gente, assinalando o centenário da República (o Eduardo tem razão, deixem-se de preciosismos e leiam O Poder e o Povo, de Vasco Pulido Valente; e se quiserem saber porquê leiam, depois, o Portugal Contemporâneo, de Oliveira Martins, para conhecer os lustros anteriores) nos areais. Um último sol. Uma benção gratuita, boa para quem quer exercer o direito à preguiça no tempo regulamentar. Jornais espalhados. No Telegraph, Philip Larkin sobre o amor. Na Praça do Município, uns polícias à paisana, em nome da República arrancam máscaras de Darth Vader a manifestantes – antigamente também não se podia falar mal do dr. Afonso Costa. Todas as pessoas deviam usar máscaras enquanto se ouvem discursos pataratas. A sensação de que nos preparamos para os nossos melhores anos. Uma caminhada ao sol. Um milagre, o uso das pequenas coisas, dos heróis sem cosmopolitismo. As pessoas bebem cerveja numa esplanada. Um vento de Outubro. Vêm aí grandes batalhas.
Nada de grave com um empate com o Vitória de Guimarães. Mas, como se tinha dito aqui, irritam-me os golos não marcados por excesso de confiança. Fucile bem expulso. André Vilas-Boas não precisava de dizer o que disse: bastava-lhe reconhecer que as coisas são como foram.
Dá vontade de falar sobre o assunto. «Para as crianças do pré-escolar, com cinco anos, as metas prevêem que estas saibam contar até dez, reconhecer a sua identidade sexual, fazer jogos em computadores, recitar poemas, rimas e canções.»
Coisas naturais e óbvias. «Penso que é um misto de falta de sentido de Estado, de ignorância, de voluntarismo e de teimosia e, porventura mais importante, de falta de convicção sobre o interesse geral.»
Esperei muito por este momento. Está ainda actual — demasiado — o célebre artigo de Roberto Mangabeira Unger publicado na Folha de São Paulo a 15 de novembro de 2005 (o «15 de novembro» é a data da implantação da República no Brasil). A segunda volta, o segundo turno, é um castigo que ainda não tem decisão à vista (apesar de a imprensa portuguesa dar a vitória de Roussef por garantida, e as eleições uma espécie de pro forma).
À atenção dos cavalheiros da UE — ele é bipolar e não sabe que estas coisas têm tradução simultânea. Antes e depois das eleições.
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