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Uma memória do fim de século.

por FJV, em 31.10.10

 

Acabo de ler a biografia de Francisco Sá Carneiro, de Miguel Pinheiro (Esfera dos Livros, 768 págs.). Na história dos partidos não-comunistas do pós-25 de Abril, Sá Carneiro foi o único dirigente capaz de criar um partido a partir do nada. Há duas leituras essenciais da sua figura — uma, largamente maioritária, privilegia o homem que quis acelerar o fim do regime revolucionário (com um projecto de revisão constitucional anti-socialista logo em 1978, a luta contra o eanismo e o papel do Conselho da Revolução, o confronto directo com a esquerda e com a imposição dos herdeiros da I República, de que Mário Soares era a figura principal); outra, absolutamente minoritária (e de que Miguel Real é um excelente intérprete), que o vê como um personagem trágico esmagado pelo provincianismo português, de esquerda e de direita.

O livro de Miguel Pinheiro acompanha a biografia política de Sá Carneiro dia a dia, semana a semana: o desenho desse personagem é cada vez mais nítido à medida que se aproxima da morte, cercado de conspirações (grande parte delas só existia na sua cabeça, o que não quer dizer que não fossem reais), de traidores, de submarinos, mas — sobretudo — de vencidos. Ele foi o primeiro político do mainstream a perceber as vantagens do radicalismo, a não contemporizar com as terceiras vias da época, a não ter pudor em fazer da política um jogo, a afrontar os lugares-comuns da via original para o socialismo (e a não sentir esse apelo romântico) e a nomear claramente os seus adversários. Num último golpe, tentou ainda uma aproximação com Mário Soares; Soares sempre esteve aberto a essa grande coligação que tomasse o poder, desde que garantisse o seu lugar à frente da História, mas Sá Carneiro percebera como ninguém que, mesmo nos meses de fogo e chumbo de 1975, primeiro, e 1976, depois, esse projecto seria a morte do PSD, um partido que nascera como herdeiro dos liberais do marcelismo, e que, na sua matriz, era europeu, conservador à maneira inglesa (o que era difícil num pais sem grande gosto pela liberdade e com um ódio radical contra «as elites»), anti-comunista — e cuja base eleitoral era essencialmente populista. Acontece que não podia ser de outra maneira. Foi durante o curto consulado de Sousa Franco à frente do PSD que nasceu a teoria das duas matrizes do partido: ele, Sousa Franco, era o representante do PSD «urbano», «socializante», de «esquerda»; Sá Carneiro tinha o apoio das «massas rurais» sobretudo do Norte e do interior, era «anti-socialista» e não compreendia as vantagens da contemporização. A definição era tão estreita que o próprio Sá Carneiro ficou surpreendido com os riscos que corria e com a natureza do seu «radicalismo» — que os dissidentes de Aveiro, comandados por Sá Borges e pelos herdeiros de Emídio Guerreiro, e os mentores das «Opções Inadiáveis», mais tarde, definiam como caudilhismo e prepotência. Entre esses críticos estavam Sá Borges e Emídio Guerreiro, é certo, mas também Artur Santos Silva ou Magalhães Mota, Mota Pinto ou Sérvulo Correia, e todos os que entendiam que era necessário ser maleável e contemporizador, mas não tinham entendido suficientemente que ou ficavam presos à estratégia de Mário Soares e Eanes para o novo regime (Soares criou Eanes como candidato fraco à presidência na esperança de o substituir mais tarde ou mais cedo — mas nunca teve ilusões sobre o seu moralismo militar e, no fundo, detestava a figura do general), ou afrontavam o PREC e os seus herdeiros. Quando Sá Carneiro tenta a última aproximação com Soares (ele seria primeiro-ministro e Soares o primeiro presidente civil — o que significaria a antecipação do fim do papel político dos militares), Soares não avaliou correctamente a situação (como não avaliaria mais tarde, na sua candidatura contra Freitas) e tomou os seus desejos por realidade, como de costume, confiando na ideia de que a sua genialidade lhe bastava. Enganou-se: daí a poucos meses, o PS ficaria reduzido a 27% e Sá Carneiro conquistaria a primeira maioria absoluta de direita com a AD. É dessa época, aliás, que datam alguns dos episódios mais edificantes do moralismo de esquerda, com críticas do próprio Soares à «relação extra-conjugal» de Sá Carneiro com Snu Abecassis, um assunto que o PS levaria inclusive para o parlamento e que Eanes explorou no seu confronto posterior com o primeiro-ministro que foi obrigado a nomear. Sá Carneiro alimentou sonhos demasiado altos — desde o de um país libertado do provincianismo até à ideia de ser presidente da República (os ataques baixos a Snu foram definitivos na decisão de abandonar o projecto presidencial). Viu, antes de outros (a geração do Semanário, por exemplo, que acabou por assumir uma parte da sua herança civilista e anti-socialista), o que seria esse país dirigido por militares, contemporizador, servil, pequenino. As suas características bipolares não poderiam ajudá-lo; as suas sucessivas depressões foram dolorosas; a história do seu casamento é a de «Um Adeus Português» ao contrário (ele teve a sorte que não teve O'Neill, mas também a coragem que O'Neill não poderia ter na época), e que Agustina Bessa-Luís retrata em Os Meninos de Ouro com a habitual e justa crueldade. A morte prematura faz dele um herói literário que Miguel Real analisa (em O Último Minuto na Vida de S.) e acaba para transferir para Snu Abecassis, transformando «o último grande amor português» num combate contra o país arcaico, mau, mesquinho, moralista, conspirador, falsamente republicano, oligárquico e herdeiro da Inquisição.

Temos poucas biografias entre nós; a de Miguel Pinheiro é um retrato em pano cru de um dos últimos cometas trágicos da nossa política; o que lhe falta em interpretação sobra-lhe em petite histoire deliciosa, em registo factual, em documentação reunida e em entrevistas com actores da época (só isso justifica a abundância de reconstituição de diálogos). O desenho que se vai formando é o de um homem contraditório que prepara, sem o saber, a sua própria biografia como um dos primeiros desiludidos com a revolução e com a fé.

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Tirando isso.

por FJV, em 31.10.10

«Portugal é uma república de financeiros e jornalistas desde 1992.»

José Medeiros Ferreira, no Córtex Frontal.

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